13 julho 2018

carlos drummond de andrade / consolo na praia




Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.



carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989






12 julho 2018

mário-henrique leiria / panoramas do brasil




Nos parques dormem mendigos
enrolados em jornal.
Os notívagos insectos,
crepitam e desabafam.
A neblina cobre a rua
obumbra as feições da lua,
faz dos transeuntes espectros.
Imerso em meus devaneios,
assobiando cantigas
que inda no berço aprendi,
eu sigo perambulando
vendo coisas espantosas
que não supunha existir.

Que fazem as negras
cingidas em postes
de iluminação?
Passei-lhes por perto
nenhuma me viu
estão obtusas
de tanta cachaça,
e desilusão.
São negras sedentas
famintas e nuas
chorando nas ruas,
trazendo no bucho
pecados alheios,
dormindo? Coitadas
pêlos escaminhos
e pelas sarjetas
dos templos sagrados
aonde ressoam
tranquilos e fartos
os gordos sicários
do meigo Jesus.

No botequim
a ruiva de henné
no colo do homem
ao qual explorava
com gesto fútil
às vezes sorria.
Na boca postiça
sorriam postiços
seus dentes de louça.
No meio da noite
é o pederasta,
tipo numeroso,
que acha os boêmios
em altos clamores
de tara mental.
Os que se aproximam,
desejam dinheiro
para a bacanal.

Um guarda-noctruno,
obeso e cafuzo,
em roncos suínos
de besta saciada,
tirava cochilos
num carro esquecido
que à beira da estrada
dormia também.
De madrugada,
meio à neblina,
e que se acirram
e recrudescem
trôpegos passos
soturnos ecos
da dura faina
das prostitutas.

Gatos que vivem ao léu
dão uma nota de instinto
fornicando nos telhados
e canteiros desfolhados
de madames irascíveis.
De vez em quando o berreiro
dos automóveis que passam
conduzindo mariposas
para o amor dos milionários.
Depois retorna o silêncio
onde seus passos explodem
como flores apagadas.
O mundo é só, quem te espera?
Os bares não têm amigos,
mulheres não têm sorrisos,
as estrelas feneceram
na madrugada sem fim.
Só globos de luz vegetam
boiando na escuridão
como que vindos de longe,
fazendo as vezes de estrelas
luzeiros do engenho humano,
iluminando a sarjeta
onde rola a perdição.

E quando amanhece
e o dia estremece
saltando nos céus,
ninguém reconhece
as coisas que vê.
O mundo girando,
os ricos gozando,
os pobres penando,
os párias morrendo…
a vida correndo…

Alguns ressonando
em camas de pena,
em leitos de pedra
em leitos de pedra
vão outros dormir.

E o mundo girando
a vida correndo
e os deuses sorrindo
sorrindo e chorando
das coisas que vêem.
E o mundo girando
e o dia passando
e a noite chegando
e os homens gritando
de fome e de dor.




mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018


11 julho 2018

al berto / salsugem




5
o mar arrasta
depois atira o corpo para fora do sonho que me roubou
e a noite
a violenta noite das marés arremessa contra a cama
velhas madeiras restos de vestuário pedaços de corpos
envoltos no coral… rostos
órgãos corroídos pela ferocidade dos peixes

qualquer porto era bom para embarcar
fugir às tribos e ao sol impiedoso
ir em busca de sossego noutras ilhas nocturnas
outros desertos onde o amor se revela e os olhos ficam atentos
ao movimento luminoso dos corpos atravessando
os dias lentos sem regresso

queimava as horas de viagem a esmagar saliva
aprendia a sonâmbula fala dos golfinhos
os dedos enlouquecidos pelas amarras
gritava… «Ó Fogo de Santelmo! Ajudai! Ajudai!»

e da insuspeita travessia para sul
vinha a poeira da noite com o embriagante perfume das orquídeas
e a ilusão das suaves índias que não conheço



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








10 julho 2018

amalia bautista / desconheço ainda que crime fiz




Desconheço ainda que crime fiz,
o que estou a pagar com este exílio.
Lembro-me apenas de tecer a teia
entre os ramos de uma frondosa árvore
que crescia no centro do jardim.
Estava cheia de frutos dourados
e pelo seu tronco andava uma serpente.



amália bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013








09 julho 2018

herberto helder / poemacto




I
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
Uma vara canta branco.
Uma cidade canta luzes.
Penso agora que é profundo encontrar as mãos.
Encontrar instrumentos dentro da angústia:
clavicórdios e liras ou alaúdes
intencionados.
Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro.
Cantar o sangrento nevoeiro.
O amor atravessado por um dardo
que estremece o homem até às bases.

Cantar o nosso próprio dardo atirado
ao bicho que atravessa o mundo.
Ao nome que sangra.
Que vai sangrando e deixando um rastro
pela culminante noite fora.
Isso é o nome do amor que é o nome
do canto. Canto na solidão.
O amor obsessivo.
A obsessiva solidão cantante.
Deito-me, e é enorme. É enorme levantar-se,
cegar, cantar.
Ter as mãos como o nevoeiro a arder.

As casas são fabulosas, quando digo:
casas. São fabulosas
as mulheres, se comovido digo:
as mulheres.
As cortinas ao cimo nas janelas
faíscam como relâmpagos. Eu vivo
cantando as mulheres incendiárias
e a imensa solidão
verídica como um copo.
Porque um copo canta na minha boca.
Canta a bebida em mim.
Veridicamente, eu canto no mundo.

Que falem depressa. Estendam-se
no meu pensamento.
Mergulhem a voz na minha
treva como uma garganta.
Porque eu tanto desejaria acordar
dentro da vossa voz na minha boca.
Agora sei que as estrelas são habitadas.
Vossa existência dura e quente
é a massa de uma estrela.
Porque essa estreia canta no sítio
onde vai ser a minha vida.

Queimais as vossas noites em honra
do meu amor. O amor é forte.
Que coisa forte que é a loucura.
Porque a loucura canta minada de portas.
Nós saímos pelas portas, nós
entramos para o interior da loucura.
As cadeiras cantam os que estão sentados.
Cantam os espelhos a mocidade
adjectiva dos que se olham.
Estou inquieto e cego. Canto.
Ao fundo canta-me a morte.
É um canto absoluto.

Imagino o meu corpo, uma colina.
Meu corpo escada de estrela.
Nata. Flecha. Objecto cantante.
Corpo com sua morte que canta.
Imagino uma colina com vozes.
Uma escada com canto de estrela.
Imagino essa espessa nata cantante.
Uma que canta flecha.
Imagino a minha voz total da morte.
Porque tudo canta e cantar é enorme.

Imagino a delicadeza. A subtileza.
O toque quase aéreo, quase
aereamente brutal.
Ser tocado pelas vozes como ser ferido
pelos dedos, pelos rudes cravos
da planície.
Ser acordado, acordado.
Porque cantar é um subterrâneo.
Depois é um pátio.
Imagino que as vozes são escadas.
Vozes para atingir o canto.
O canto é o meu corpo purificado.

Porque o meu corpo tem uma sua morte
tocada incendiariamente.
A morte — diz o canto — é o amor enorme.
É enorme estar cego.
Canta o meu grande corpo cego.
Reluzir ao alto pelo silêncio dentro.
O silêncio canta alojado na morte.
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996








08 julho 2018

fernando pessoa / deixei de ser aquele que esperava,




Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.

Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.

Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.

10-2-1933



fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955






07 julho 2018

carlos poças falcão / o vento na varanda




O vento na varanda. Há uma história brusca
em cada verão: surgem as constelações
mais violentas, as cidades arremessam-se para longe.
Por todo o lado: ritmos. Os destinos
emaranham-se nas praças. Passam viaturas
de lugares ocultos, rostos impossíveis. O calor
traz poros venenosos, sopra turvações.
Durante a noite é julho e embate-me no peito
a borboleta escura. Os sinais são abundantes,
agitam-se no céu as luzes dos subúrbios.
Pessoas numa onda de matéria, seus halos
obscuros, o seu pequeno verão que as engana.



carlos poças falcão
sob saturno
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012







06 julho 2018

virgínia woolf / o passado




(1925)
Quarta, 18 de Março


(…) Neste momento (sete e meia, antes do jantar) apenas posso anotar que o passado é belo porque uma pessoa nunca se apercebe de uma emoção na altura. Expande-se mais tarde e assim não temos emoções completas sobre o presente, apenas sobre o passado. Isto ocorreu-me na gare de Reading ao ver a Nessa e o Quentin darem um beijo, ele aproximando-se timidamente, contudo com uma certa emoção. Isto vou lembrar, e hei-de valorizar, quando estiver separado de toda aquela trapalhada que é atravessar a gare, procurar o autocarro, etc. É por isso que damos importância ao passado, acho eu. (…)


virgínia woolf
diário primeiro volume 1915-1926
trad. maria josé jorge
bertrand editora
1985








05 julho 2018

william carlos williams / a rua solitária




Acabaram as aulas. Está demasiado calor
para passear. Mas elas passeiam
em ligeiras vestes pelas ruas
para matar o tempo.
Cresceram muito. Na mão direita levam
chamas cor-de-rosa.
De branco dos pés à cabeça,
olhando furtivamente ao passar –
de amarelo, roupas soltas,
cinto e meias pretas –
tocando as ávidas bocas
com açúcar rosado num pauzinho –
como um cravo que cada uma leva na mão –
sobem a rua solitária.


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993







04 julho 2018

josé gomes ferreira / as flores, a lua, o sol, as estrelas, o vento




XXV

                 (Pós-escrito a favor-contra o alfabeto poético.)


As flores, a lua, o sol, as estrelas, o vento
não são palavras apenas
para tecer poemas.

Existem em carne e dor (com caveira).

E iluminam o papel
com que as palavras criam
para além da pele
– a luz verdadeira.


josé gomes ferreira
idílio de recomeço 1961
poesia IV
portugália
1971






03 julho 2018

debasish lahiri / o mito das ilhas









          “Nenhum homem é uma ilha.”
          (Lay Sermons, John Donne)


Cada homem é uma ilha,
Ou, devia ser,
Ou, admite que sim
Demasiado ansioso
Quando os olhos se fecham
E os dias futuros
Se apresentam como memórias,
Como pó
De um trilho desértico
Escurecido pela lua estéril.

O mito dos continentes
É um recurso
Que a poesia usa muitas vezes
Para bem dizer o amor.
Os continentes são ilhas sem lei
Unidas por errantes promessas de amor.

Imagine-se
Que o mar se desvanece.
Imagine-se
Que uma ilha abandonada
Está bordada
Com filamentos de palavras coloridas

A insensibilidade da poesia,
A frieza do amor
Que pode apenas pensar
Nos seus próprios prazeres,
envolve a orla gritante
De uma série de ilhas.

Os continentes dormem indolentes.
As ilhas
Têm serpentes de pedra no seu cabelo fantasma
E olhos de Gorgon
Que se fitam profundamente

Cada homem é uma ilha.
Tapa os olhos, Amor
Quando navegares nestas costas,
Ou, será que não tens medo
Por teres já no coração
A mesma pedra?
Cada homem é uma ilha:
Uma ilha
Esperando
Pelo alívio de ser abandonada.




debasish lahiri
(Índia, trad. de isilda ribeiro a partir da versão inglesa)
nervo/2
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018