08 junho 2018

sophia de mello breyner andresen / mais do que tudo, odeio




Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor de Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.


sophia de mello breyner andresen
obra poética
assírio & alvim
2015















07 junho 2018

wislawa szymborska / álbum




Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhum impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas dos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissipam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







06 junho 2018

albano martins / como se fosses o mar



(6-08-1930 / 6-6-2018)


Antigamente
era assim: bastava
o voo duma ave
para te arrepiar a pele. Agora
os navios cortam
a linha de água e nem
um leve sobressalto
te percorre os rins.


albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999







05 junho 2018

ana hatherly / o fim




O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.
Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:

É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







04 junho 2018

josé tolentino mendonça / o tempo




O tempo perfura portas cerradas
biombos, tabiques e lapsos
um rangido de ferrugem velha
a mercadoria imaginária que tenhamos

insectos erram de planta em planta
um feto desdobra as grandes folhas
estranhamente espaçosas
nesta estação

A lua sobe no céu
lavado de fresco pelas últimas trovoadas



josé tolentino mendonça
estação central
assírio & alvim
2012







03 junho 2018

bernardo soares / declaração de diferença


(para ser inserta no Livro do Desassossego)


As coisas do estado e da cidade não têm mão sobre nós. Nada nos importa que os ministros e os áulicos façam falsa gerência das coisas da nação. Tudo isso se passa lá fora, como a lama nos dias de chuva. Nada temos com isso, que tenha que ver ao mesmo tempo connosco.

Semelhantemente nos não interessam as grandes convulsões, como a guerra e as crises dos países. Enquanto não entram por nossa casa, nada nos importa a que portas batam. Isto, que parece que se apoia num grande desprezo pelos outros, realmente tem apenas por base o nosso apreço céptico por nós próprios.

Não somos bondosos nem caritativos — não porque sejamos o contrário, mas porque não somos nem uma coisa, nem a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras. Tem para nós o interesse de um episódio passado em outras almas, e com outras formas de pensar. Observamos, e nem aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mister é não ser nada.

Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes que a si próprias chamam desprotegidas, ou em outras quaisquer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdade nós somos, em geral, criaturas nascidas nos interstícios das classes e das divisões sociais — quase sempre naquele espaço decadente entre a aristocracia e a (alta) burguesia, o lugar social dos génios e dos loucos com quem se pode simpatizar.

A acção desorienta-nos, em parte por incompetência física, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela expressão em palavras, que o tornam coisa dos outros, que o fazem compreensível aos que o compreendem.

A nossa simpatia é grande pelo ocultismo e pelas artes do escondido. Não somos, porém, ocultistas. Falha-nos para isso a vontade inata, e, ainda, a paciência para a educar de modo a tornar-se o perfeito instrumento dos magos e dos magnetizadores. Mas simpatizamos com o ocultismo, sobretudo porque ele soe exprimir-se de modo a que muitos que lêem, e mesmo muitos que julgam compreender, nada compreendem. É soberbamente superior essa atitude misteriosa. É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos diversos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do som interior — tudo isso nos acaricia com uma mão viscosa, terrível, no desabrigo e na escuridão.

Mas não simpatizamos com os ocultistas na parte em que eles são apóstolos e amadores da humanidade; isso os despe do seu mistério. A única razão para um ocultista funcionar no astral é sob a condição de o fazer por estética superior, e não para o sinistro fim de fazer bem a qualquer pessoa.

Quase sem o sabermos morde-nos uma simpatia ancestral pela magia negra, pelas formas proibidas da ciência transcendente, pelos Senhores do Poder que se venderam à Condenação e à Reencarnação degradada. Os nossos olhos de débeis e de incertos perdem-se, com um cio feminino, na teoria dos graus invertidos, nos ritos inversos, na curva sinistra da hierarquia descendente.

Satan, sem que o queiramos, possui para nós uma sugestão como que de macho para a fêmea. A serpente da Inteligência Material enroscou-se-nos no coração, como no Caduceu simbólico do Deus que comunica — Mercúrio, senhor da Compreensão.

Aqueles de nós que não são pederastas desejariam ter a coragem de o ser. Toda a inapetência para a acção inevitavelmente feminiza. Falhámos a nossa verdadeira profissão de donas de casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de sexo na encarnação presente. Embora não acreditemos absolutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer em nós como se o acreditássemos.

(from above) Tudo isto não é por maldade, mas por debilidade apenas. Adoramos, a sós, o Mal, não por ele ser o Mal, mas porque ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso e forte atrai os nervos que deviam ser de mulher. Pecca fortiter não pode ser connosco, que não temos força, nem sequer a da inteligência, que é a que temos. Pensa em pecar fortemente — é o mais que para nós pode valer essa indicação aguda. Mas nem mesmo isso às vezes nos é possível: a própria vida interior tem uma realidade que às vezes nos dói por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação de ideias, como para todas as operações do espírito insulta a nossa indisciplina nativa.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









02 junho 2018

miguel torga / transe



Coimbra, 30 de Março de 1955


Nem tudo é lei da vida ou lei da morte.
Há limbos onde o homem desconhece
Esse dilema hostil.
É quando ama, ou sonha, ou faz poemas,
E a própria natureza o não domina.
Então, livre e perfeito,
Paira no tempo como o pó suspenso.
Nem do céu, nem da terra, nem sujeito
Ao pesadelo de nenhum consenso.



miguel torga
diário VII
1956






01 junho 2018

tomas tranströmer / folha de agenda de cabeceira




Uma noite de maio aterrei
num lugar gélido
onde erva e flores eram pardas
mas o aroma exalado de cor verde.

Lá fui seguindo encosta acima
naquela noite daltónica,
enquanto pedras brancas
sinalizavam o caminho para a lua.

Um lapso de tempo
de uns minutos de altura
e cinquenta e oito anos de largura.

Atrás de mim,
para além do brilho difuso da água,
avistava-se a outra costa
e os que ali detinham o poder.

Gente com futuro
em vez  de semblantes



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






31 maio 2018

herberto helder / narração de um homem em maio




Estou deitado no nome: maio, e sou uma pessoa
que saiu
violenta e violentamente para o campo.
Um homem deitado entre os malmequeres
rotativos do mês através- 
sado pelo movimento.
É a noite aproximada com o livro
dentro. Deitado sobre bocados
de estrelas no pensamento.
Era a casa absorvida na manhã
embatente.
Livro da poesia arrebatada. Poesia
da mulher emparedada no amor
e o homem emparedado na destruição
do amor.
É agora o leitor com a atenção corrupta
sobre o livro.
O livro que arde nos ossos
do leitor afogado no poema arrebatado.
Estou estendido como autor na ligeira
palavra que a noite molha
e os ventos sopram como se sopra
uma brasa.
Um homem que saiu de casa, com toda
a magnífica violência do amor.
É o tempo revelador.
Agora inteligente deste lado,
contra o lado exemplar de maio aglomerado
Espécie de primavera comburente.
A dor total. O livro.
O pensamento do amor. A
experiência.
E a vida ardente do autor.

Deitei-me também no campo
de outras coisas. Com discurso. Com
rigoroso segredo.
Vi o caçador levantar o arco-íris
e atirar, fechada, a morte
ao cabrito primaveril.
E tudo calei como experiência
de um sono inspirado.
Vi a ressurreição, maio
infestado. Ouvi
passar o ciclista da primavera
sobre o ruído da ressurreição.
Conheci a existência do roubador, o ciclista
que penetra no exemplo da fábula.
Estou deitado em meio campo
de uma espécie de despedida.
Meio campo de maio, e outro meio
de pessoalíssima vida.

São coisas que já não estão mais
do que na maturidade da idade.
Fiz comércio. Indústria. Dor.
A garganta lavrada pelo canto.
Ia a bicicleta com o seu poeta que punha a mão
no poema da bicicleta.
E iam todos — poema, bicicleta, poeta e mão —
por sobre o coração da terra e a ressurreição
da primavera. Ganhei
a minha idade concluída.
Cacei. Ou plantei. Ou cortei.
A vida vida.
Havia o movimento com a sua bicicleta
e a canção com o seu poeta.
A vida merecida.

Vejo ervas movimentadas e estreias paradas.
E a consumação das coisas universais.
Geram-se de novo as coisas
universais. A pureza.
A natureza da pureza.
A própria natureza das coisas universais.
Da dor sei o amor.
O amor do ardor. Sei mais
do que posso saber da matéria do amor.
Fico deitado no campo revolucionário:
a paciente brutalidade da primavera
é como a brutalidade
delicada da paixão.
O violentamente demorado amor,
e a sua ressurreição.

Já estivera deitado ao lado das mulheres.
Elas paravam completamente
como caçadores ou bichos fascinados.
Não tinham pensamento nem idade.
Era a força do corpo. O movimento.
Estou neste lado desse lado
do corpo. Sei o poema
do conhecimento informulado.
Respira monotonamente uma estrela
entre os ossos.
Estrela levemente destruída.
Roída pelo louco rato lírico
da idade. Estou no pensamento.
Parado no movimento de uma vida.

Mexo a boca, mexo os dedos, mexo
a ideia da experiência.
Não mexo no arrependimento.
Pois o corpo é interno e eterno
do seu corpo.
Não tenho inocência, mas o dom
de toda uma inocência.
E lentidão ou harmonia.
Poesia sem perdão ou esquecimento.
Idade de poesia.

1953-60


herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996









30 maio 2018

gil t. sousa / instantes solares




manhãs inteiras
atados com cordas de luz

ao soneto solar
que inundava as pedras

os anjos à espera
de soltarem a voz

asas pacientes
tecendo nuvem a nuvem

castelos de céu
para onde, perfeita,

se ia amurar  
a solidão



gil t. sousa
água forte
poesia reunida
editora medita
2014










29 maio 2018

eugénio de andrade / arte de navegar




Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,

e a noite se faz barco,

e minha mão marinheiro.




eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000









28 maio 2018

konstandinos kavafis / prece




Nos seus fundos tomou um marinheiro o mar. –
Sua mãe vai e acende, por ignorar,

diante da Virgem uma alta vela
que volte depressa e faça bom tempo apela –

e não pára de escutar se o vento esmorece.
Porém enquanto ela reza e faz uma prece,

aquele ícone ouve, sério e triste,
que seu filho ao qual espera já não existe.


konstandinos kavafis
os poemas
adenda, 1.ª  (1897-1904)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







27 maio 2018

fernando pessoa / corpos




O meu corpo é o abismo entre eu e eu.

Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto

As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem

Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro

A hora passa. Mas meu sonho é meu.

s.d.




fernando pessoa
pessoa inédito
livros horizonte
1993