12 maio 2018

jorge de sena / as mãos dadas



Um dia me falaste,
e as árvores morriam galho a galho seco.
Havia flores, recordo.
Havia ruas, ai também recordo.
E escadas
vazias.

Não me falaste, não. Fui eu quem perguntou,
beijando-te tremente, quantos anos tinhas,
e o teu nome.

Não tinhas nome; ou tinhas, mas não teu.
E a tua idade: as tuas mãos nas minhas.


jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







11 maio 2018

nuno júdice / voo




Por duas vezes o pássaro atravessou
o horizonte, deixando atrás de si o dia
e a noite, confundidos para quem, no
limite da praia, olhava o seu voo; e
por duas vezes o sol hesitou, antes
de morrer, como se tivesse outra
saída para além do outro lado da terra.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997










10 maio 2018

rui knopfli / auto-retrato




De português tenho a nostalgia lírica
de coisas passadistas, de uma infância
amortalhada entre loucos girassóis e folguedos;
a ardência árabe dos olhos, o pendor
para os extremos: da lágrima pronta
à incandescência súbita das palavras contundentes,
do riso claro à angústia mais amarga.

De português, a costela macabra, a alma
enquistada de fado, resistente a todas
as ablações de ordem cultural e o saber
que o tinto, melhor que o branco,
há-de atestar a taça na ortodoxia
de certas vitualhas de consistência e paladar telúrico.

De português, o olhinho malandro, concupiscente
e plurirracial, lesto na mirada do seio
entrevisto, à nesga de perna, à fímbria de nádega;
a resposta certeira e lépida a dardejar nos lábios,
o prazer saboroso e enternecido da má-língua.

De suíço tenho, herdados de meu bisavô,
um relógio de bolso antigo e um vago, estranho nome.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional-casa da moeda
1982







09 maio 2018

josé ángel cilleruelo / bairro alto




2
Uma revista rasgada na armação
da cama vazia. Além o colchão
no piso de mármore, junto de restos
de pequena fogueira. Nas paredes,
mensagens de amor reles e obsceno.
Beatas, lixo, plásticos, migalhas
por todo o lado. Um preservativo
recente junta um sinal ao abandono.

Não sei se neste quarto estive só,
numa tarde de chuva, masturbando-me
devagar. Ou neste quarto será onde
desabotoou a saia e disse
deita-te! e o fio me beijou
os olhos. Ou talvez que na janela
de um quarto como o que descrevo agora,
numa manhã de setembro aziaga,
tremi ao ver que corria pela avenida.

Camiões e gruas e operários
destruirão o velho hotel em poucas
horas. O pó cobrirá a figueira
e os fetos do pátio antigo.
grandes rodas esmagarão a erva
onde me deitei um dia com um livro
nas mãos. Levantei os olhos
e estava junto da piscina,
prestes a rir-se do meu sotaque
de estrangeiro. Este quarto. Estas ruínas.



josé ángel cilleruelo
salobre
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2004







08 maio 2018

alberto lins caldas / a tempestade





● por muitos anos ●
● esperei a tempestade e a destruição ●
● ficava na cama na janela na porta olhando ●
● longe ela a tempestade se preparar os anos ●
● passaram a tempestade grasnando veio ●
● veio caminhando e eu velho envelhecia ●
● perdi as forças olhando pela janela ●

● a tempestade bem próxima de casa ●
● as cidades os campos já se foram devorados ●
● dentro da fome da tempestade engolidos ●
● sinto a casa tremer as telhas ladrarem ●
● sendo arrancadas como pedaços de carne ●
● de vísceras enquanto tudo diminui e some ●
● meu mundo se tornou minúsculo um grão ●

● minha cama meus travesseiros o lençol ●
● a tempestade não brinca nem arrefece ●
● agora a treva do céu aparece e roda roda ●
● gigante que tritura a terra as gentes o mar ●
● só a cama meus três travesseiros o lençol ●
● que agora se foi logo os travesseiros a cama ●
● se partem se espalham se retorcem e eu rio ●

● talvez não seja pelo elefante cor de rosa ●
● azul que se equilibra sobre o cão sarnento ●
● como um palhaço num picadeiro pobre ●
● olhando um elefante cor de rosa azul ●
● que se equilibra sobre um cão sarnento ●
● com as pernas finas cor de rosa azul ●
● pernas finas rosa azul e eu fico rindo ●

● das hienas desse circo que gira gira ●
● das focas gordas das baleias amestradas ●
● das equilibristas bêbadas sobre cavalos ●
● dos banqueiros domadores de ratos ●
● contando litros de sangue suor e olhos ●
● em conserva línguas roxas e inchadas ●
● mas talvez não seja por nada disso e eu ●

● só ria pelo elefante cor de rosa azul ●
● que se equilibra sobre o cão sarnento ●
● com suas pernas finas rosas e azul azul ●
● ou porque rodopiam sobre o resto de mim ●
● toneladas de cebolas que me faziam chorar ●
● tomates como sois como estrelas do mar ●
● talvez seja por isso que gargalho e danço ●

● ou até mesmo por não restar nada de mim ●
● só o riso com dentes quebrados e podres ●
● no centro ridículo dessa tempestade nua ●
● sim é essa dentadura partida e cor de rosa ●
● sem lábios sem língua rosa azul sem rosto ●
● o que me faz rir faz no melhor dos mundos ●
● como se as tempestades não existissem ●




alberto lins caldas








07 maio 2018

júlio pomar / TRATAdoDITOeFEITO




XXX

                                               Terceira


                                               Todo o canteiro conta
que ouve a pedra. Eu ouço
a palavra, tiro-lhe o vulto, tomo o seu peso
lembrado do que nela entronca ou do que dela se desprende.
Ao descascar a polpa túrgida
de mil sentidos, provado ou não ainda o fruto apetecido, nascem
memórias, ecoam madrugadas, sucedem-se
lembranças cuja carga declarada
não corresponde ou só em parte ao que vinha
à vista.



júlio pomar
poema TRATAdoDITOeFEITO
dom quixote
2004








06 maio 2018

fernando pessoa / cai amplo o frio e eu durmo na tardança




Cai amplo o frio e eu durmo na tardança
De adormecer.
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,
Nem desejo de os ter.

E um choro por meu ser me inunda
A imaginação.
Saudade vaga, anónima, profunda,
Náusea da indecisão.

Frio do Inverno duro, não te tira
Agasalho ou amor.
Dentro em meus ossos teu tremor delira.
Cessa, seja eu quem for!

19-1-1931



fernando pessoa
novas poesias inéditas
ática
1973







05 maio 2018

fiama hasse pais brandão / depois da chuva




Depois da chuva as formas
das árvores de chumbo. Demasia
do cortantes. A cor que substitui
os negros de uma tarde chuv
osa. Um azul próprio do parar
da chuva quando é súbito.

Foi estranha a desaparição
das formas no ar. A queda
dos tons. De repente esvoa
çaram as formas no ar alto.



fiama hasse pais brandão
natureza paralela (1978)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017








04 maio 2018

ana hatherly / 463 tisanas


  
441

É de manhã e estou passeando de bicicleta pelo campo. É Primavera. Há muitas flores com suas deslumbrantes corolas bem abertas. Algumas já foram derrubadas por alguém que as pisou. Outras estão só vergadas com as pétalas voltadas para a terra como quem diz: entregar-me a quem?



ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006













03 maio 2018

josé tolentino mendonça / ardis




A incompreendida figura do amor
a céu descoberto sem que se exprime
rodeamo-nos de vinganças, medidas, ardis
e enchemos os livros da ardente ausência
de nós próprios

Ao entardecer corremos
ao pontão sobre o mar
e a vida só se parece
com alguma coisa que sabemos



josé tolentino mendonça
a que distância deixaste o coração
assírio & alvim
1998








02 maio 2018

paulo da costa domingos / tira




Bofetões. É o que levais
desta vida. Falta de tempo
para fugir ao sofrimento.
Masturbações às escondidas,
tais e tantas e de tantas
formas aos patrões, que já nem
sabeis qual o vosso sexo.

E outras coisas que não ficam bem
ditas num poema para a risível
História da Literatura, é o que levais
enquanto uns poucos, os puros
habituais, só consomem recursos.

Por isso, ide e julgai esses,
olhai direito nos olhos
o vosso sustentável vampiro.

A nu.


  
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017









01 maio 2018

paul éluard / aos meus camaradas tipógrafos




Tínhamos o mesmo ofício
Que ajudava a ver na noite
Ver é compreender e agir
É ser ou desaparecer.

Era preciso acreditar preciso
Crer que está nos homens o poder
De ser livre e de ser melhor
Que o destino que lhe foi imposto

E nós esperávamos a grande primavera
E nós esperávamos uma vida perfeita
E que a claridade se decida
A carregar todo o peso do mundo.



paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971







30 abril 2018

antónio ramos rosa / a sede do silêncio





                A sede do silêncio é um fruto do silêncio. A sede da palavra nasce da palavra que nasce do silêncio. A necessidade do silêncio é uma necessidade da palavra que (não) se perde na palavra. Distância, deserto, de árvore em árvore, a eterna sede, a sede do eterno, da frugal transparência do efémero. Terra, toda a distância da terra em cada sílaba, em cada vocábulo sem água. A página é deserto e caminho errante, obstinado. O horizonte do deserto anula a miragem, nega o imaginário. A sede da página é sede da ausência e sede da palavra do horizonte. A ausência é a segunda dimensão do dia, o outro lábio da terra, a verdadeira voz do vocábulo.




antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001