02 abril 2018

fernando pinto do amaral / anjos




«Hoje é um dia como os outros».
Nunca pude esta frase banal
e porém, talvez não igual às outras
– escrita deixada a meio, descoberta
devorada plo tempo que se evola
à medida que mais se aproxima - «tão perto»
mas agora «tão longe» de ti. Rafaella,
agora que também eu posso ter
isso a que toda a gente chama um nome
próprio: Ralf Rahab, ou melhor, Karl Engel.

Hoje não foi um dia como os outros:
já consigo sentir latejar
o sangue sob a pele,
desenhar o arco-íris, ceder
às tentações do Tempo, que bebe comigo
– ele mesmo, é verdade! –
até de madrugada. Rafaella,
segreda-me ao ouvido qualquer coisa,
não me deixes aqui, assim, perdido,
sujeito a leis que nunca foram minhas,
à tirania estúpida e universal
dos pequenos rectângulos  de papel
onde sorri tranquila a Clara Schumann.

Amanhã não será um dia como os outros:
irei salvar de novo uma criança
e depois, Rafaella, nos teus braços
voltarei a escutar, ainda mais pura,
a voz silenciosa da eternidade.



fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997







01 abril 2018

alberto caeiro / se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o




XXX
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.

O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.

s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946






31 março 2018

vasco graça moura / o mês de dezembro




I
continuamente, escuta, me destruo
e as longas águas sem sossego fogem
e os ossos de dezembro coincidem
e são do inverno estas metamorfoses

não falarei da vida porque a vida
perdidamente triste se sustenta
de surdos pensamentos e desastres
e devagar a luz se lhe estrangula

sempre assim foi esta periferia
da escrita a desfazer-se e é no inverno
que nos olhamos com ferocidade
antes que o tempo devore outros discursos


vasco da graça moura
o mês de dezembro
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007







30 março 2018

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




4
Nas grandes linhas que partem para os horizontes
onde tu caminhas à tarde agitando os braços
nas noites nas nossas noites de derradeiro amor
o meu cabelo em chamas anuncia no teu rosto
a noite que abandona as montanhas duma certa idade
e nos desfiladeiros onde se projecta até ao desespero
é o cantar duma ave estranha
no crepúsculo é a prostituída flor vermelha
oculta nas vielas escuras da cidade
onde as pontes cruzam as ruas em movimento
e a tua imagem acompanha a sombra dos veículos
nas vitrines o manequim bem vestido ou abandonado
que as aves adoram ao amanhecer
quando ainda adormecida nos areais
os teus seios incandescem os meus múltiplos abraços
nas casas a janela sempre fechada
nos jardins o banco em ruínas
e eu
o mago extra-mundo
mago fascinador e sempre mutilado
a estudar quiromância nas noites de desespero
e chamar a tua imagem
para a posse em que o acto sexual é a troca de um cabelo.
Não a deusa ou o embrião
não o homem civilizado mas sim a mosca
dizendo que flor renasce quando surges
nas rotas nas longas muralhas
nas pedras onde o tempo grava os poemas
que os meus dedos tentam perfurar
na necessidade mítica dum desejo plausível
nos leitos onde todo o nosso amor for vivido
nas noites que as estrelas encaminham
nas águas da praia onde adormecemos
o teu ombro no meu rosto
as tuas mãos penetrando a areia
como o ventos penetra os triângulos petrificados
os teus cabelos descendo até ao mar.



carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
de perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998










29 março 2018

konstandinos kavafis / jura





Jura muitas vezes     começar uma vida melhor.
Mas quando vem a noite     com os seus próprios conselhos,
com os seus compromissos,     e com as suas promessas;
mas quando vem a noite     com a sua própria força
do corpo que quer e pede, para a mesma
alegria fatal, perdido, vai de novo.



konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005









28 março 2018

valter hugo mãe / quantas vezes te inventei ao pé das águas do lago




quantas vezes te inventei ao pé das águas do lago
e imaginei que me empurravas ladeira
abaixo para enfim
morrer de amor

sozinho lentamente
como só lentamente se deve morrer de amor



valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
quarto livro
o resto da minha alegria
assírio & alvim
2018






27 março 2018

manuel cintra / levas-me inteiro


  


                Levas-me inteiro
                Mais longe nos tecidos
                Algures a germinar
                Um ovo
                Em estado de promessa.

Choro, talvez
Chore ainda mas ainda mais talvez

Lavas-me, escorro
De ti para as ruas ainda mais de ti

                Seria simples imaginar
                Uma das tuas mãos
                Com os ossos da minha.
                A  outra, a carne.

Mas eu não gosto de coisas simples.



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981







26 março 2018

eloy sánchez rosillo / a janela




                Nas tardes de março, quando nada
resta em minha cidade que recorde o inverno
e uma doce moleza invade o ânimo
disposto à indolência,
é belo olhar pela janela
enquanto se ouve música,
ver as horas passar, ver como o tempo
flui e vai declinando pouco a pouco
a luz crepuscular. Nenhum cuidado
nos turba o coração e ocupam-nos
pensamentos amáveis acaso vagamente
melancólicos.
                      Chegam
sombras às ruas e ao aposento
onde, em paz, sozinhos, nos sentimos
talvez quase felizes. No céu
o sol apaga-se e, depois, devagar,
a noite vai acendendo as estrelas.



eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004








25 março 2018

alberto caeiro / vai alta no céu a lua da primavera




Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

6-7-1914


alberto caeiro
o pastor amoroso
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946







24 março 2018

eugénio de andrade / foz do douro




É outra vez abril
– e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!




eugénio de andrade
escrita da terra
poesia
fundação eugénio de andrade
2000














23 março 2018

artur do cruzeiro seixas / para vos dizer a verdade




Para vos dizer a verdade
o meu sexo é uma cadeira
uma torrente verde
um retrato de Cézanne
uma baixela de prata no fundo do mar
o sonho de um osso
a imitação de uma cidade.

Abro uma janela
no sítio onde estava um navio
mas cínica a pedra vem – revém
e completa o ciclo
das loucas exigências.

Aceno aos meus sonhos
que estão do outro lado
enquanto passa uma
qualquer Nova Iorque
a cada passo
tropeçando nos seus próprios cabelos.


Áfricas 70



artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002








22 março 2018

antonio gamoneda / teu cabelo encanece entre minhas mãos e




Teu cabelo encanece entre minhas mãos e, como
águas silenciosas, as recordações abandonam-nos.
Sinto a frialdade da existência mas teu cheiro espa-
lha-se nos quartos e tua lascívia vive em meu coração
e meu pensamentos penetra em tuas feridas.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999











21 março 2018

antónio franco alexandre / ao humano desprezo bem queria




Ao humano desprezo bem queria
responder com um rasgo de heroísmo
ou de bem calculada fantasia;
encaminhar algum pedestre implume
perdido nos meandros do destino,
vencer um monstro em singular combate,
ou descobrir as máquinas da luz.
Dava-me já, porém, por satisfeito
se a minha arte fosse acompanhada
por discreto rumor de élitros e asas,
e eu mesmo, amoris causa, recebido
na academia eterna dos insectos.
Nem eu nasci da sua impura raça,
nem sei de nenhum rito que me faça
ser digno do seu sumo sacerdócio;
menos feliz do que o mosquito e a traça,
não sou, por mera herança, dos eleitos;
e por muito que estude e em livros leia
a história toda dos seus reis e magos,
ao fim do dia volto, magoado, à teia
sem ver o meu labor recompensado.
Assim hei-de ficar até ao fim dos dias,
objecto de temor e fria troça,
sujeito à condição que não alcanço.



antónio franco alexandre
aracne
assírio & alvim
2004