04 junho 2017

alberto caeiro / pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares


XXXIII

Pobres das flores nos canteiros dos jardins regulares.
Parecem ter medo da polícia...
Mas tão boas que florescem do mesmo modo
E têm o mesmo sorriso antigo
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente
Para ver se elas falavam...
s.d.


alberto caeiro
o guardador de rebanhos





03 junho 2017

herberto helder / fonte



III
Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta
agora entre águas e silêncios.
Nada te acorda – nem as folhas dos ulmos,
nem os rios, nem os girassóis,
nem a paisagem arrebatada e casta.
– Espero do tempo novo todos os milagres,
menos tu.

Somente  corres no meu sangue memoriado
e sobes, carne das palavras outra vez,
todas as vezes, imperecíveis e virgens.
– Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,
outras mãos mais puras
e mais sagazes,
e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude
inteligente.

– Espero cobrir-te novamente de júbilo, ó corola
imarcescível do canto.
Mas tu estarás mais branca com a boca selada
pelas lisas pedras.
E sei que terei o amor e o pão e a água
e o sangue e as palavras e os frutos.
Mas tu, ó rosa fria,
ó odre das vinhas antigas e limpas?

Do tempo novo espero
o sinal ardente e incorrupto,
mas levo os dedos ao teu nome prolongado,
ó cerrada mãe,
levo os dedos vazios –
e só a tua morte cresce por eles totalmente.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





02 junho 2017

antónio franco alexandre / duende




3.

Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho o rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fingido.



antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002





01 junho 2017

josé tolentino mendonça / o grito




Dos dias, sim, mas das noites
quem pergunta pelo nome
essas flores selvagens
(seriam flores?)
trazidas  pelo teu assobio

A beleza nunca é clara
o modo em que se aproxima
Somos com certas coisas
um mundo ainda terrível
incapaz de explicações
sem nenhuma das certezas
mesmo aquelas, ínfimas, que sustentam
uma palavra, um olhar ou um grito

Só resta a maneira
mais pura:
de igual para igual
tão desconhecidos


josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001






31 maio 2017

konstandinos kavafis / muros




Sem circunspecção, sem mágoa, sem pejo
grandes e altos em redor de mim construíram muros.

E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;

porque tantas coisas havia a fazer lá fora por ti.
Quando construíram os muros como é que não reparei, ah.

Mas nunca o estrondo de pedreiros ou som ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.




konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994





30 maio 2017

edna st. vincent millay / para um jovem poeta



O tempo não consegue separar a asa de uma ave da ave.
Ave e asa, em completa junção,
Descem, e uma só pena são.

Nada que no ar se sustente,
Nem a cotovia, nem tu igualmente.
Morre como morre a outra gente.



edna st. vincent millay
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




29 maio 2017

jorge de sousa braga / poema de amor




Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
e quase ia morrendo com o receio de que não
                    te coubesse no dedo.





jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991





28 maio 2017

bernardo soares / a história nega as coisas certas




A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la.
Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro!

Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. Manipansos dos negros de olhos incertos e espantados, deuses-bichos dos selvagens de sertões emaranhados, símbolos figurados de egípcios, claras divindades gregas, hirtos deuses romanos, Mitra senhor do Sol e da emoção, Jesus senhor da consequência e da caridade, critérios vários do mesmo Cristo, santos novos deuses das novas vilas, todos desfilam, todos, na marcha fúnebre (romaria ou enterro) do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



27 maio 2017

al berto / trabalhos do olhar



I

escrevo-te a sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao
fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a
sua imobilidade

habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiografias de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar




al berto
trabalhos do olhar
1979/82


26 maio 2017

henrique guimarães / valentino




Furtei a Deus um mistério
Para que nele ardesse o Outono - teu beijo!
Dancei, cobri-te de sangue
E acendi fogueiras para veres as cidades à noite.

Derrubei a flor na pólvora - sedutora
monstruosa de mãos púrpuras
que ao tempo errado almejou fim.
Minha história, dobra-se nua ao instinto
Zoa de imagens sabotadas e tempestuosas
Respira para que em ti o abraço seja quente
e relutante como o punho dos mares.

Por isso, eu sei
que meu espírito, um dia
Herdará da fome
uma estação do
Inferno.



henrique guimarães




25 maio 2017

josé gomes ferreira / debaixo deste sol, outro sol coincidente…



                           (Depois de reler Teixeira de Pascoaes.)



Debaixo deste sol, outro sol coincidente…
Por dentro das pedras, outras pedras de bruma…

Feliz gente!
Com duas realidades
– e eu sem ter nenhuma.


josé gomes ferreira
eléctrico 1943-1944-1945
poesia III
portugália
1971




24 maio 2017

vítor nogueira / mestre




Eis o segredo da arte: olhar constantemente
a calçada, nunca abandonar o martelo
nem a pedra que nos vem parar à mão.
Há que perder o medo e dar-lhe o golpe
certeiro. Ninguém quer saber quem somos,
só do que somos capazes.

Tudo isto é, porém, contrário à vida.
Os ciclos temáticos podem durar
dois, três anos? Duas, três décadas?
Será possível continuar a fazer eternamente
o mesmo? Como é que alguém, uma cidade,
pode ser tão claramente sádico?

Mestre-calceteiro, com o devido respeito,
não temos opinião. É mais seguro
nestes casos. Inferiores em número e armas,
o nosso olhar está na calçada, cegos
a tudo o mais que se mova.


vítor nogueira
telhados de vidro
nr. 12 maio
averno
2009






23 maio 2017

james merrill / uma dedicatória




Hans, há momentos em que todo o espírito
Se transforma num par de olhos transbordantes, ou lábios
Abrindo-se para beber da funda nascente de uma morte
Cuja frescura ainda não precisam de entender.
São estes os momentos, se os há, em que um anjo entra
No espírito, como reis nas vestes
De um pobre cabreiro, para os seus actos de caridade.
Há momentos em que a fala é apenas uma boca colada
Revê e humildemente na mão do anjo.



james merrill
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. josé alberto de oliveira
assírio & alvim
2001