23 novembro 2016

carlos poças falcão / a lamentação



Há uma lamentação nas coisas imperfeitas
como se amassem, como se recordassem.
Tudo pede um deus. E o lamento
é a própria imperfeição. A terra é fulgurante,
macera as criaturas, dá-lhes alimento,
venenos, temperaturas. E sobre os arenitos
depõe restos de chuva, as erosões gravadas
dos apagamentos. A dor deve doer
e os animais agitam-se, movem a cabeça
ao mais leve chamamento. Mas não há chamamento.
Apenas o sussurro de regresso ao horizonte:
um álamo negro, o deus,, a voz humana.



carlos poças falcão
movimento e repouso
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012




22 novembro 2016

carlos de oliveira / nevoeiro



A cidade caía
casa a casa
do céu sobre sobre as colinas,
construída de cima para baixo
por chuvas e neblinas,
encontrava
a outra cidade que subia
do chão com o luar
das janelas acesas
e no ar
o choque as destruía
silenciosamente,
de modo que se via
apenas a cidade inexistente.




carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998



21 novembro 2016

jorge luís borges / g. a.bürger




Nunca hei-de entender
por que me afectam desta maneira as coisas
que aconteceram a Bürger
(as suas duas datas estão na enciclopédia)
numa das cidades da planície
junto ao rio que tem uma só margem
onde crescem palmeiras, não pinhais.
Tal como todos os homens,
disse e ouviu mentiras,
foi traído e foi traidor,
agonizou muitas vezes por amor
e após uma noite de insónia
viu os cinzentos cristais da alba,
mas mereceu a grande voz de Shakespeare
(na qual estão as outras)
e a de Angelus Silesius de Breslau
e com falso descuido limou alguns versos
ao estilo da sua época.
Sabia que o presente não é mais
que uma fugaz partícula do passado
e que somos feitos de esquecimento:
sabedoria tão inútil
como os corolários de Espinosa
ou as magias do medo.
Na cidade, junto ao rio imóvel,
uns dois mil anos depois da morte de um deus
(a história que menciono é antiga),
Bürger está sozinho e agora
precisamente agora, lima uns versos.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





20 novembro 2016

fernando pessoa / ensaio sobre poética



Professor Trochee
ENSAIO SOBRE POÉTICA - T
ENSAIO SOBRE POÉTICA

Escrito para edificação e para a instrução dos pretensos poetas.

Quando penso no número abundante de rapazes e no superabundante número de mulheres jovens no presente século, quando vejo a natural e consequente profusão de atracções mútuas, sempre que cogito no grande número de composições poéticas que dali emanam, sempre que o meu pensamento se debruça sobre a formação demente e caótica destas efusões, fico perfeitamente convencido que, se escrever um ensaio sobre a arte poética, estarei contribuindo grandemente para o bem público.

Contudo, ao considerar a melhor e mais prática maneira de começar tão importante debate, concluí sensatamente que uma exposição directa das regras da poética era a maneira como eu devia apresentar o assunto ao leitor. Achei inútil e inapropriado referir-me aos antigos críticos de arte, dado que os críticos modernos são mais agradáveis de citar e disseram tudo o que há a dizer sobre o assunto, e mesmo um pouco mais — o que é da sua autoria, onde são originais. Ao pôr de parte os críticos da antiguidade tenho duas boas razões, a segunda das quais é que, mesmo que soubesse alguma coisa sobre eles, não gostaria de impingir a minha ciência escolar ao leitor. Começo então a minha exposição.

Primeiro penso que seria oportuno chamar a atenção do pretenso poeta para um facto que não é habitualmente considerado e que ainda é digno de consideração. Espero escapar ao ridículo universal ao afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém, que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao principiante o prazer desta liberdade poética. Não que o aconselhe a acrescentar quaisquer sílabas aos seus versos, mas a subtracção de algumas é muitas vezes conveniente e desejável. Posso ainda recomendar que, por esta mesma regra limitativa, tendo o jovem poeta cortado algumas sílabas ao seu poema, prossiga com o mesmo método e corte as restantes sílabas, embora possa não alcançar qualquer espécie de popularidade, terá todavia revelado um extraordinário senso-comum poético.

Posso também explicar aqui que o meu método para a formação de regras que estou a expor é o melhor. Vejo e penso nos escritos dos poetas modernos, e previno o leitor para fazer como eu fiz. Porém, se recomendo ao pretenso poeta que não se preocupe, na prática, com a escansão, é porque descobri ser isto uma regra e uma condição nos poemas de hoje. Nada como a mais cuidadosa consideração e o mais honesto apego a um modelo para ser usado por um aprendiz na arte. Em todos os casos, podem confiar em mim para vos dar o melhor método e as melhores regras.

Abordo o assunto da rima com um grande receio em vez de proferir algumas observações que poderiam parecer demasiado ortodoxas, quebrarei rudemente uma das regras mais obrigatórias da poesia moderna. Sou forçado a concordar com o Sr. C. D. quando diz que o ritmo não deve ser muito evidente em qualquer poema, embora este possa ser chamado rimado e os numerosos poetas modernos que exemplificam este preceito têm a minha inteira aprovação. A poesia devia encorajar o pensamento e apelar para a reflexão: nada melhor que o prazer do crítico quando, depois de um minuto de dissecação da composição, percebe, primeiro, que é poesia e não prosa, segundo, após um grande esforço, após um profundo exame, que é rimado e não branco.

Tais belezas poéticas, serão, no entanto, visíveis só ao crítico experimentado, porque o homem de gosto poético comum é muitas vezes, quando chamado a criticar um poema, colocado numa situação indesejável. Por exemplo, há cerca de uma semana, um amigo meu pediu-me a opinião sobre um poema que tinha escrito. Entregou-me um papel. Eu fiz algumas e vãs tentativas para compreender a efusão, mas rapidamente as corrigi invertendo a posição do papel para conseguir captar um melhor sentido. Felizmente como me fora antecipadamente dito que o papel que estava diante de mim tinha um poema, comecei imediatamente, sem qualquer precaução, a tecer copiosos elogios à excelência do verso branco. Corado de indignação, o meu amigo disse que a sua composição era rimada, e, além disso, que se tratava dos chamados versos spenserianos. Não muito convencido pela sua impúdica invenção de um nome (como se Spencer alguma vez tivesse escrito poesia!), continuei a examinar a composição que tinha na frente mas, não conseguindo sequer aproximar-me do sentido, limitei-me a elogiá-la, comentando particularmente a originalidade de tratamento. Ao devolver o papel ao meu amigo, este passou-lhe uma vista de olhos para me mostrar algo de especial, o seu rosto nublou-se e pareceu intrigado.

«Raios», disse ele, «dei-lhe o papel errado. Isto é a conta do meu alfaiate!»

Que este triste episódio sirva de lição ao crítico de poesia.

Nessa destruição do sentimento poético, o verso branco, só tocarei ao de leve; mas como vários amigos meus me têm repetidamente pedido a fórmula ou receita para a sua produção, dou neste momento a conhecer as directivas àqueles dos meus leitores que tiveram a coragem de me acompanhar até aqui. Na verdade, no campo da poesia, não há nada mais fácil do que produzir verso branco.

A primeira coisa a fazer é arranjar tinta, papel e uma caneta; e então escrever normalmente, em linguagem corrente tal como se fala (o que tecnicamente se chama prosa) o que se quer dizer; ou, se for esperto, o que estiver a pensar. O passo seguinte é lançar mão de uma régua graduada em polegadas ou centímetros, e marcar, com um traço, a efusão da sua prosa, cortando quatro polegadas ou dez centímetros no comprimento: eis as linhas da sua composição em verso branco. No caso de a linha não ficar certa, uns «Alases», ou «Ohs» ou «Ahs», ou uma introdução de invocação às Musas preencherão o espaço exigido. Esta é a receita moderna. Claro que não sei directamente se este é o método que os poetas modernos utilizam. Mas, ao examinar os seus poemas, descobri que a evidência interna é conclusiva, apontando sempre para tal método de composição.

Quanto à escansão do verso branco, não se preocupe com isso; primeiro, porque seja de que espécie for, os críticos vão encontrar nele os erros mais ultrajantes; mas, se com o tempo se tornar famoso, os mesmos senhores justificarão tudo o que fizer; e ficará surpreendido com as coisas que simbolizou, insinuou, quis dizer.

Por último, volto a insistir com o leitor que, nesta era do automóvel e da arte pela arte, não há qualquer restrição ao comprimento da linha em poesia. Podem-se escrever linhas de duas, três, cinco, dez, vinte, trinta sílabas ou mais que não tem importância nenhuma; só quando as linhas de um poema contêm mais do que um certo número de sílabas, essa composição é geralmente conhecida por prosa. Esta dificuldade de se saber qual é o número de sílabas que estabelece o limite entre poesia e prosa faz com que seja modernamente impossível distinguir o que é uma e o que é a outra. A distinção interna é, claro está, impossível. Depois de algum estudo, descobri que pode ser geralmente considerada poesia quando cada linha começa com letra maiúscula. Se o leitor conseguir descobrir outra diferença, ficaria muito grato que ma desse a conhecer.
s.d.



fernando pessoa
pessoa por conhecer - textos para um novo mapa.
teresa rita lopes
estampa
1990




19 novembro 2016

josé gomes ferreira / depois vieste tu



XVIII

               (Experiência.)


Depois vieste tu
(tu quem?)
e meteste nos sonhos, no mel, nos cravos
as pedras que piso..
E apedrejaste a morte
com o teu sorriso.


josé gomes ferreira
poesia V
memória-I 1957-1958
portugália
1973



18 novembro 2016

irene lisboa / assim se vive



Anda uma pessoa fechada consigo.
Assim se vive.
Se vive, se finge que vive.

Lindos dias
Atravessam-se jardins, vê-se gente.
E a paz e o movimento e fora e dentro de casa
um vácuo, um vácuo!

Não dei aquele beijo…
Não o podia dar.
Mas senti que mo pediram.
Aquela mansidão!
Não era bondade, era só desejo.

Não dei aquele beijo que devia ter dado e acei-
tado se fosse mais hábil.
Dado e aceitado sem amor profundo.
Amor profundo!...
Tão raro, tão imprevisto, tão mal praticado!
Gosto do amor? Talvez.
Desespero, desespero apaixonado.



irene lisboa
umdia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991





17 novembro 2016

vitorino nemésio / a árvore do silêncio



Se a nossa voz crescesse, onde era a árvore?
Em que pontas, a corola do silêncio?
Coração já cansado, és a raiz:
Uma ave te passe a outro país.

Coisas de terra são palavra.
Semeia o que calou.
Não faz sentido quem lavra
Se o não colhe do que amou.

Assim, sílaba e folha, porque não
Num só ramo levá-las
com a graça e o redondo de uma mão?

(Tu não te calas? Tu não te calas?!)



vitorino nemésio
canto de véspera
antologia poética
asa
2002




16 novembro 2016

josé miguel silva / queixas dum utente




Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo, ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.


josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014



15 novembro 2016

sophia de mello breyner andresen / as fotografias



Era quase no inverno aquele dia
Tempo de grandes passeios
Confusamente agora recordados –
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava –
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre o perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias


sophia de mello breyner andresen
dual
caminho
2004



14 novembro 2016

pier paolo pasolini / o pci aos jovens



(excerto)

O movimento estudantil
não frequenta os evangelhos cuja leitura
os seus aduladores de meia-idade lhe atribuem
para se sentirem jovens e recriarem virgindades:
só há uma coisa que os estudantes realmente conhecem:
o moralismo do pai magistrado ou funcionário,
a violência conformista do irmão mais velho
(naturalmente a enveredar pelo caminho do pai),
o ódio da mãe contra a cultura, segundo
as suas origens camponesas, se bem que longínquas.
 Isto, queridos filhos, bem o sabeis.
E aplicai-lo através de dois inderrogáveis sentimentos:
A consciência dos vossos direitos(já se sabe, a democracia
Só a vós toma em consideração) e a vontade
De poder.




pier paolo pasolini
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




13 novembro 2016

ricardo reis / não quero recordar nem conhecer-me



Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
        Ignorar que vivemos
        Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
        Quando passa connosco,
        Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
        Melhor vida é a vida
        Que dura sem medir-se.

2-9-1923


odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




12 novembro 2016

al berto / panos estendidos



[5]

Panos estendidos sobre os animais mortos
névoa
escondendo a paisagem onde caminha o corpo
que esqueceste no limiar da manhã

senta-te na cama - toca nos animais
solta-os e vais ver que a paisagem gravou
sombras nos olhos -fecha-os
para que tudo arda com a intensidade de um astro

dá as mãos e o coração
às feras do crepúsculo - quando o termómetro
marcar 39 e meio e nas pálpebras se abrirem
charcos de trevas... mas

por agora
fica sossegado -bebe o leite quente
aconchega as mantas - dorme
com o fio da gadanha enrolado ao pescoço



al berto
o último coração do sonho
editora quasi
2000





11 novembro 2016

rui diniz / descida de dante ao céu



e naquele outono frio estive com antónia pela última
vez em singapura. Cloé cambaleava drogada à
nossa frente na manhã que raiava. Um estranho
país, a índia, onde vagos coronéis se queimavam
vivos uma praça, execuções quase diárias, apenas
um exemplo. Céline teria gostado disto. Ou das
casas amarelas no outono, ou da bomba que
destruiu uma noite a fachada da casa do
governador. Antónia, suas mãos. O gelo dos olhos
valia o ouro do corpo, o sangue do céu, a
economia morta. Grande era a tendência para
passar fome. O mal de Cloé era a sua anemia
impiedosa, o que ela tinha que suportar pela
altura das chuvas. Nos dias históricos enviava-me
o meu pai, pontualmente, uma madeixa
do seu bigode, uma perfeita imposição de respeito.
A minha força filial era, por seu turno, enorme.
Não – dissera eu a antónia mas ela nem sequer falara.
A sua voz (antónia) podia
sair da garganta ou do ventre, indistintamente.
Não que ela fosse ventríloqua, mas o
certo é que sofrera muito. Dachau, provavelmente.
Ou um outro lugar, muito pior, que não
chegara à celebridade. Eu, pessoalmente, não
desejava confessara cloé o meu imenso amor. Mas
houve um dia em que tive que o fazer. Em
singapura, como sabem, não há mar. O índico
porém, baila nas pupilas da branca cloé, e
o incêndio da sua casa, na virgínia.
Episódios da guerra civil. Cloé,
antónia, o meu pai, eu, Céline
e coronéis carbonizados. Quando pela ultima vez
em baden-baden olhei na rua antónia e
cloé morta sem sangue, que antónia levava
pela mão.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977