19 abril 2016

pedro spagnol / fiz do murcho tempo vão


(…)

fiz do murcho tempo vão
roçando nos dentes da lagoa de dentro das bocas
todas as espessuras cardíacas acumuladas
de saberes esquecidos nas rugas das malhas
dobrando um retorno em pausa

(…)

encharquei bocas fechadas
que escondiam os gozos da saliva
palavra que escorre antes do corpo

todo mundo se guarda para um amanhã meio pronto.


pedro spagnol
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013




18 abril 2016

rené char / partilha formal



XLVII

Reconhecer dois tipos de possível: o possível diurno e o possível proibido. Tornar, se possível, o primeiro igual ao segundo; encaminhá-los na via régia do fascinante impossível, o mais alto grau do compreensível.


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000




17 abril 2016

andréas empeiríkos / as setas



Uma jovem num jardim
Duas mulheres num vaso
Três moças em meu coração
Sem horas nem limites.
Uma palma na vidraça
Uma palma sobre o peito
Um botão fora da casa
Um seio que se desvela
Enquanto o arqueiro com as setas
Brilha alto no céu
Sem horas nem limites.



andréas empeiríkos
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé paulo paes
assírio & alvim
2001



16 abril 2016

mário cesariny / tocata



quando tu tocas Debussy
chove extraordinariamente
o sol as casas levemente doira
mas na saleta está-se bem
fazes sempre assim!

por mim
sinto um duende benigno que sorri
não bem de ti!
nada de Debussy!
mas do igual da hora
de sempre chover
de estar sempre frio lá fora
quando tu tocas Debussy


mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981



15 abril 2016

yvette centeno / em setembro, no algarve



Deito-me no muro do quintal.
Aguardo o pôr do sol
quando os pássaros cantam
e a terra exala um cheiro quente
a caruma e tojo.
No meio das árvores
a romãzeira florida parece descansar.
Chegou ao fim do seu dia.
Olho o sol.
E eu
quando chegarei eu?

  

yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998



14 abril 2016

humberto díaz casanueva / tentativa de solidão



Por meus lados adormecidos, sempre atrás de uma claridade
desci até olhar-me de frente.
Escrevo as tristezas com minha velha flauta de sombras
enquanto nos copos de vinho bebo meus diversos rostos.
Sem chorar despojando-me de tantos enigmas mortais
aguardo a alma que fugitiva vem do seu passado
em busca de uma fronte adormecida para descer para a noite.
Quero estar sozinho em meu grande espectro, meus olhos desertos,
meus cantos doem-me porque não findam em seu próprio delírio,
mal reluzo neles, mal vou escorrendo
como o orvalho desce dos olhos das sombras.
Quero ser meu próprio testemunho, a realidade de meu signo,
mas,  – que povoado imenso galopa, respira, sofre?
O peito de raiz perturbado está com substâncias alheias.
Vacila esta veia que entra à minha frente vinda do crepúsculo,
tão vasta como o passado de fogo de uma estrela,
deixa-me  seus sinais de luz mas seu esconjuro não consegue
 que esta fronte asile também nós malignos.
Ah, a alma volte a fugir com os pés gelados do susto,
no meu interior com cilício estou para devolver ao dia.




humberto díaz casanueva
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001



13 abril 2016

fernando pessoa / as frases simples de caeiro




Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade…

                «Porque eu sou do tamanho do que vejo
                E não do tamanho da minha altura.»

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

«Sou do tamanho do que vejo!» Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. «Sou do tamanho do que vejo!» Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. «Sou do tamanho do que vejo!» E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. «Sou do tamanho do que vejo!» E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.

24-3-1930


fernando pessoa
ficção em prosa
confissões





12 abril 2016

luís miguel nava / o espelho



O céu inteiriçou-se a todo o comprimento
Do vidro ao levantar a persiana.


Levou as mãos ao rosto, atravessou a sala, ao canto
Da qual reinava o espelho, e aproximou-se
Dele como o não fazia há muitos anos.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




11 abril 2016

carlos poças falcão / dois leões puxam o carro



Dois leões puxam o carro. São de ouro.
Um homem trata da imortalidade. Avança
grandemente sob os raios de um sol
escuro do outro lado. Há vento em tudo isto.
Prepara-se o mármore, ou a negra diorite,ou
entre as mãos a argila toma a forma
dessa face. Rugem os leões iluminados.
Quem irá deter esse guerreiro? Avança
pelo centro dos milénios, o arco retesado
o rosto devastado pelo tempo.


carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012



10 abril 2016

rui costa / bar do acaso



Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.

Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro

e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.


rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005




09 abril 2016

nuno júdice / botânica sentimental



No meio de algumas folhas, uma
outra folha: esta, seca, arrancada
de um ramo por mãos que
já não existem. De que recordação
terá sido o pretexto? Oferta de quem
a quem, quando a primavera se
prestava a esses jogos? Hoje,
porém, não é mais do que isso: a folha
que cai de um livro e que,
por um escrúpulo de limpeza,
alguém deita para o lixo.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



08 abril 2016

ruy belo / a fonte da arte



Homenageio a tua primavera em flor
alma precocemente iluminada
que pões a salvação no mais profundo risco
o silêncio dos olhos sobranceiros
na predestinação da profecia
suavidade um dia em minha morte
com o olhar imerso na tristeza
Povoavam pássaros a noite
tudo era pensamento para mim
e as palavras só vinham depois
Ó meu país longínquo donde venho
nessa nuvem de vida sobre a minha morte
Na manhã combalida do domingo
na primavera dolorosa dos teus passos ruy
ao tempo de uma má reputação
o metro tem a voz de um cordeiro triste
É isso apenas isso e o demais são
a morte e a nascença dos contrários a
fórmula da ternura e do sossego
abismo de ameaças nos seus olhos
regiões insondáveis e inacessíveis
pequeníssimas flores da memória
relâmpago dourado do olhar
os cheiros acres das redondas cavidades
a tua boca de ouro de onde voam as palavras
animadas figuras do meu sonho
os peixes negros e dourados das recordações
olhos brilhantes de animais desconhecidos
coisas que por pensá-las eu as sinto
Os dias diminuem é outono
alguém alguma coisa me virá desse distante bosque
O que dirão de mim o castanheiro
os rostos múltiplos trazidos pela tarde num momento
a verde zebra que nos campos vibra ou
papoila rubra que no céu me sobra?
Mas amo muito mais amo o bem e o mal
os campos no outono moribundo
no meio do inverno a casa acolhedora
estranha companheira dos meus dias
demónio de demência e desespero
ao longo do caminho no outono
O receio da morte é a fonte da arte
Eu amo a embriaguez vasta dos espaços
a canção inquieta do amor as
alturas coloridas do outono
Não se pode dizer muito melhor
na monstruosa veemência dos sentidos
e sinto-me perdido de tristeza
entre esses longos nomes das mulheres casadas
Houveram morte às minhas mãos as cartas
os aviões nos distribuem por países
saem de um centro partem nas mais várias direcções
farejam na distância os seus destinos
retalham-nos o espaço em sulcos divisórios
Por onde corre agora a fonte das suaves raparigas?
Ficou na casa o meu lugar vazio
levo a desgraça como um braço ao peito
e árvores ao vento neste dia
e sombra ao sol deste meu dia
Queimam as folhas no parque del oeste
o tecto é baixo o sol está quase a pôr-se
tenho nas minhas mãos três notas do país amado
Esta manhã falavam-me de málaga
e de súbito no meio desta névoa
abriu-se o céu de há anos no verão
Éramos tão jovens nesse tempo
que não sabíamos sequer que nos amávamos assim
e discutimos junto ao porto e regressámos separados
ao hostal onde estávamos aboletados
E tu de olhos no chão reflectias o vulto entre as águas
e não havia os filhos éramos os dois apenas
mas enfim foi há pouco posto que inda hoje brilha
a moeda nesse ano posta em circulação
e que acabo de ter nas minhas mãos no bar
Não me farto de contemplar
o braço esquerdo e a perna direita
que cortados de mim não me pertencem mais
Tu foste sempre reino sobre ti
e o meu desejo é seguir do alto o tejo
Que depressa se esfuma uma cidade no ar
não são sequer as nuvens nem o vasto espaço
basta um golpe de asa que roçando limpe
o pára-brisas próximo horizonte
Pensar é estar alguma coisa a mais
pensar é o que sobra da respiração
pensar é o que não nos leva às coisas
pensando se antecipa a própria morte
O receio da morte é a fonte da arte



ruy belo
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987




07 abril 2016

inês lourenço / curativos



Sim, senhora enfermeira,
porei a compressa depois de lavar
com betadine-espuma e sem esquecer
a pomada de óxido de zinco. Mas o que vou
lembrar doravante é a sua informação de que o ânus
é menos sujo do que a boca, apesar dos poetas
há tantos séculos cantarem e exaltação das bocas
onde nascem versos e beijos, para
chegarmos a essas histórias de bactétrias
que nos condenam a esta mortal assepsia.



inês lourenço
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015