24 fevereiro 2016

luís filipe castro mendes / casas na noite



A luz que vem do passado não bate de frente nas casas,
porque ninguém olha de frente para o que passou ou morreu
e demasiadas coisas fomos deixando assim, mal arrumadas por casas velhas,
até nos darmos conta que desse modo aceleramos o nosso próprio fim
 – mas isso é indiferente aos astros e à luz, a sombra vai caindo e a noite
marcha sobre os nossos passos com a leveza de uma criança.
A vida também não nos olha de frente: fita-nos assim de soslaio
E nós, subreptícios no semblante, fazemo-nos desentendidos.
A poesia é mais uma forma de desconversar, aqui, agora,
ou até nos gritos de quem apenas implora “olhem para mim”,
quando irremediavelmente ficou escuro
e a luz não chega para todos e a noite que nos espera
será para sempre de lua nova.


luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 36/37 abril/outubro
2015



23 fevereiro 2016

antonin artaud / a rua



A rua sexual anima-se
ao longo das caras mal-avindas,
os cafés pipilando de crimes
desenraízam as avenidas.

As mãos de sexo queimam os bolsos
e os ventres fervem por baixo;
 entrechocam-se os pensamentos,
e as cabeças menos que os buracos.


antonin artaud
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



22 fevereiro 2016

luís quintais / quarto de hotel



A cada um a sua Balbec.
Aqui regressas. Aqui escutas
o  búzio da morte.

Entre ti e a gaze do sono
um perigo embala-te:
incerta falésia onde te precipitarás.



luís quintais
angst
falésia
livros cotovia
2002



21 fevereiro 2016

thom gunn / fragmento nocturno



O nevoeiro desce lentamente a colina
E conforme subo mais se adensa:
Fecha-se à minha volta, apodera-se de mim
Como lençóis caídos sobre o chão.

Aqui ficam as últimas e ascendentes ruas,
Galerias, que correm pelas veias do tempo,
Quase familiares, onde rastejo em direcção ao sono
Como nevoeiro e pelo nevoeiro como sono.



thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



20 fevereiro 2016

vicente aleixandre / tens nome



Teu nome,
pois tens nome. A minha vida inteira foi isso:
um nome. Porque o sei não existo.
Um nome respirado não é um beijo.
Um nome perseguido sobre uns lábios
não é o mundo, mas o seu sonho às cegas.
Assim sob a terra, respirei a terra.
Sobre o teu corpo respirei a luz.
Dentro de ti nasci: morri por isso.


vicente aleixandre
antologia de vicente aleixandre
poemas de la consumación
tradução de josé bento
editorial inova
1977



19 fevereiro 2016

fernando pinto do amaral / antevisão


Talvez a alma seja apenas
uma imperfeita câmara escura
onde o que vemos serão cenas
de uma vida futura

e no contorno das imagens
que pouco a pouco se revela
descortinamos personagens
dessa vida mais bela.

Fotografias no avesso
da consciência fugidia
hão-de exigir-nos o seu preço
para a melancolia,

mas é tão bom ficar a vê-las
dentro de nós, num céu fictício
onde cintilam as estrelas
desse puro artifício

iluminando a nossa treva
com a estranha luz de um sobressalto
e é talvez isso que nos leva
a um lugar mais alto.


fernando pinto do amaral
poesia do mundo/3
afrontamento
2001



18 fevereiro 2016

maruyama kaoru / a dor da separação



Pousada numa âncora, uma gaivota pia.
De súbito, sem uma palavra, a âncora desliza.
Surpreendida, a gaivota levanta voo.
Em breve, a âncora empalidece na água, afundando-se.
E o que a gaivota sente torna-se um grito bravio, triste,
Perdido no vento.



maruyama kaoru
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé Alberto oliveira
assírio & alvim
2001



17 fevereiro 2016

henri michaux / levai-me



Levai-me numa caravela,
Numa antiga e amena caravela,
Na proa, ou se quiserem, na espuma,
E abandonai-me, lá longe, longe.

Na união a um outro tempo.
No veludo ilusório da neve.
No bafo de alguns cães à volta.
Na extenuada turba das folhas mortas.

Levai-me sem me quebrar, nos beijos,
Nos peitos que se solevam e respiram,
Nos tapetes das palmas das mãos, no sorriso,
Nos renques das articulações e dos ossos longos.

Levai-me, ou antes: ocultai-me, ocultai-me.


henri michaux
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



16 fevereiro 2016

carlos edmundo de ory / poema



Minha arte de magia num mundo sem magia
é a arte da nostalgia original
Perigosa é a canção das sereias
como noutros tempos
Noutros tempos havia mensageiros
reis e loucos
Sonhava-se muito
Eles estavam no incomensurável
e viviam no não ser
O seu nome não se pronunciava
mas o poder deles trazia plenitude às almas
e as pessoas achavam tudo natural


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & alvim
1997



15 fevereiro 2016

e e cummings / soneto



Não será sempre assim… Quando não for,
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer, fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
«Goza a ventura que já gozei.»

Depois, desviando os olhos, de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.



e. e. cummings
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de manuel bandeira 
assírio & alvim
2001



14 fevereiro 2016

wystan hugh auden / canção



Dizem que esta cidade tem dez milhões de almas:
Umas vivem em mansões, outras em tugúrios;
Não há contudo lugar para nós, meu amor,
não há contudo lugar para nós.

- Outrora tivemos uma pátria e pensávamos que isso era justo.
Olha o mapa, e ali a encontrarás.
Não mais podemos lá voltar, meu amor,
não mais podemos lá voltar.

- O cônsul deu um murro na mesa e disse:
«Se não têm passaporte, estão oficialmente mortos.»
Mas nós ainda estamos vivos, meu amor,
mas nós ainda estamos vivos.

- Aí em baixo, no adro da igreja, ergue-se um velho teixo:
Em cada primavera floresce de novo;
Velhos passaportes não podem fazê-lo, meu amor,
velhos passaportes não podem fazê-lo.

- Fui a uma repartição; ofereceram-me uma cadeira;
Disseram-me polidamente para voltar no próximo ano;
Mas onde iremos hoje, meu amor,
mas onde iremos hoje?

- Fomos a um comício público; o orador levantou-se e disse:
«Se os deixarmos aqui ficar, hão-de roubar-nos o pão de cada dia»:
Estava a falar de ti e de mim, meu amor,
estava a falar de ti e de mim.

- Ouvimos um clamor que nem trovão retumbando no céu;
Era Hitler berrando através da Europa: «Eles têm de morrer!»
Oh, nós estávamos no seu pensamento, meu amor,
nós estávamos no seu pensamento.

- Vimos um cachorro, de jaqueta apertada com um alfinete;
Vimos uma porta aberta e um gato a entrar;
Mas não eram judeus alemães, meu amor,
não eram judeus alemães.

- Descemos ao porto e parámos no cais;
Vimos os peixes nadando como se fossem livres;
Apenas a dez pés de distância, meu amor,
apenas a dez pés de distância.

- Passeámos por um bosque, havia pássaros nas árvores;
Não tinham políticos e cantavam despreocupados;
Não eram de raça humana, meu amor,
não eram de raça humana.

- Sonhámos com um edifício de mil andares,
Com mil portas e com mil janelas;
Nenhuma delas era nossa, meu amor,
nenhuma delas era nossa.

- Corremos à estação para apanhar o comboio expresso;
Pedimos dois bilhetes para a Felicidade;
Mas todas as carruagens estavam cheias, meu amor,
mas todas as carruagens estavam cheias.

- Quedámo-nos numa grande planura com a neve a cair;
Dez mil soldados marchavam para cá e para lá,
À tua e à minha procura, meu amor,
à tua e à minha procura.


w. h. auden
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão-ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003


13 fevereiro 2016

leopoldo maría panero / como nos cães



     … Como nos cães,
tocados por seu dono,
vagueia todo o amigo da terra,
assim quisera eu minha palavra:
simples,
tímida nas pupilas,
com sílabas errantes de menino.

     Improvisar o mundo,
e todo o diáfano do mundo,
com a data encontrada no orvalho
e com o sopro tépido da mão…

     Pois o que vale é o real
escrito com a exalação do real,
e com o sedimento aéreo
do coração que pulsa chamado por seu dono,
leve,
muito levemente
oh, poema.


leopoldo maria panero
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé bento 
assírio & alvim
2001



12 fevereiro 2016

manuel margarido / golpe



Olha, deixa-me dizer-te isto antes que me esqueça: pego na fotografia, aquela a que nunca chamámos nossa porque éramos só nós sem espólio. Seguro-a como se fosse perigoso.
É um gesto inútil, a distância apenas contraria a memória.

Reparo devagar no inacreditável alongamento dos corpos quase impossíveis, vegetais. Vejo a assimetria de, a textura que, a sombra sobre, o intervalo entre. E como parecem banalidades em moldes.

E é um risco, sabes, porque subitamente lembro-me do corte, de um pequeno golpe já curado, terá sido faca, falha, acidente, procura de dor. Não sei. E é o que não sei que se ateia, é a maldição dos indícios. Um só dedo, por exemplo, um só dedo traçou palavras, alegrou-se, apontou na vertical, pousou sobre a febre, deu começos a solo. E o resto?

Não permito a fala da fotografia, a imprecisão com que descreve a junção, o erro no que diz do clarão que trouxe o escuro que nos abrigou da morte. E da grande luz que deu.


manuel margarido
voo rasante
antologia de poesia contemporânea
mariposa azual
2015