22 dezembro 2015

stella zagatto paterniani / requiem



que me escreva cartas de amor com toda a frequência
                                                                                                 possível
mas não a frequência exata que as exima de me surpreender.

que me console e carregue e acolha
sob chuva ou arco-íris
que me pinte
(ar de rua, suor, carinho no enlace dos dedos,
penumbra, dança, insustentável força e meneios)
em cores sem nome

e me beije, que me beije como a única mulher a ti jamais
                                                                                                entregue
conhecida em alma

e teu corpo me sonha.

e que, acima de tudo meu amor
saiba quando calar.


stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013




21 dezembro 2015

miguel torga / combate



Manhã do mundo, que não amanheces!
Tantos poetas a cantar na sombra,
E nenhuma alvorada se anuncia!
Somos nós maus profetas no degredo,
Ou és tu, sol da vida, que tens medo
De iluminar a nossa profecia?



miguel torga
diário VIII
1959



20 dezembro 2015

almeida garrett / voz e aroma



A brisa vaga no prado,
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.

A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi secar...

E em torrentes de harmonia
Minha alma se exalará,
Esta alma que muda e fria
Nem sabe se existe já.


almeida garrett
folhas caídas




19 dezembro 2015

per aage brandt / há três pontos de vista no mundo


*

há três pontos de vista no mundo:
o de um ser humano o de um narrador e
o de sirius que é o único que sabe tudo
enquanto o narrador sabe um pouco
de tudo e o ser humano o
suficiente sobre como é
amar alguém até ao ponto de o próprio tempo
suspender a respiração ou choramingar e rasgar
o céu e aterra até que eles se confundam
 e tudo isto sendo o que é talvez o
                                                        (fim)

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004




18 dezembro 2015

casimiro de brito / vou perdendo películas do meu corpo


121

incertam funeris horam
Propércio, Elegias, II, 27

  
Vou perdendo películas do meu corpo
em cada dia que passa, um cabelo, um reflexo,
um dente que talvez nem me faca falta
amanha. Mas os dentes nunca partem
sozinhos, levam consigo um certo modo
de olhar para as coisas e então já não sou
quem fui quando antigamente
saltava para as ondas e me divertia
como se fosse um anfíbio louco
nas praias desertas. Deserto
sou agora – deserto e talvez um pouco
mais sábio, um homem que sabe
que o seu corpo foi comido
pela alma. Vou perdendo
nos dentes e nos cabelos

o cerne da madeira bêbeda que parecia
nave de catedral – o que vou ganhando
não sei ainda sabendo agora
que bebo e amo e devoro
os minutos voláteis que preparam
a hora da minha morte.


casimiro de brito
encontros de talábriga
festival internacional de poesia de aveiro
1999/2003




17 dezembro 2015

josé agustin goytisolo / onde não estivesses




Onde não estivesses, como neste recinto,
cercada pela vida,
em qualquer paradeiro, conhecido ou distante,
leria teu nome.

Quando começaste a viver para o mármore, aqui,
quando se abriu para a sombra teu corpo rasgado,
puseram uma data: dezassete de Março. E suspiraram
tranquilos e rezaram por ti. E acabaram-te.

Em redor de ti, do que foste,
em poços semelhantes e em funestas prateleiras,
outros, sal ou cinza, tornam-te imperceptível.

Olho tudo, apalpo tudo:
ferros, urnas, altares,
uma antiga vasilha, retratos carcomidos pela chuva,
nomes, citações sagradas,
anéis de latão, coroas sujas, horríveis
poesias...
Quero ser familiar com tudo isto

Mas teu nome continua aqui,
tua ausência e tua lembrança
continuam aqui.
                 Aqui!
Onde não estarias
se uma bela manhã, com música de flores,
os deuses não te tivessem esquecido.



josé agustin goytisolo
1928
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
in poemário, 17.03.2001
assírio & alvim





16 dezembro 2015

maria do rosário pedreira / quantas pessoas caminham na



Quantas pessoas caminham na
minha direcção? Quantas me
descobrem por entre a multidão
e pousam os seus olhos inteiros
nos meus olhos? Podia acreditar

que entre elas está o homem que
trocaria comigo os dedos sobre a
mesa, uma palavra que fosse gomo
de laranja e poema, o corpo aceso

sob o lençol cansado de mais um
dia. Mas quantos destes rostos de
pedra que me cercam escondem o
seu pelas ruas desta tarde? Quantos
nomes de acaso e de silêncio terei
eu de escutar para descobrir o seu

no meu ouvido? Quantas pessoas
caminham contra mim?
  

maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004




15 dezembro 2015

margarida vale de gato / egon schiele



Quero comprar-lhe
as caras as cartas as casas
as províncias
herdar-lhe as relíquias
de nu em desleixo
com desgrenhadas axilas
e as mamas aflitas
às cavalitas das costelas
e o excessivo porte
do escroto de mamífero
na esquálida armadura
o pequenino pénis exposto
e os pés em aquilino
fio de dança em fuga da moldura

que ele tinha desejo
arborescente e murcho
de profeta e de besta
e aquele escroto era útero
de prematuros bebés
que o olho rubro calcina
(insidioso e cru o trato
entre mãe e artista)
têxteis nervos e espessura
ou cercas em cumes
de realistas falésias
e as cruzes de braços
insaciados de entrega

  
margarida vale de gato
relâmpago
revista de poesia nr 34
abril 2014
fundação luís miguel nava
2014




14 dezembro 2015

camilo pessanha / interrogação



Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

  
camilo pessanha
clepsidra




13 dezembro 2015

david mourão ferreira / outono



Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono... Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)

E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto...
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol-posto...

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
                     Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.
  

david mourão-ferreira
obra poética
editorial presença
1996




12 dezembro 2015

rui knopfli / feliz



Fita de areia sobre o acerado
mercúrio do rio. O sorriso
difuso suspenso da tarde.
Alcançando-se, a epiderme
dos dedos longos.

Eras feliz. Dizias,
o sol morno sobre os cabelos.
Feliz como nos retratos,
como na tarde longínqua
do sorriso. Como o rio
tranquilo.

Existiu e não é.
Os retratos amarelecem no fundo da gaveta.



rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982




11 dezembro 2015

miguel de carvalho / (in)quietude



o tempo quieto numa livraria
soa a um poema escrito por um piano velho
nem lhe cai dedo cansado
nem escreve som verbal
sem ensurdecer teclas negras
no voo circular das moscas
as lombadas tombam em espinha
estantes erectas esperam por mãos
a poeira cria radículas
não ouve
o piano
os insectos
sempre é assim
máscaras e estatuetas
desesperam por áfricas
é o corpo todo em baloiço
sobre uma cauda
verde e raso momento
o tempo quieto numa livraria.

no adro, 10-IX-2013



miguel de carvalho
telhados de vidro nr. 19
maio de 2014
averno





10 dezembro 2015

fernando luís sampaio / o cansaço de subir escadas



As portas nunca estão abertas nem fechadas,
O caminho rareia entre caminhos, a mesa
Posta para uma só sombra. Nem a tua nem a minha.
Disponível a tactear a massa sombria
Que respiras, o horizonte está limpo e deita
Nuvens e vento sobre estas ruas.

Um a um sobes degraus e declives,
Há sempre uma corda no fim do patamar,
Há sempre mais degraus,
Há muito que o sobressalto te selou
Os lábios, nada dizes, uma torrente escava a desilusão

De nunca mais regressares.
E das cordas que vais puxando
De patamar em patamar como
De um poço ascendem as ondas
Secas da trovoada, o teu corpo
A dizer que não.

  

fernando luís sampaio
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2012