26 novembro 2015

herberto helder / lugar II




Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
do silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.



E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em cão azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, seixos límpidos.
Até à manhã orçando
pedúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinza transtornada.
Em dedicatória sangrenta.



Há em cada instante uma noite sacrificada
ao pavor e à alegria.
Embatente com suas morosas trevas.
Desde o princípio, uma onde que se abre
no corpo, degraus e degraus de uma onda.
E alaga as mãos que brilham e brilham.
Digo que amaria o interior da minha canção,
seus tubos de som quente e soturno.
Há uma roda de dedos no ar.
A língua flamejante.
Noite, uma inextinguível
inexprimível
noite. Uma noite máxima pelo pensamento.
Pela voz entre as águas tão verdes do sono.
Antiguidade que se transfigura, ladeada
por gestos ocupados no lume.


Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
Dá-nos tua ardente e sombria transformação.
E eu darei cada uma das minhas semanas transparentes,
lentamente uma sobre a outra.
Quando se esclarecem as portas que rodam
para o lugar da noite tremendamente
clara. Noite de uma voz
humana. De uma acumulação
atrasada e sufocante.
Há sempre sempre uma ilusão abismada
numa noite, numa vida. Uma ilusão sobre o sono debaixo
do cruzamento do fogo.
Prodígio para as vozes de uma vida repentina.



E se aquele que ama dorme, as mulheres que ele ama
sentam-se e dizem:
ama-nos. E ele ama-as.
Desaperta uma veia, começa a delirar, vê
dentro de água os grandes pássaros e o céu habitado
pela vida quimérica das pedras.
Vê que os jasmins gritam nos galhos das chamas.
Ele arranca os dedos armados pelo fogo
e oferece-os à noite fabulosa.
Ilumina de tantos dedos
a cândida variedade das mulheres amadas.
E se ele acorda, então dizem-lhe
que durma e sonhe.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício
da beleza.



Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
Deve apagar todas as luzes da terra e, no meio
da noite aparecente,
votar a vida à interna fonte dos povos.
Deve instaurar o corpo e subi-lo,
lanço a lanço,
cantando leve e profundo.
Com as feridas.
Com todas as flores hipnotizadas.
Deve ser aéreo e implacável.
Sobre o sono envolvida pelas gotas
abaladas, no meio de espinhos, arrastando as primitivas
pedras. Sobre o interior

da respiração com sua massa
de apagadas estrelas. Noite alargada
e terrível terrível noite para uma voz
se libertar. Para uma voz dura,
uma voz somente. Uma vida expansiva e refluída.


Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.
E se as mulheres colocam os dedos sobre
a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,
ele não deve ser como o maior violino.
Ele será o único único violino
Porque nele começará a música dos violinos gerais
e acabará a inovação cantada.
Porque aquele que ama nasce e morre.
Vive nele o fim espalhado da terra.




herberto helder
lugar, poema II
poesia toda
assírio & alvim
1996




25 novembro 2015

eugéne guillevic / variações sobre um dia de verão


Acariciar o verão
saber dele

O peso da alegria
Que suporta a mão.

     *

Caminhar na luz
Quase como se
Estivesses em casa.

     *

Ela vem de longe
Esta bebedeira

Que tem por dever
Abrir as fronteiras


eugéne guillevic
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de eugénio de andrade
assírio & alvim
2001



24 novembro 2015

joão rebocho / escrevo


escrevo
obrigado a fazê-lo
o tempo as religiões todas
em dívida sujeito
exposto
grato vencido
com violência
dominado
todos os dias
as mãos
atadas cordas
submisso silêncio

frio sem laços afectos
viver sozinho
anos de séculos
feito homem
à imagem e semelhança
homem
um perdido
coberto de bruma
sem nada dentro

se alguém pegasse
nesta mão



joão rebocho
rapazas e raparigos
edição do autor
2015



23 novembro 2015

antónio cândido franco / redenção


                liberdade e graça


O Pombal do futuro, não o do Sol
mas o da sombra
há-de andar de óculos, e de óculos escuros
com os  Sermões  de Vieira debaixo do braço
e emblema  na lapela
com o retrato de Malagrida.
O Estaline há-de ler em ascese Os Lusíadas
essa arte de heréticos
e o Junqueiro, o Vulcano pequeno-burguês
que foi desmontado peça a peça por Sérgio
há-de aparecer esquelético na Arcádia universal
de barrete e todo nu, a cores
como num retrato de Warhol
a conduzir nos aposentos da luz o faiton de Apolo


antónio cândido franco
estrela subterrânea
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002



22 novembro 2015

alberto caeiro / quem me dera



Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

alberto caeiro



21 novembro 2015

armando silva carvalho / a minha infância não a trago ao colo



A minha infância não a trago ao colo.
Mas hoje ao ver-me tão pintado
no espelho do seu rosto
ajoelho no chão
para que as águas me cubram
e o tempo de mim sinta
vergonha.



armando silva carvalho
canis dei 1995
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



20 novembro 2015

ruy belo / o valor do vento


Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em Agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


ruy belo
o país possível
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




19 novembro 2015

leopoldo maría panero / o lamento do vampiro



Vós, todos vós, toda
essa carne que na rua
se amontoa, sois
para mim alimento,
todos esses olhos
cobertos de remelas, como de quem não acaba
nunca de despertar, como
olhando sem ver ou tão só pela sede
da absurda aprovação de um outro olhar,
todos vós
sois para mim alimento, e o espanto
profundo de ter como único espelho
esses olhos de vidro, essa névoa
em que se cruzam os mortos, esse
é o preço que pago pelos meus alimentos

Last River Together, 1980


leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014





18 novembro 2015

fiama hasse pais brandão / novembro também


Novembro também na Europa
tão soalheiro, tão cheio
de memórias amargas,
forçado Estio,
aziago e malsão mês,
que nos prediz os séculos
de Caos novo.

Nov. 95

  
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002




17 novembro 2015

alda merini / acordar com a febre altíssima



Acordar com a febre altíssima
num delírio de amor,
e ouvir ao longe
as pessoas falarem de ti como poeta
de precisa e indómita escrita,
mas que te importa enfim
a meta está alcançada
podes amainar as velas
e finalmente apaziguar-te,
e dizer que o teu comprimento
é um metro e cinquenta de estatura
e o teu peso é 80.

Está tudo, do resto
não vai ficar mais nada, as folhas
dirão que escreveste, sofreste, amaste,
que desesperadamente pediste ajuda
e a ajuda não veio.
Então mede a quadratura do círculo
ocupa-te finalmente da tua esquizofrenia,
é o bem que te ficou
é a verdadeira fecunda poesia
depois ficará um caixão
um e cinquenta de comprimento
para acolher-te, um nada dentro da espécie,
e oxalá fique a tua memória
no coração de Giacinto Spagnoletti.

(de A terra santa e outros poemas, Lacaita 1984)



alda merini
tradução de marco bruno
relâmpago
revista de poesia, nr. 17 10/2005
fundação luís miguel nava
outubro de 2005



16 novembro 2015

heiner müller / vampiro


As máscaras estão gastas fin de partie
Proletário e assassino camponês e soldado
das bocas emprestadas não sai um único pio
desvaneceu-se o poder onde o meu verso
se quebrava como a rebentação da cor do arco-íris
na cerca dos dentes o último grito morreu
BEM-VINDO A WORKUTA COM ( M ) ISSÁRIO
Em vez de muros há espelhos à minha volta
O meu olhar procura o meu rosto O vidro permanece vazio.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp




15 novembro 2015

narcís comadira / as cidades



Li uma vez que Morosini,
general, embaixador
de Veneza, quis
levar consigo as esculturas
do frontão do Pártenon.

Mandou montar um andaime,
mandou trepar os escravos
e, no momento mais difícil,
alguma escora falhou.
Tombaram homens e estátuas.

Decepcionado, o general
abandonou o seu projecto.
Ele queria-as inteiras.
Os pedaços assim espalhados
serviram para construir casas.

Muitos sábios meditaram
sobre o mistério surpreendente
de poder criar beleza
a partir de um bloco de mármore.
Poucos sobre o caminho contrário.

Obter um silhar adequado
do torso de algum deus antigo,
converter em cascalho uma vénus,
poder pisar paralelepípedos
feitos de membros sagrados...

Assim se fizeram as cidades:
lentamente construídas
com pedras que ontem foram
vidas humanas: amores,
sofrimentos que ninguém recorda.


narcís comadira
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994



14 novembro 2015

rené char / um pássaro



Um pássaro canta sobre um fio
Essa vida simples, à flor da terra.
Com isso se alegra o nosso Inferno.

Depois o vento começa a sofrer
E as estrelas dão-se conta.

Ó loucas, por percorrerem
Uma tão profunda fatalidade.

  
rené char
furor e mistério
tradução margarida vale de gato
relógio de água
2000