13 maio 2015

carlos eurico da costa / primeiro poema da solenidade



A labareda ascendente superando as auroras desvendadas: um altar iluminado onde crepitam
sons leves, um rio correndo há milhares de anos para nós, alheios da nossa validade, mortificados, lúcidos, exaltados, extáticos, senhores dos melhores ácidos corrosivos, sábios do amanhecer nos arquipélagos, manipuladores das artes ocultas e raras, povoando ora os mais altos cumes ora o leito purificador das enseadas

exuberantes de todo o álcool das palavras, espectadores do próprio olhar nocturno, do ínfimo traço de vida que resta nos museus paleontológicos

Nisto consistirá a nossa tradição e tudo o que de nós for ausente bastará um calmo gesto para o petrificar

E bem dentro de nós um calor cósmico, opaco, tão íntimo que será o perfil arroxeado, pleno
e sombras das montanhas no Outono, as belas montanhas que nos centralizam como se fôssemos navios transparentes sem destino e sem ódios.

E o medo do desfilar de perfis adversos que nos afugentam da nossa verdadeira imagem como entes malditos

e toda esta prova de fogo, imutável, tão necessária a nós, errantes, esta meia-luz que cega mas também ilumina

Hoje, decorrido o tempo sobre a sucessão de múltiplos actos, esquecidos da profética lucidez
das visões, soerguemo-nos num último alento como as maiores aves aquáticas que, feridas, vão morrer silenciosamente nas planícies

Mas nunca será tarde para obter a dureza que cria o hábito de elevarmos em grandes gestos as nossas mãos tão pobres, tão despovoadas que nos queimam a carne

Estará bem longe de nós o quarto acto da purificação. Cedo será para distinguirmos as
silhuetas das sombras, o ponto médio dos precipícios, a água e a noite

Esperemos conforme os verdadeiros mantendo este mundo interior que nos define até que vejamos outra luz mais quente, até que ante os nossos olhos se descerre todo o conjunto de vendas espessas, todo o duplo movimento inverso da definição

A hora capital surgirá aparatosamente com todas as dependências inerentes à sua qualidade,
polarizando e enfrentando toda a substância – o pacto sinistro, misterioso, a fúria que nos qualifica

Os nossos dedos alongados e penetrantes terão o dinamismo da sua potência primária; os nossos actos serão como longos cabos aéreos, elásticos e transportadores; a palavra será leve, insuportável para os mortos, de som agudo, penetrante e insuspeito

O nosso gesto terminará quando se estiolar a última luz e após a queda no mar dum animal ainda não existente, belo e translúcido, para os olhos conseguirem um brilho extraordinário idêntico ao que se avista no centro das mais belas tempestades

Os habitantes das grandes cidades deslocar-se-ão lentamente na direcção assinalada
 inquirindo temerosamente, uns dos outros, qual o planeta escolhido




carlos eurico da costa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992




12 maio 2015

jorge de sousa braga / na corrente



Há quem diga que a noite é um rio - subterrâneo - que
nasce e desagua em pleno dia. Ou será o dia um rio  que
nasce e desagua em plena noite? Ou talvez a noite e o
dia sejam o mesmo rio que não nasce nem desagua.
Corre apenas. Através de nós.



jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991







11 maio 2015

fernando luís / num café de bolonha


2
Desceu a ponte
e caminhou pela fria margem.
As infiguráveis alegrias
da sua vida, os amigos,
a amargura.
A cruel sedução dos corpos
roubara-lhe repouso
e juventude.

Ao sorriso seguiu-se
o esgar: à esperança
o trajecto

entre o café, a cama
e a afeiçoada ponte do jardim.


fernando luís
num café de bolonha
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



10 maio 2015

antónio franco alexandre / todos os pecados hoje, nenhum falta



todos os pecados hoje, nenhum falta
ao seu orgulho de água e alavanca. assim
é fácil sob a cortina
o ouvido confessional;

paisagens tão marítimas que um dia
será tarde e nunca os automóveis
passam sem o leve
assobio dos pinhais;

vantagens conseguidas palmo a palmo,
vinhas, o trigo, lã, comércio
de pimentas absortas,

e não obedecer. assim desejo
o seu olhar retido nas imagens,
a sua fonte de lazer, pecados.

  
antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



09 maio 2015

miguel de unamuno / portugal



Do mar Atlântico na margem pura
se senta uma matrona desgrenhada
ao pé da serrania coroada
de triste pinheiral. Nos joelhos dura

os cotovelos pousa, e o rosto na mão,
e crava ansiosos olhos de leoa
no sol poente, e o mar em frente entoa
de maravilhas a fatal canção.

Diz-lhe de longes terras e de azares,
enquanto ela os pés banha nas espumas,
sonhando absorta o trágico império

que se abismou nos tenebrosos mares,
e fita que entre as agoureiras brumas
se alça D. Sebastião, rei do mistério.




miguel de unamuno
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978




08 maio 2015

carlos de oliveira / visão de josé gomes ferreira no vanderman



Nos cimos,
Onde a água esperava o momento de vir lavar os homens,
Você viu
por um súbito rasgão da insónia
os animais miúdos comidos pelos maiores, os maiores comidos pelos homens,
          os homens roídos pela antropofagia e pelos dentes amarelos das estrelas.
Desde então,
o seu remorso brota de cada gota-recordação do Vanderman
e o tempo, devorando as estrelas, engorda mais com as grandes patas fulvas
          atoladas em nossos corações,
essa lama de sangue.



carlos de oliveira
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985





07 maio 2015

fernando pessoa / o amor é que é essencial



O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
  


fernando pessoa



06 maio 2015

györgy somlyó / jogo, gato 7



Põe o mesmo ardor para brincar
com o rato e com a folha de prata
e quer com a folha quer com o rato
o seu combate é caso de vida ou morte
trata das suas necessidades
e da sua limpeza em busca de vitaminas
segundo o mesmo ritual exacto
do mesmo modo faz cair da mesa
com leves toques o maço de cigarros
não executa nada que não seja importante
e nada que não constitua um prazer
nada que não seja necessário
e nada que não seja belo
ele é o felix catus ludens
que faz desaparecer pela sua simples essência
o grande dilema
da história da cultura e da genética
desde há centenas de milénios
é brincando que ele reproduz
as regras estritas do seu jogo existencial.


györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves 



05 maio 2015

carla diacov / amanhã alguém morre no samba



significar o osso da coisa queridinha
os enfeites da casa gritam comigo
ombreiras esquadrias agulhas gatinhos da china
decoram as margens do meu amor
o osso
me afundo na tua reminiscência
o osso e as antenas
gritam
como se tudo fosse o grande do tempo
as esquadrias dos óculos gatinhos da china
omoplatas de prata queridinha
o bafo da trilha
a carne da coisa
tão necessária insignificante
na estrutura superfície da aberração amor



carla diacov
amanhã alguém morre no samba
douda correria
2015



04 maio 2015

michális ganas / perplexidade



Passas junto aos outros,
Medes-te às ocultas,
Dão-te por cima da tola.
Onde escondem eles
o corpo ajoelhado?
Na mala de couro
ou na alma de palha?

Disparam baixo as metralhadoras
ou te esquivas ou levantas voo.


michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel  resende




03 maio 2015

hugh macdiarmid / vejam! nasceu uma criança



Pensei numa casa em que as pedras pareciam de súbito mudadas,
Tornando-se prenhes de esperança, uma esperança tão sólida como elas,
E a atmosfera, quente desse amoroso calor,
O calor da ternura e de almas que anseiam, a sorridente ansiedade
Que rege uma casa onde uma criança estás prestes a nascer.
As paredes estavam cheias de ouvidos. Todos falavam em voz baixa.
Só a mãe tinha o direito de gemer ou de queixar-se.
Então pensei no mundo inteiro. Quem cuida das suas dores
E procura abraçá-las em igual carinho e paz?
O que há é o fragor monstruoso dos estéreis, que em nada contribuem
Para o grande fim em vista, e o futuro tacteia,
Um mau parto, não como a criança nessa grácil casa,
Ouvida na quietude a virar-se no útero da mãe,
Feita já um espírito estratégico, em busca do melhor modo
De se apresentar à vida, e por fim, resoluto,
Saltando para a história a tremer como um peixe,
Caindo no mundo como um fruto maduro em tempo certo. ─
Mas onde está o Passado, a quem o Tempo, por entre lágrimas sorrindo
Ao filho recém-nascido, se dirige e diz: “amo-te”?



hugh macdiarmid
leituras, poemas do inglês
tradução de joão ferreira duarte
relógio de água
1993




02 maio 2015

paul verlaine /lucien létinois – V



Tenho o furor de amar. Meu coração é louco.
O quando e o onde, e a quem, importa pouco.
Que um clarão de beleza, virtude, ou pujança
Brilhe, e ele se precipita, e voa, e se lança.
E, enquanto a posse dura, de mil beijos cobre
O objecto ou o ser que o seu entusiasmo dobre
De um valor que não tem. Quando a ilusão se encolhe,
Regressa triste e só, mas fiel, como quem escolhe
Deixar de si aos outros, ele, alguma cousa
De sangue ou carne. Mas não morre, nem repousa,
E o tédio o faz partir para a terra das Quimeras,
De onde nada trará, só lágrimas severas
Que saboreará. Desesperos de um instante,
E logo se reembarca. Teimoso segue avante,
Sem sequer se dar conta que na infinidade,
Navegador casmurro, há sempre um escolho que há-de
Fazê-lo naufragar antes que aporte à margem
A que apontara o rumo da perdida viagem.
Mas trampolim ele faz do escolho, e logo nada
Para a praia. Lá está. Mas estranha vezada
Será que avidamente não corra e percorra,
Desde que o sol é nado até que o poente morra,
De lés a lés o promontório inteiro.
E nada! Árvore ou erva ou fonte no braseiro,
Mas fome só, e a sede, e o sol como metal,
E nem vestígio humano, um coração igual!
A ele não - jamais há-de encontrar alguém -
Mas coração humano, um coração também,
Que esteja vivo, ainda que falso, palpitante!
E espera, sem perder a força latejante
Que a febre lhe sustenta, e que o amor lhe ganhe,
Que um barco o mastro erecto ao longe lhe desenhe,
A que faça sinais, e venha, e que o recolha:
Assim ele raciocina. E quem se fia? Olha!...
Apóstolo tão estranho, um dia há-de acabar.
Se a morte o deixa sempre, aos outros quer matar.
Os mortos, os seus mortos, mais morto ele está!
Uma fibra qualquer, sempre nas tumbas há,
Do seu fogoso ser, que aí vive docemente.
Aos mortos ama como uma ave o ninho quente.
Lembrá-los - almofada em que adormece e vai
Sonhar com eles, vê-los e falar-lhes. Sai,
Ainda embebido deles, pra uma aventura horrenda.
Tenho o furor de amar. E então? Não tenho emenda.


paul verlaine
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972




01 maio 2015

henry thoreau / fumo



Ligeiro fumo alado! Ó ave de Ícaro,
Fundindo as asas na ascensão da fuga,
Pássaro mudo, anúncio da alvorada,
Sobre as aldeias como em torno a um ninho;
Ou sonho a despedir-se, impura forma
De nocturna visão, erguendo a túnica;
Pela noite, as estrelas encobrindo,
E pelo dia denegrindo o sol;
Vai tu, incenso meu, suplica aos deuses
Que nos perdoem tão formosa chama.


henry thoreau
poesia de 26 séculos, segundo volume
de bashô a nietzsche
antologia, tradução de jorge de sena
editorial inova
1972