30 novembro 2014

álvaro de campos / là-bas, je ne sais où...




Véspera de viagem, campainha...
Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de por no estribo um pé
Que nunca aprendeu a emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?
Que importa? Todo Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstracta e impossível...
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida,!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto de resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida -
'E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?' -

Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se - dizem - que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!...


álvaro de campos





29 novembro 2014

paul éluard / no sentido do meu corpo



Todas as árvores com todos os ramos com todas as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.


paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977





28 novembro 2014

miguel torga / letreiro



Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim – meu principal motivo
De insatisfação  –,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

   

miguel torga
orfeu rebelde
1958




27 novembro 2014

josé gomes ferreira / chove...


maria do rosário pedreira / guarda tu agora



Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre - a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos - dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde se esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez que o queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã - as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.


  

maria do rosário pedreira
a casa e o cheiro os livros
gótica
2002




26 novembro 2014

fernando pinto do amaral / á chegada do inverno



Nem sempre a vida acolhe ou alimenta
os nomes do passado, o seu abismo
repetido num sonho, na mais lenta
assombração, no mais íntimo sismo

Do que chamamos alma. Não existo
sem essa febre mansa que relembro
enquanto as nuvens cobrem tudo isto
com o frio escuro de um dezembro

Longe de mim, de ti, de qualquer lei
ou juízo a que dêmos um sentido:
o que finjo saber é o que não sei
e as palavras colam-se ao ouvido.

  


fernando pinto do amaral
às cegas
relógio d´ água

1997




25 novembro 2014

sylvia plath / eu quero, eu quero



De boca aberta, o deus recém-nascido
imenso, calvo, embora com cabeça de criança,
gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos calaram e cuspiram,

a areia esfolou o lábio sem leite.
Gritou então pelo sangue paterno
que agitou a vespa, o tubarão e o lobo
e veio engendrar o bico do ganso.

De olhos secos, o inveterado patriarca
ergueu seus homens de pele e osso:
farpas sobre a coroa de fio dourado,
espinhos nas hastes sangrentas da rosa.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990





23 novembro 2014

alberto caeiro / a neve



A NEVE PÔS uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as acções do mundo.



alberto caeiro






22 novembro 2014

josé gomes ferreira / e aqui estou à espera!...



XI

E aqui estou à espera!...
─   com  este destino
de dar sombra aos muros…

Mas à espera de quê?

Que o despenhar no abismo
me crie enfim asas?



josé gomes ferreira
cabaré 1933
poesia I
portugália
1972




21 novembro 2014

charles simic / hotel insónia




Gostava da minha pequena toca,
A janela face a um muro de tijolo
Ao lado havia um piano.
Todos os meses havia umas quantas noites
Em que um velho inválido
Vinha tocar "Meu Paraíso Azul".

Em geral, porém, reinava o silêncio.
Cada quarto com sua aranha de pesado sobretudo
Caçando sua mosca com uma teia
De fumo de cigarro e devaneio
Tão escuro,
Que nem a minha cara via no espelho da barba.

Às cinco da manhã o rumor de pés descalças na escada.
É o "Cigano", que lê a sina
Na loja da esquina, e vai mijar depois de uma noite de amor.
Certa vez, também o soluçar de uma criança.
Tão perto, que por momentos pensei ser eu próprio a soluçar.


  

charles simic
traduzido por josé lima
diversos nr. 2






20 novembro 2014

alexandre o'neill / amor



O amor é o amor- e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos- e somos um? somos dois?
espirito e calor!

O amor é o amor e depois?!


 alexandre o'neill 





19 novembro 2014

heiner müller / cárie dentária em paris


algo me devora
fumo demais
bebo demais
morro lentamente demais


Ontem comecei
a matar-te, meu amor,
agora amo o teu cadáver
quando estiver morto
o meu pó gritará por ti.


heiner müller
XI poemas de heiner müller
tradução de luís costa
Werke 1, Die Gedichte,
erste Auflage 1998, Suhrkamp





18 novembro 2014

vittorio sereni / dentro de mim a tua memória é um ruído



Dentro de mim a tua memória é um ruído
de velocípedes que vão
silenciosamente  onde a altura
do meio-dia desce
ao mais incandescente crepúsculo
entre portões e casas
e suspirando encostas
de janelas reabertas ao verão.
Só, apenas para mim, distante
permanece um gemido de comboios,
de almas que se vão embora.

E aí, leve, vais tu sobre o vento
perdes-te na noite.


vittorio sereni
frontiera
edizione di corrente
milano 1941


(versão de stefano cortese e gil t. sousa)