29 junho 2014

cesário verde / de tarde



Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

1887


cesário verde
o livro de cesário verde
1901



28 junho 2014

m. fernanda silva / o murmúrio sobre os olhos



O murmúrio sobre os olhos
no contorno do rosto
a brisa de um suspiro
a água que que se acalma
na planície
sobre os verdes musgos
os pequenos calhaus que brilham
como luzes de semáforos
o corpo
o corpo sem dono
sem substância
na orla do caminho
de cascalho cantante
e o murmúrio
sobre os olhos
que se fecham
à luz dos calhaus como semáforos
como gritos incandescentes
como pedras siderais
como corações moribundos
o corpo que se volatiliza
sob o sol vermelho
das madrugadas


m.f.s.




27 junho 2014

manuel antónio pina / numa estação de metro



A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direcção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distracção!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo húmido, escuro.


manuel antónio pina
um sítio onde pousar a cabeça (1991)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012




26 junho 2014

eugénio de andrade / as amoras



O meu país sabe às amoras bravas
no verão.    
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.



eugénio de andrade



25 junho 2014

stella zagatto paterniani / mourning



enquanto ouço confissões a olhos brilhantes
de sonhos reveladores
transbordantes d´alento
fico eu cá com minh´aflição:
sonho elefantes rajados de rosa
que esguicham água em silêncio
e nem sei se me respingo:
não porque acordo, mas porque decorre
sono pesado e sem sonhos.
e nada recordo ao amanhecer.



stella zagatto paterniani
natália gregorini
deleites e ladrilhos
editora medita
2013



24 junho 2014

cristovam pavia / visita



Eu estava esperando esta noite
Eu estava esperando ter a garganta apertada
Sem poder gritar
Eu estava esperando ver montes negros desenhados no céu
Eu estava esperando minhas estrelas
(E minhas mãos como duas foices de lua
Andassem sozinhas brincando com elas)
Hoje houve a solidão da visita
Daquela asa invisível que entra em mim
Quando a terra se desprende da Terra
E as montanhas são altas, mais ainda…


cristovam pavia
távola redonda
1950



23 junho 2014

adolfo casais monteiro / poeta



Poeta: uma criança em face do papel.
Poema: os jogos inocentes,
invenções de menino aborrecido e só.
A pena joga com palavras ocas,
atira-as ao ar a ver se ganha o jogo;
os dados caem: são o poema. Ganhou.

  

adolfo casais monteiro



22 junho 2014

yorgos seferis / um velho na margem do rio



E, no entanto, há que pesar como avançamos,
Não basta que sintas, nem que penses, nem que te movas,
Nem que arrisques o corpo na antiga ameia,
Quando o azeite a ferver e o chumbo líquido riscam a muralha.
E, no entanto, há que pesar para onde avançamos,
Não como quer a nossa dor, e as nossas crianças famintas,
E o abismo do convite dos nossos companheiros na outra margem;
Nem o que murmura a luz obscura do hospital improvisado,
Mas de outro modo; talvez queira eu dizer como
O longo rio que vem dos grandes lagos fechados de uma profunda África
E já foi Deus e depois se fez estrada e dom e juiz e delta;
Que nunca é o mesmo, como ensinam os antigos letrados,
Mas é sempre o mesmo corpo, o mesmo curso, o mesmo sítio,
E o mesmo norte.
Mais não quero que falar de modo chão, que me seja dada tal graça,
Pois a canção, tanto a carregámos de músicas que se vai afundando
E a nossa arte, tanto a decorámos, que os ouros lhe devoram a face
E é tempo de dizermos as nossas palavras poucas, pois a alma
Amanhã vai soltar o pano.
Se é humana a dor, não somos homens apenas para sofrer
E, por isso, tanto tenho meditado no grande rio;
Este sentido que avança por entre plantas e ervas
E bichos que pastam e matam a sede e homens que semeiam e ceifam
E grandes túmulos e até pequenas habitações dos mortos,
Esta corrente que abre o seu caminho não é diferente do sangue dos homens
E do olhar dos homens quando olham em frente sem medo no coração,
Sem o quotidiano temor das pequenas coisas nem até das grandes;
Quando olham em frente como o caminheiro que se afeiçoou a medir o caminho
                                                                                                          [pelas estrelas,
Não como nós no outro dia olhando o jardim fechado na casa árabe adormecida,
Por trás da cerca, o jardinzinho fresco, mudando de forma, crescendo e minguando;
Mudando enquanto olhávamos, também nós, a forma do nosso desejo e do nosso coração,
Ao orvalho do meio-dia, nós, a paciente massa de um mundo que nos expele e nos molda,
Presos na rendada renda de uma vida que estava certa e se fez pó e se afundou na areia,
Deixando atrás de si apenas o indistinto balançar de uma pequena palmeira que nos
                                                                                                          [deixou tontos.




giórgios seféris
(1900-1971)
tradução de manuel resende



21 junho 2014

david mourão ferreira / aviso de mobilização



Passaram pelo meu nome e eu era um número
- menos que a folha seca de um herbário.
Colheram-no com mãos de zelo e gelo;
escreveram-no, sem mágoa, num postal.


Convite a que morresse. .. mas por quê?
Convite a que matasse. .. mas por quem?
Ó vago amanuense, ó apressado
e súbito verdugo, que te ocultas
numa rubrica rápida, ilegível,
que dirás tu do meu e de outros nomes,
que dirás tu de mim e de outros mais,
no Dia do Juízo já tão próximo
- que dirás tu de nós, se nem tremeu,
na rápida rubrica, a tua mão?

Bem sei que a tua mão só executa;
mas para além do ombro a ti pertences.
Bem puderas chorar, ter hesitado. . .
- A mancha de uma lágrima bastara
para dar um sentido a esta morte
a que a tua indiferença nos convoca!



david mourão ferreira
tempestade de verão
1954



20 junho 2014

manuel de castro / tenho como certo que isto não resiste



Tenho como certo que isto não resiste
que eu próprio hei-de quebrar o berço aos pedaços
o berço delicado onde matei um jovem
a fim de o ver sereno listrado de luar.
Não olho para o sol. Sei que existe

pela luz quente aberta nos telhados
vermelhos onde o musgo é mágica subtil.
Sentir é uma febre de cansaços.
Sentir vai como febre nos nervos, sincopada,
onde se sabe que o corpo está presente

porque atirei o que visto para uma estrada
estando eu ali dentro casualmente
exactamente como o esforço fútil
de ver um pôr-de-sol e concordar.

E agora ─ nada mais que traços
em papel de seda, verde-claro, frágil…
nada mais que um pequeno segredo,
torres, e a nuvem que eu vou para existir
tão plenamente, um risco no lajedo…

Amanhã
serei bom
por música



manuel de castro
paralelo w
1958





19 junho 2014

antónio ramos rosa / no centro da aparência




Repousa no espaço de um olhar. O ar dança na rua.
Sombras e ruídos. As árvores têm uma idade clara.
Vagarosa persistência, a alguns metros do solo.
O enigma está vivo no centro da aparência.
Uma criança designa o mar. Alguém traz uma folha.

Alguém compreende a sede de uma pedra!
Quem estuda a felicidade? Quem define um jardim?
Que linguagem é a do espaço? O que é o sal da sombra?
Esquecemos a linguagem do vento e do vazio
Nunca houve um encontro. Quando será o inicio?

Vejo a folhagem e os frutos da distancia.
Olho longamente até ao cimo da ternura.
Vivo na luz extrema em todas as direcções.
O pequeno e o grande conjugam-se, consagram-se.
Canto na luz suave e bebo o espaço.



antónio ramos rosa





18 junho 2014

luis muñoz / traduzido na noite


              (Giuseppe Ungaretti)


Doce decai o sol.
Do dia se separa
um céu demasiado luminoso
cheio de solidão.

Como se a muita distância
umas vozes se movem.
Ofendida se adular
tem esta hora uma arte estranha.

Não é a aparição primeira
do outono já sozinho?
E sem outro mistério
aqui corre a dourar-se
e o tempo belo rouba
a mercê da loucura.

Contudo gritaria, contudo:
tu, veloz juventude dos sentidos,
que me tens às escuras de mim mesmo,
e à imortalidade consentes as imagens,

não me deixes, espera, sofrimento.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004




17 junho 2014

ben jonson / a vida perfeita



Não é crescendo à toa,
Como as árvores, que alguém se aperfeiçoa;
Não como o roble, em pé trezentos anos,
E ser madeiro enfim, calvo, seco sem ramos.
Esse lírio de um dia,
Em Maio, tem mais valia,
Mesmo que à noite caia já sem cor:
Foi a planta da luz, era o sol a flor.

Em justas proporções a beleza se ajeita,
E só num ritmo breve é que a vida é perfeita.


ben jonson
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003