14 março 2014

maria teresa horta / à tua espera



Tranquila e serena
a nossa casa
nos quatro cantos
o sol do meio-dia

à tua espera alegre
e descansada
injecto-me de amor às
escondidas

Sobre a garganta passo
os dedos espessos
e a roupa uma a uma
vai caindo

para que então amor
com os teus dedos
quando vieres me vás
depois vestindo



maria teresa horta
candelabro
1964



13 março 2014

antónio gedeão / poema da auto-estrada



Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chegou aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.



antónio gedeão




12 março 2014

luís amaro / a teixeira de pascoaes


I
Toda a noite transforma.
A verdade das coisas está perto
E o silêncio fala
Com as sombras da nossa alma, iguais
Às sombras dum jardim lunar
Com árvores e flores
Que reflectem nossa paisagem íntima.

Imagem do silêncio,
Ó fonte do meu sonho, recolhida
E imersa na penumbra…

Longe, uma tristeza irmã abre-me os braços
Onde tudo me diz
O sentido da vida!


luís amaro
árvores
inverno de 1951-52




11 março 2014

luís miguel nava / céu árido



Devemos, ao falar, ter o maior cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas particularmente vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.

  

luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
o céu sob as entranhas
publicações dom quixote
2002


10 março 2014

carlos drummond de andrade / memória


Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão

   

carlos drummond de andrade



09 março 2014

herberto helder / elegia múltipla


I

Como se poderia desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente pesam
no  nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais
temos medo de sorrir, as armas
lavradas, as liras que estremecem e pendem
sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e grave geografia, as fontes
livres de onde os pensamentos crescem
como a folhagem iluminada das antigas idades
do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem  o jeito aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os fogos rápidos
presos como campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e gelando
no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua grande miséria
como um sonho. Um nome, contudo, existe
suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua cabeça aérea como o verde
das pedras ou o movimento
das corolas frias,
essa cabeça sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a possessiva, doce cabeça
dos mortos.



herberto helder
elegia múltipla, poema I
poesia toda
assírio & alvim
1996



08 março 2014

ezra pound / saudação




Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir.



ezra pound



07 março 2014

juan luís panero / palavras e presságios



Voltar a uns versos de Kavafis, de Eliot,
como quem regressa a uma casa que foi nossa há anos.
Repetir as sílabas, iluminar os símbolos
como fechadas salas, janelas cheias de pó
que escondem um jardim perdido, árvores da morte.
Melancolia do regresso e medo do vazio,
madeira que range, esvoaçar de sombras
e, de repente, num quarto, perdida
como um velho copo ou um espelho embaciado,
encontrares a chave da tua vida.
Palavras que te avisaram: «Um monótono dia
segue-se a outro igualmente monótono»,
ou te advertiram: «Nascer, foder, morrer.
Isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo, isso é tudo».
Palavras que a velhice e a noite me oferecem,
presságios que não entendi, anunciadas derrotas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d'água
2003



06 março 2014

josé gomes ferreira / devia morrer-se de outra maneira



"Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: «Fulano de tal
comunica a V. Ex.ª que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio».
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos
todos assistir à despedida.
Apertos de mão quentes. Ternura de calafrio.
«Adeus! Adeus!»
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes... (primeiro, os olhos...
em seguida, os lábios... depois, os cabelos...) a carne,
em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis..."

  

josé gomes ferreira



05 março 2014

manuel antónio pina / o nome do cão




O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
 
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
 
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
 

ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
 
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
 
Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.
 
Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
 
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
 
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
 
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


manuel antónio pina
primeiros poemas
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



04 março 2014

samuel beckett / sou esta areia que se esvai



sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



03 março 2014

josé tolentino mendonça / murmúrios do mar



"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu , não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


josé tolentino mendonça
baldios
assírio & alvim
1999



02 março 2014

henri michaux / o pássaro que se apaga




É durante o dia que ele aparece, no dia mais branco.
Pássaro.

Bate as asas, voa.
Bate as asas, apaga-se.

Bate as asas, ressurge.

Pousa. E depois desaparece. Com um bater de asas
apagou-se no espaço branco.

É assim que se comporta o meu pássaro familiar,
o pássaro que vem povoar o céu
do meu pequeno pátio. Povoar?
Bem se vê de que maneira...

Mas permaneço quieto, a contemplá-lo,
fascinado pela sua aparição,
fascinado pela sua desaparição.



henri michaux
antologia
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
1999