I
Como se poderia desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente pesam
no nosso coração. Essas flores
intangíveis para as quais
temos medo de sorrir, as armas
lavradas, as liras que estremecem e pendem
sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e grave geografia, as fontes
livres de onde os pensamentos crescem
como a folhagem iluminada das antigas idades
do ouro.
Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem o jeito
aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.
Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os fogos rápidos
presos como campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e gelando
no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua grande miséria
como um sonho. Um nome, contudo, existe
suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua cabeça aérea como o verde
das pedras ou o movimento
das corolas frias,
essa cabeça sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a possessiva, doce cabeça
dos mortos.
herberto helder
elegia múltipla, poema I
poesia toda
assírio & alvim
1996