Se lançassem de uma só vez ao mar
as cinzas de todos os mortos
que vagam pelas brumas da História,
digo que nem toda essa cinza
unânime alteraria
o seu contínuo fluir:
o leve marulhar rude
ou as lendas graves da sua ira.
Errabundo e cativo, mas sempre
com uma ordem
perfeita: misteriosa e calculada,
ouve-o como brama:
o mar bêbado pelas luas,
homérico, mutável, mecânico,
com frotas de peixes
de olhos aterrados que o exploram
como os pensativos peixes coloridos
exploram uma vez e outra e outra vez ainda
o aquário cheio de palmeiras
e tesouros em miniatura de piratas.
Flutuante como o pensamento,
olha-o,
angustiado de azul indefinível,
asmático, grandioso e teatral,
ele,
que recua e invade
segundo um raro método que tem
algo a ver quiçá com os nossos ciclos
de razão e loucura, as duas faces
de uma moeda que nunca cai direita.
Refúgio de seres silenciosos,
inesgotável mar de vaivém de espuma,
tão dado a todo o tipo de metáforas
que sucede às vezes lembrarem-nos
o muito que somos parecidos ao mar.
felipe benitez reyes
tradução de manuel rodrigues