15 fevereiro 2014

guillevic / lição de coisas



O sangue é um líquido complicado
Que circula. É de um vermelho
Que aliás não se vê e que muda
Como uma planura sob várias luas.

O sangue contém corpos numerosos
Dos quais algumas pessoas sabem a fórmula.

É o nosso sangue. É ele
Que anda à volta, que volta,
Que alimenta.

O sangue derrama-se facilmente,
Basta-lhe apenas uma abertura.

O sangue de um morto por acidente
Não é o mesmo, na rua,

Que o de um morto pela liberdade,
Derramado na mesma rua.

Tem cada qual um modo particular
De ser vermelho e de gritar.




guillevic
leçon de choses, gagner (1949)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003




14 fevereiro 2014

sofia leal / o dia parou



1.o dia parou
estou sentada contigo
no passeio perto da minha casa
por cima de nós o semáforo
vai alternando a sua coloração
é necessário contares-me a tua história
dias e noites
até a perderes de vista
já no final a tua voz
torna-se cada vez mais lenta
e adormeces no interior das minhas mãos
no teu sono agitado
constroern-se barcos
prontos a navegar nos rios
que cresceram na Estrada da Luz
barcos à vela sobre uma
água muito transparente
nas margens vendedores
oferecem-te terra fértil
a luz verde acende-se
o teu andar ilumina-se
Por vezes a língua azeda
distorcendo a fala
na fala com o outro
as palavras viram-se
ao contrário
nessas alturas
temo que a casa
subitamente se esvazie
e apenas restem insectos
uivando como lobos
Sou uma intrusa
devia ser detida
ficar presa nos corredores
 com as paredes
inundadas da minha
tristeza — digo por vezes
quando não sei falar


sofia leal
di versos 15
poesia e tradução
junho de 2009
edições sempre em pé
2009




13 fevereiro 2014

jacques prévert / o cábula



  Com a cabeça diz não  
    mas com o coração diz que sim
  diz que sim ao que aprecia  
    e que não ao professor
  cá o temos nós de pé  
    em pleno interrogatório
  a cairem-lhe em cima problemas  
    mas súbito um riso destravado
  toma conta dele  
    e põe-se a apagar tudo
  numerais e palavras  
    as datas e os nomes
  frases e ratoeiras  
    e apesar das ameaças do mestre
  sob a gritaria das crianças encantadas  
    ali naquele quadro negro da desgraça
  com giz de todas as cores  
    põe-se a desenhar 
  o rosto da felicidade  



  jacques prévert




12 fevereiro 2014

maria gabriela llansol / estas árvores balouçam na sua hesitação



190

__________________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parascreve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá ­­­­‑‑‑‑‑‑‑‑‑‑ «Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003


11 fevereiro 2014

inês dias / your funeral, my trial



O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.




inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012



10 fevereiro 2014

vladimiro maiakówski / digam !



Digam !
Lá porque estão acesas as estrelas,
será porque elas são necessárias a alguém?
Será porque alguém há a desejar que existam?
Será porque alguém chama a esses escarros, pérolas?
E, vencendo
a poeirenta borrasca do meio-dia,
alguém corre p'ra Deus,
temendo chegar tarde,
chora,
beija-lhe a mão nodosa,
implora -
que lhe falta uma estrela! -
jura
que, sem estrelas, não pode suportar este martírio.
E depois,
lá vai com a sua angústia,
mostrando paz na cara.
Perguntando a qualquer:
"Agora, estás melhor, não é assim?
Já não tens medo?
Não?"
Digam !
Lá porque estão acesas
as estrelas -
será porque elas são necessárias a alguém?
será porque é - indispensável,
que cada noite
por cima dos telhados
uma só estrela, ao menos, se ponha a reluzir?




vladimiro maiakówski
autobiografia e poemas
trad. de carlos grifo
presença
1977




09 fevereiro 2014

álvaro de campos / contudo



Contudo, contudo, 
Também houve gládios e flâmulas de cores 
Na Primavera do que sonhei de mim. 
Também a esperança 
Orvalhou os campos da minha visão involuntária, 
Também tive quem também me sorrisse. 
Hoje estou como se esse tivesse sido outro. 
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa. 
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo. 

Caí pela escada abaixo subitamente, 
E até o som de cair era a gargalhada da queda. 
Cada degrau era a testemunha importuna e dura 
Do ridículo que fiz de mim. 

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse, 
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre, 
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo. 
Sou imparcial como a neve. 
Nunca preferi o pobre ao rico, 
Como, em mim, nunca preferi nada a nada. 

Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.




álvaro de campos




08 fevereiro 2014

antónio ramos rosa / o ponto de partida



Será este o ponto de partida, obscuridade incerta
e sobre o fundo sombrio da morte? A esperança
nascerá deste branco vazio e desta mão de cinza?
O viajante entrou num barco ou numa árvore
que o soergue, ainda hesitante, na imensidade
de uma sombra de astro. Ele aproxima-se
de formas vagas, de espelhos entre pedras,
e junto a um muro sob as estrelas
uma figura de orvalho descalça sobre as ervas.
Tudo flutua ainda, dentro da poeira azul
e púrpura e tudo está esparso e reunido
como na primeira consciência deste mundo
tão longínquo e tão presente como se o sol fosse um perfume
que da montanha descesse sobre as palavras ditas.


antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990


07 fevereiro 2014

dinis moura / funeral



O meu tio levou um requintado fato preto
feito por medida, tecido italiano, caríssimo.
O meu irmão, que detesta gravatas pretas,
colocou uma, porém, talvez para dissimulá-la,
vestiu uma camisa preta.
As minha primas, umas de calças, outras de vestido,
outras de saia, foram todas vestidas de preto.
A minha tia, sempre exagerada,
levou uma minissaia quase curtíssima e uma camisola
exageradamente decotada, tudo da mesma cor, tudo preto.
A minha avó levou um vestido e um xaile da cor
que vem ostentando ininterruptamente há dez anos:
a cor que a morte do meu avô sepultou em todas
as suas roupas: a cor do luto – o preto.
O médico foi de preto,
o advogado também.
Foram alguns amigos, alguns conhecidos,
todos eles vestidos de preto.
De preto foi também a única pessoa
que não conheci.

Só eu chorei.





dinis moura




06 fevereiro 2014

sebastião da gama / os que vinham da dor



Os que vinham da Dor tinham nos olhos
estampadas verdades crudelíssimas.

Tudo que era difícil era fácil
Aos que vinham da Dor directamente.

A flor só era bela na raiz,
o Mar só era belo nos naufrágios,
as mãos só eram belas se enrugadas,
aos olhos sabedores e vividos
dos que vinham da Dor directamente.

Os que vinham da Dor directamente
eram nobres de mais p´ra desprezar-vos,
Mar azul!, mãos de lírio!, lírios puros!

Mas nos seus olhos graves só cabiam
as verdades humanas crudelíssimas
que traziam da Dor directamente.



sebastião da gama
campo aberto
1951



05 fevereiro 2014

antónio franco alexandre / anda, vou-te mostrar a terra



XIII

Anda, vou-te mostrar a terra
dos teus pais, avós, antepassados
tão antigos que os podes escolher.
Este aqui é noé, de barba por fazer;
meteu na arca puro e impuro, bem e mal,
inventou o vinho, homem melhor
da sua geração ( não é grande elogio ),
teve filhos, netos, é de crer que morreu.
Estoutro, não sei bem, era pirata na malásia.
Vês as colinas? São tuas, quando
as olhas a direito. Realmente tuas,
parte de um mundo teu.
Sim, isso são filosofias,
tens razão. ( E tem graça ao ter razão ).
Anda daí, vou mostrar-te o colete de forças
onde era costume, sabes, tratar casos assim.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999




04 fevereiro 2014

antonio gamoneda / tenho frio junto aos mananciais




Tenho frio junto aos mananciais. Subi até cansar o
coração.


Há erva negra nas ladeiras e açucenas roxas entre
sombras, mas, - que faço diante do abismo?


Sob as águias silenciosas, a imensidão carece de sig-
nificado.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




03 fevereiro 2014

sylvia plath / a gralha negra em tempo de chuva




Lá no alto, num ramo firme
arqueia-se uma gralha negra toda molhada
arranjando e voltando a arranjar as penas à chuva.
Não espero qualquer milagre
nem nada

que venha lançar fogo à paisagem
no interior dos meus olhos, nem procuro
mais no tempo inconstante qualquer desígnio,
mas deixo as folhas manchadas cair conforme caem,
sem cerimónia ou maravilha.

Embora - admito-o - deseje
ocasionalmente alguma resposta
do céu mudo, não posso honestamente queixar-me:
uma certa luz pode ainda
surgir incandescente

da mesa da cozinha ou da cadeira
como se um fogo celestial tornasse
seu, de um instante para outro, os mais estranhos objectos,
assim consagrando um intervalo
de outro modo inconsequente

por nos dar grandeza e glória,
ou até amor. De qualquer modo, caminho agora
atenta (pois isso poderia acontecer
mesmo nesta paisagem triste e arruinada); descrente,
mas astuta, ignorante

de que um anjo se decida a resplandecer
repentinamente a meu lado. Apenas sei que uma gralha
ordenando as suas penas negras pode brilhar
de tal maneira que prenda a minha atenção, erga
as minhas pálpebras, e conceda

um breve repouso com medo
de uma neutralidade total. Com sorte,
viajando teimosamente por esta estação
de fadiga, acabarei
por juntar um conjunto

de coisas. Os milagres acontecem
se gostares de invocar aqueles espasmódicos
gestos de luminosos milagres. A espera recomeçou de
                                                                      [novo,
a longa espera pelo anjo,
por essa rara, fortuita visita.



sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990