10 setembro 2013

sophia de mello breyner andresen / noites sem nome



Noites sem nome, do tempo desligadas,
Solidão mais pura do que o fogo e a água,
Silêncio altíssimo e brilhante.

As imagens vivem e vão cantando libertadas
E no secreto murmurar de cada instante
Colhi a absolvição de toda a mágoa.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999


09 setembro 2013

amalia bautista / o incrédulo



Diz-me que não estou enamorada,
às vezes apetece-me jurar-lhe
que esqueceria o sol entre os seus abraços
ou quereria estar a beijar sempre
seus lábios ou que não me importa o tempo
ao olhar-me escuro, fixo, louco.
Porém de quê me serviria tanto?
Não acreditaria uma palavra.



amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004


08 setembro 2013

adília lopes / os poemas que escrevo



Os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas



adília lopes
um jogo bastante perigoso
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004



07 setembro 2013

mário cesariny / lembra-te



Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982



06 setembro 2013

caio resende / conversa para um espelho



Tenho andado resignado.
Meu beluário tem se contentado
com apenas poucas feras.
Há um riso (manco),
um infinito pela janela.
Um olhar tão mais breve
cai sobre as coisas.
É chegado um tempo.
Uma hora.
Vontade.
Das aldeias do mundo,
não chegam mais telegramas.
As crianças sabem.
As crianças não sabem.
As crianças são!
Tem muitos anos,
o muro de Berlim caiu
(aquela moça do jornal nem é mais moça).
Morreu Carlos Drummond de Andrade!
Morreu, inclusive, a Morte



caio resende



05 setembro 2013

eugénio de andrade / as mãos e os frutos


II
Cantas. E fica a vida suspensa.
É como se um rio cantasse:
em redor é tudo teu;

mas quando cessa o teu canto
o silêncio é todo meu.


  
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


04 setembro 2013

jean genet / falo-lhe um pouco de camilia meyer



Falo-lhe um pouco de Camilia Meyer—
mas queria também dizer quem foi Con Colléano,
mexicano esplêndido e como dançava! —
Era alemã, Camilia Meyer.
Quando a vi talvez tivesse quarenta anos.
Em Marselha armara o arame trinta metros acima da calçada,
na entrada do Porto Velho.
Era de noite. Projectores iluminavam o arame horizontal
e a trinta metros de altura.
Para lá chegar ela trepava um fio oblíquo com duzentos metros,
saído do chão. E a meio caminho da encosta, para descansar,
pousava um joelho no arame com a vara-balancim
atravessada na coxa. O seu filho (dezasseis anos, talvez)
esperava-a numa pequena plataforma
e levava ao meio do arame uma cadeira. Camillla Meyer,
que vinha do lado oposto, chegava ao arame horizontal,
agarrava na cadeira só assente no arame em duas pernas,
e sentava-se. Sozinha. E também descia só...
Em baixo, por baixo, as cabeças tinham-se inclinado todas,
com as mãos a taparem os olhos.
O público recusava assim uma delicadeza à acrobata:
quando roçasse pela morte, o esforço de olhar para ela.
— E tu — diz-me ele — tu que fazias?
— Olhava. Para dar uma ajuda, fazer um cumprimento,
pois Camilla conduzira às margens da noite a morte,
para lhe fazer companhia na queda
e na morte.

(...)



jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984


03 setembro 2013

antónio franco alexandre / eco



Ci est d’amer volonté pure
     Roman de la Rose
  

Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,
e humano, como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel, um aspecto esquecido
e altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência
mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem. Marcávamos férias
em meses diferentes. O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,
a tua, não poderiam nunca encontrar-se no mundo.

[...]



antónio franco alexandre
uma fábula
assírio & alvim
2001


02 setembro 2013

antónio gancho / sobre uma manhã qualquer




Manhã de ouro lhe poderíamos chamar se de ouro fora a primeira manhã
Adão inconfessado, e nada saberemos da primeira manhã
se afinal de ouro se afinal de prata.
Ainda possível ter sido de estanho?
A primeira manhã assim imaginada estanho e a cena desenrolar-se-á
com maçãs de estanho, aves de estanho, rios de estanho...
Adão não seria de estanho?
Adão inconfessado, e nada se saberá da manhã original.
A primeira manhã, a primeira luz, a primeira vida, a primeira lua
Tu, querida, o desejarias saber, o sei,
era teu desejo saber de que metal fora a primeira manhã!
Evidentemente que (e aqui sente-se já um cansaço a obcecar a caneta)
evidentemente que dizia
etc., etc.
e a respeito da primeira manhã afinal
que não interessa sabê-lo.

Olha, morre como o cigano, o pior é ires à escola.

Ah, os poetas são decididamente afectados.
Que raio de ideia esta de saber da primeira manhã?
Londrina a de hoje, e basta para tomar um excelente duche quente
com a água a pôr fervura na pele
e mais nada.

Da primeira manhã. Adão que se faça poeta e no-lo diga que metal



antónio gancho
o ar da manhã
assírio & alvim
1995



31 agosto 2013

fernando pessoa / sorriso audível das folhas



Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?



fernando pessoa
27-11-1930, cancioneiro



30 agosto 2013

josé tolentino mendonça / o último dia do verão



Pois às vezes me falta a quem contar
certo dia passado do princípio ao fim
o encanto que tenha realmente
a insistência do vento ao longo da Foz
aquilo que daria (e eu daria tudo) por compaixão

Nascemos e vivemos só algum tempo
não temos nada
não podemos mesmo na penumbra
decidir a atenção ou o esquecimento
as forças soçobram como vagos motivos
em público
e em qualquer lugar

Por isso sei tão bem o valor
da natureza indiscutível dos teus olhos
onde a luz anota seus aspectos
teus olhos impacientes e irrealizáveis
que me acompanham
agora que sozinho danço
pela cidade vazia



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001


29 agosto 2013

alexandre o'neill / daqui, desta lisboa compassiva



Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por Suíços habitada,
onde a tristeza vil, e apagada,
se disfarça de gente mais activa;

Daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

Daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira da vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristôlho que se apaga;

Daqui, só paciência, amigos meus !
Peguem lá o soneto e vão com Deus...



alexandre o'neill
atrás dos tempos vêm tempos
1996



28 agosto 2013

guillevic / elegia




Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
o cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.




guillevic
élégie, fxécutoire (1947)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003