02 agosto 2013

egito gonçalves / sobre os poemas


1

Há poetas que constróem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amassam
- lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.


2

Tal a "Cadeia de Santo Onofre:
Copie o texto: envie a cinco amigos"...
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.


3

Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
ténue tinta azul no papel claro...

Os poetas têm
como os peles-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.


4

Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião nocturno
arenga; executa o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.




egito gonçalves


01 agosto 2013

vicente aleixandre / pensamentos finais



Nasceu e não soube. Respondeu e não falou

As almas surpreendidas olham-te
quando não passas. O vento não cumpre nunca.
Teu pensamento a sós cai lentamente.
Como as fenecidas folhas caem e voltam
a cair, se o vento as dispersar.
Enquanto as espera a sóbria terra,
aberta. Calado o coração, mudos os olhos,
teu pensamento desfaz-se vagaroso
no ar. Movido suavemente. Um som de ramos
finais, um esvaído sonho de ouros vivos
se esparge…  as folhas vão caindo.



vicente aleixandre
poemas de la consumación
antologia de vicente aleixandre
trad. josé bento
editorial inova
1977


31 julho 2013

inês dias / vento garrôa


{Parque Eduardo VII, 1954]


Ouve-me tu, desta vez.
Nem cercos precários,
desvios que nunca se encontram
ou compromissos com o absoluto:
não quero mais coincidir
com o tempo,
agora que deixei de coincidir
com a minha língua.

Quero um amor que tenha
a lealdade de um cancro,
que alastre apenas dentro de mim
e me escolha os ossos
com dedos ligeiros mas demorados
de nódoa negra.

Diz-me o sentido
e seguir-te-ei,
de palavras levantadas contra o frio,
até chegar o som da espinha
quebrada como um livro
que se cansou de ser aberto.


inês dias
resumo, a poesia em 2012
documenta
2013



30 julho 2013

carlos poças falcão / fragmento (narrativa)



                                        ao Laureano, in memoriam


«A democracia manda-nos falar e eu murmuro
excita-nos ao grito e silencio. Depois a tirania
obriga a segredar. Então eu falo.
Impõe-nos o silêncio. É quando grito».
Assim ele ia, nestas lucubrações, em grande perigo
de estranhamento e dor sob o céu baixo
das nuvens suburbanas. «De mim sai o silêncio
como um grito». E caminhava. Nomes bárbaros
de indústrias e comércios seguiam-lhe o andar
são nomes de demónios?, de gigantes?») e as fachadas
irradiavam luzes de obscuros interiores.
Assim ele ia atento, regressando, em grande perigo.

«Não falo a vossa língua, não pertenço a esse código
por todo o lado oculto, o Livro não escrito
de onde saem ordens e discursos criminais».
Assim ia em combate, contrapondo voz humana
a seduções difusas e palavras-talismã.
E entretanto Outono, o fim da tarde. «A inteligência
comove-se a olhar seu próprio tempo». Alteou-se-lhe
de súbito o esterno, um arco tenso
sobre a democracia. «Não seja nunca o sonho
a comandar a vida. Que a voz que em mim compõe
me seja dura». E apressando-se
assim ele ia orando, de regresso, em grande perigo.



carlos poças falcão
telhados de vidro n.º 11
novembro 2008
averno



29 julho 2013

sophia de mello breyner andresen / sequência


I

Como esquecida voz de um amor muito antigo
Desgarram-se no ar as pancadas de um sino
A casa onde moro não fica rente às águas da laguna
Mas a parede é branca e vê-se o rio
E embora hydras e fúrias nos desfiem
A diversidade de coisas como Ponge diz
Não constrói



sophia de mello breyner andresen
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990



28 julho 2013

adolfo casais monteiro / ode ao tejo


Ode ao Tejo
e à memória de Álvaro de Campos
  

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa-
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça.
"Olá Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.

Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa
    em que Fernando Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.

Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens, imagem muito minha do terno,
porque és real e tens forma, vida ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

O meu mal é não ser dos que trazem a beleza metida na algibeira
e não precisam de olhar as coisas para as terem.
Quando não estás diante dos meus olhos, estás sempre longe.
Não te reduzi a uma ideia para trazer dentro da cabeça,
e quando estás ausente, estás mesmo ausente dentro de mim.
Não tenho nada, porque só amo o que é vivo,
mas a minha pobreza é um grande abraço em que tudo é sempre virgem,
porque quando o tenho, é concreto nos braços fechados sobre a posse.
Não tenho lugar para nenhum cemitério dentro de mim...
E por isso é que fiquei a pensar como era grave ter passado sem te olhar, ó Tejo.

Mau sinal, mau sinal, Tejo.
Má hora, Tejo, aquela em que passei sem olhar para onde estavas.
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
levado nos teus braços,
debruçado sobre a cor profunda das tuas águas,
embriagado do teu vento que varre como um hino de vitória
as doenças da cidade triste e dos homens acabrunhados...
Preciso dum grande dia a sós contigo, Tejo,
para me lavar do que deve andar de impuro dentro de mim,
para os meus olhos beberem a tua força de luxo indomável,
para me lavar do contágio que deve andar a envenenar-me
dos homens que não sabem olhar para ti e sorrir à vida,
para que nunca mais, Tejo, os meus olhos possam voltar-se para outro lado
quando tiverem diante de si a tua grandeza, Tejo,
mais bela que qualquer sonho,
porque é real, concreta, e única!

  

adolfo casais monteiro



27 julho 2013

gil t. sousa / vê, é o mundo!



19

gostava da janela pela madrugada
quando me puxavas para ti
e me dizias, apontando as luzes e as sombras
sobre os telhados da cidade:


vê, é o mundo!


gil t. sousa
água forte
2005


26 julho 2013

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)

  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  (...)
  que falaram continuamente durante setenta horas do parque para a vereda para o bar
  para Bellevue para o museu para a Ponte de Brooklyn,
  um batalhão perdido de conversadores platónicos saltando para baixo das inclinações
  das saídas de incêndio dos parapeitos das janelas do Empire State fora da lua,
  balbuciando gritando vomitando sussurrando factos e memórias e anedotas e golpes
  no globo ocular e choques de hospitais e cadeias e guerras,
  completos intelectos regurgitados na total revogação de sete dias e sete noites
  com olhos brilhantes, carne para a Sinagoga lançada no pavimento,

  que desapareceram no Zen de nenhures em New Jersey deixando um rasto de
  ambíguos postais ilustrados da Câmara Municipal de Atlantic City,
  sofrendo de suores Orientais e triturações ósseas Tangerianas e enxaquecas da
  China devido à privação de droga no desolado quarto mobilado de Newark,

  que vaguearam em círculos à meia-noite no pátio do caminho-de-ferro
  interrogando-se onde ir, e partiram, sem deixar corações partidos,

  que acenderam cigarros em vagões-jota vagões-jota vagões-jota fazendo algazarra
  através da neve em direcção a quintas solitárias na noite avó,

  que estudaram Plotinus Poe S. João da Cruz telepatia e bop cabala porque o cosmos
  vibrava instintivamente aos seus pés no Kansas,

  que o arrastaram solitário através das ruas de Idaho buscando anjos índios visionários

  que eram anjos índios visionários,

  que pensavam ser apenas loucos quando Baltimore
  cintilava em êxtase sobrenatural,

  que saltaram em limosines com o Chinês de Oklahoma no impulso da
  luz das ruas de chuva da meia-noite invernal de cidades pequenas,

  que deram investidas esfomeados e sós por Huston em busca de jazz ou sexo ou
  "sopa", e seguiram o Espanhol brilhante para conversar acerca da
  América e Eternidade, uma tarefa desesperada, e portanto embarcaram para África,

  que desapareceram adentro dos vulcões do México deixando para trás nada a não ser
  a sombra de estercos e a lava e as cinzas de poesia disseminada
  na lareira Chicago,

  que reapareceram na Costa Oeste investigando o F.B.I. em barbas e
  calções com grandes olhos pacifistas sexys na sua pele bronzeada divulgando
  folhetos incompreensíveis,

  que queimaram buracos com brasas de cigarro nos seus braços protestando contra a
  neblina narcótica de tabaco do Capitalismo,

  que distribuíram panfletos Supercomunistas em Union Square choramingando e
  despindo-se enquanto as sirenes de Los Alamos os derrubavam com lamentos, e com     lamentos derrubavam o Muro,
  e assim o ferry de Staten Island também se lamentava,

  que tiveram um colapso nervoso em pranto nos ginásios brancos nus e tremendo
  perante a maquinaria de outros esqueletos,
  (...)




  allen ginsberg



25 julho 2013

samuel beckett / mais depressa que onde



mais depressa que onde
nas espiras dos olhos
corre até
gelado no carril
da mandíbula
roer o ranger
dos dentes com o
claque-claque da cegonha

que atravessa
o sentido ido
e o olho
esbugalhado
do branco
por desnudar
tremor pavor
nem a nada

súbito dentro
macio de cinza
pânico
cintila dilacera
e de súbito
re macio
tremor passado
nunca sido

do raio
num latíbulo
há tanto escuro
tremor pavor
até que a brecha
cerrada
re escura
re queda

assi aqui
muito queda
muito nada
lacerada assi
assi sacudida
passada
cabeça amarra
in ex quasi morta

1974


samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



24 julho 2013

eugénio de andrade / a boca



A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
  
  

eugénio de andrade




23 julho 2013

herberto helder / rosa esquerda



rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único


herberto helder
servidões
assírio & alvim
2013



22 julho 2013

joyce kilmer / árvores



Parece-me que nunca ninguém há-de
Ver poema tão belo como a árvore.

Árvore que sua boca não desferra.
Do seio doce e liberal da terra.

Árvore, sempre de Deus a ver imagem
E erguendo em reza os braços de folhagem.

Árvore que pode usar, como capelo,
Ninhos de papo-ruivo no cabelo;

Em cujo peito a neve esteve assente;
Que vive com a chuva intimamente.

Os tontos, como eu, fazem poesia;
Uma árvore, só Deus é que a faria.


joyce kilmer
oiro de vário tempo e lugar
trad.  a. herculano de carvalho
asa
2003


21 julho 2013

almeida garrett / as minhas asas



Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

-Eram brancas, brancas, brancas,
Como as do anjo que m'as deu:
Eu inocente como elas,
Por isso voava ao céu.
Veio a cobiça da terra,
Vinha para me tentar;
Por seus montes de tesouros
Minhas asas não quis dar.
-Veio a ambição, cóas grandezas,
Vinham para m'as cortar,
Davam-me poder e glória;
Por nenhum preço as quis dar.

Porque as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.

Mas uma noite sem lua
Que eu contemplava as estrelas,
E já suspenso da terra,
Ia voar para elas,
-Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas...
Vi entre a névoa da terra,
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essas luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!

-Tudo perdi n'essa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

  

almeida garrett