22 junho 2013

ary dos santos / a liturgia do sangue



Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
o gosto a sol e a sangue dos sentidos.
Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.
No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

(...)

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!
Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.
Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.
Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
e coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.



ary dos santos
a liturgia do sangue
lisboa
1963


21 junho 2013

egito gonçalves / com palavras



Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.


As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...




egito gonçalves



20 junho 2013

ricardo reis / estás só



Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada 'speres que em ti já não exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.

  

ricardo reis



19 junho 2013

t. s. eliot / the four quartets

   

   O tempo presente e o tempo passado
   Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
   E o tempo futuro contido no tempo passado. 
   Se todo o tempo é presente eternamente,
   Todo o tempo é irredimível.
   O que podia ter sido é uma abstracção
   Que fica em perpétua possibilidade
   Apenas num mundo de especulação.
   O que podia ter sido e o que foi
   Apontam  para um só fim, sempre presente.
   Passadas ecoam na memória,
   Descendo o caminho que não tomámos
   Em direcção à porta que nunca abrimos
   Do jardim das rosas. Assim ecoam
   As minhas palavras na tua mente.
                                       Mas qual o desígnio,
   Turbando o pó de um vaso com folhas de roseira,
   Não sei.
   (...)
   Aquilo a que chamamos princípio é muitas vezes o fim
   E fazer um fim é fazer um princípio.
   O fim é de onde começámos. E cada expressão
   E cada frase que está certa (onde cada palavra em sua casa
   Ocupa o lugar em que sustenta as outras,
   Sem desconfiança nem ostentação, a palavra,
   Um comércio fácil entre o velho e o novo,
   A palavra comum exacta e sem vulgaridade,
   A palavra formal precisa e não pedante,
   Os cônjuges completos dançando em conjunto),
   Cada expressão e cada frase é um fim e um princípio,
   Cada poema, um epitáfio. E toda a acção
   É um passo para o patíbulo, para a fogueira, pelas goelas do mar
                                                                                  [abaixo
   Ou para uma pedra ilegível: e é aí que começamos.
    Morremos com os que morrem:
   Vê, eles partem e nós vamos com eles.
   Nascemos com os mortos:
   Vê, eles regressam e trazem-nos com eles.
   O momento da rosa e o momento do teixo
   São de igual duração. Um povo sem história
   Não se redime do tempo, pois a história é uma teia
   De momentos intemporais. Por isso, enquanto a luz se extingue
   Numa tarde de Inverno, numa capela isolada,
   A história é agora e a Inglaterra.

   Com o atrair deste Amor e a voz desta Vocação
   Não cessaremos de explorar
   E o fim de toda a nossa exploração
   Será chegar aonde começámos
   E conhecer o lugar pela primeira vez
   Pelo portão desconhecido, relembrado,
   Quando o último da terra partiu para descobrir,
   É aquilo que era o princípio;
   Na nascente do mais longo rio
   A voz da cascata oculta
   E as crianças na macieira
   Não conhecidas porque não procuradas,
   Mas ouvidas, semiouvidas na quietude
   Entre duas ondas do mar.
   Depressa agora, aqui, agora, sempre -
   Uma condição de total simplicidade
   (que custa nada menos do que tudo)
   E tudo estará bem e
   Toda a espécie de coisas estará bem
   Quando as línguas de chama se enlaçam
   E recolhem ao nó de fogo coroado
   E o fogo e a rosa são um só.



   t. s. eliot
   the four quartets
   leituras poemas do inglês
   trad joão ferreira duarte
   relógio d'água
   1993



18 junho 2013

armando silva carvalho / lentamente



LENTAMENTE arrasto a ruptura do mundo
com o terror do século
e o olhar atravessado
pela demência.
retiro da cabeça partículas de sexo,
incrustações de vício,
pequenas rotações de amores
menores.
E sento-me,
a decifrar o tédio.
A beber, feliz, a luz dos sacrifícios.


armando silva carvalho
canis dei 1995
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007



17 junho 2013

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança


(...)

Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

É meiga e calada, sem nada a apontar,
Estremece à vossa aproximação;
Mas quando eu volto, daqui, dali, da festa,
Ela dá um passo, depois fecha os olhos -
      e dá um passo.
Porque ela é o meu amor, e as outras mulheres
Só têm vestidos de ouro sobre grandes corpos
      de chamas,
A minha pobre amiga está tão desamparada
Está toda nua, não tem corpo - é demasiado pobre.
É uma flor cândida, delgada,
A flor do poeta, um pobre lírio de prata,
Muito frio, muito só, e já tão seco
Que as lágrimas brotam se penso no seu coração.




blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança.
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974



16 junho 2013

álvaro de campos / clearly non-campos!



Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige
O coração que, de repente,
Entre o que se vive, se esquece.
Não sei qual é o sentimento
Que me desvia do caminho,
Que me dá de repente
Um nojo daquilo que seguia,
Uma vontade de nunca chegar a casa,
Um desejo de indefinido.
Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a 'stação falsa
No falso ano, no imutável curso
Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
Nem o último e acabam.




álvaro de campos


15 junho 2013

benjamin péret / tempo diferente



O sol da minha cabeça é de todas as cores.
É ele que ilumina as casas
de palha
onde vivem os senhores saídos das crateras
e as belas mulheres que em cada dia nascem
e em cada tarde morrem
como os mosquitos.
Mosquito de todas as cores
que vens tu fazer aqui?
O sol este sol é para cães
e o calor sacode as montanhas
enquanto as montanhas nadam
sobre um mar pleno de luzes
onde o calor e o peso da vida
não existem
onde eu não meteria nem a ponta do meu pé.



benjamin péret
(frança, 1899-1959)
tradução de nicolau saião



14 junho 2013

luís miguel nava / o uivo



Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002


13 junho 2013

paul éluard / para exemplo



É certo que desde sempre
Aos dias são sem amor
Cada aurora imperdoável
Cada carícia infame
E cada riso uma injúria

Ouço-me e tu me ouves
Uivar como um cão perdido
Contra a nossa solidão
O nosso amor precisa mais
De amor que a erva da chuva

Ele precisa de ser um espelho



paul éluard
poemas de amor e de liberdade
trad. egito gonçalves
campo das letras
2000


12 junho 2013

rui caeiro / a dois passos



Quando penso em ti, essoutra que eu nunca mais
soube ao certo quem era, ou quem eras, em ti
e em tudo aquilo que me deste, tanto que eu
nunca soube onde colocar e logo vinha o vento
e levava, quando penso em ti e mais em tudo
o que deixaste avariado na minha vida e eram
todos os pobres artefactos dela, da minha vida
quando penso em ti, isto é, quando penso em
nós, nessa coisa insólita e paupérrima que nós
éramos, ou que nós fomos um dia, é no inferno
é ainda e só e mais uma vez no inferno que eu
penso — esse tempo esse calor esse frio essa espera
insuportável. É no inferno que penso, mas devo
reconhecer, em abono da verdade, que não era
no inferno que nós estávamos, era a dois passos
dele e se queres mesmo saber era agradável
pela boa e simples razão de que não havia mais
nada, era intensa e insuportavelmente agradável
Faltava um pouco o ar, é certo, mas quem é que
se ia importar com uma coisa dessas, havia um calor
que nos enregelava os ossos, havia um frio que nos
aquecia. Era a dois passos do inferno — estava-se bem.



rui caeiro
do inferno – cinco aproximações
telhados de vidro nr. 12
maio 2009
averno



11 junho 2013

mário botas / setembro


     "Seldom we find" says Solomon Don Dance
       "Half ann idea in the profoundest sonnet"
       E.A.Poe


  
A fisionomia, o carinho das coisas impalpáveis,
o balbuciar, todo em amarelo, dos limões...
Cintura na pedra,
correio subtil de Lesbos para Marte.

Antinous visitou-me. Deixou a casa desarrumada
e um projecto em mim demasiadamente longo.
No frágil da memória eu durmo e sou eu
deuses de papelão sentando-se a meu lado.

No leito fluvial por onde dorme o cisne
chamam por mim os outros príncipes. Todos
irmãos.

Escuridão nova na velha escuridão,
efeito de luz nas janelas do poema...
O meu cão dorme. He is a poet, isn't he?

(1980)



 mário botas

poema publicado no blogue quartzo, feldspato e mica
poema oferecido por mario botas a nicolau siao



10 junho 2013

antónio josé forte / reservado ao veneno




Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras



antónio josé forte
40 noites de insónia de fogo de dentes numa girândola
implacável e outros poemas
lisboa
1958