20 outubro 2012

edgar lee masters / emily sparks


   

Onde está o meu rapaz, onde está,
em que parte do mundo?
Dos meus alunos todos, aquele que mais amei?
Eu, a professora, a solteirona, a de coração puro,
que fez de todos eles seus filhos?
Mas terei de facto conhecido o meu rapaz
ao supô-lo de espírito ardente,
inquieto, num anseio constante?
Ah, rapaz, por quem tanto rezei
em muitas horas de vigília nocturna,
lembras-te da carta que te enviei
acerca do sublime amor de Cristo?
Quer a tenhas ou não recebido,
meu rapaz, onde quer que estejas,
trabalha pela salvação da tua alma,
para que tudo o que em ti é barro ou impureza
possa obedecer à chama que possuis dentro de ti,
até que essa chama já não seja senão luz!...
nada senão luz!

  


edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




19 outubro 2012

manuel antónio pina (1943-2012)










Quinquagésimo ano



São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso...)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sitio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.

18/5/00






manuel antónio pina
atropelamento e fuga (2001)
todas as palavras
poesia reunida
assírio & alvim
2012



cruzeiro seixas / no silêncio das tapeçarias





No silêncio das tapeçarias
há a memória
das terríveis batalhas
do imaginário.
Mas são ternas
as cartas que trocam entre si
os seus heróis.
É certo que as árvores cantam por toda a parte
a sua música
e que há enfim leões e elefantes
no centro de Londres
de Paris ou de New York.
Agora a tua face está cravejada de ponteiros
e a manhã que acaba de nascer
regressa ao ventre materno.
Lisboa cobre-se de gaivotas.
Um gravíssimo excesso de grandeza
anuncia o Nada.


áfrica 69




artur do cruzeiro seixas
obra poética vol. I
quasi
2002


18 outubro 2012

mário-henrique leiria / explicação rigorosa





Esperar
o quê?
uma máquina
de transformar bananas
em governos?
uma porta
que só obedece ao sinal
do ombro respeitável?
o cão profissional
que morde à sexta-feira
a perna que contesta?
o dedo
de unha poluída
que aponta a única direcção?

esperar
o quê?
o riso explosivo
e quente
como um sexo de mulher
aberto em flor

a faca
a granada
o dia




mário-henrique leiria
novos contos do gin
estampa
1973




17 outubro 2012

antónio ramos rosa





" Algo nos cria e nos liberta dos absurdos cercos.
Despertámos para tocar a boca esquecida pela noite.
Somos a folhagem e o espaço, somos uma garganta fresca.
As sombras aquecem-nos e as estrelas visitam-nos.
O meu corpo é de argila estou vivo e aceito o dia."




antónio ramos rosa
corpo de argila», de volante verde, 1986





16 outubro 2012

harold pinter / instantâneos


  

O político engana o rato,
Cujas dentadas são rançosas
Naquela ferida de aloé.
O sol está no armário.

O sol está no armário.
Aquele criado desfaz o esqueleto,
E talha a mama científica.
Luz através do retrato.

Sombra através do retrato.
O anão da cave, irado
Como o arminho, periscopeia
A relojoaria da lua.

O vigário no seu jogo
Desenrola o fio de pesca,
Espera um charco nivelado.
Sombra através do armário.

1952



harold pinter
várias vozes
tradução miguel castro caldas
quasi
2006



15 outubro 2012

john berryman / soneto 117


  

Estávamos cheios de força a noite passada por esta hora,
as borboletas voavam e os daiquiris gelados descaíam,
Lise estava deitada de costas no chão,
séria e sublime, ouvindo Schubert,
a minha cabeça explodia com uma rima:
foi uma bela noite, uma noite para agradar,
beijei-a na cozinha – êxtases –
e ocultámos o crime sob um manto de ternura.

O tempo está a mudar. Estava frio esta manhã
enquanto me dirigia para o parque, sem expectativas,
centenas de velhos sonetos no meu bolso
para lhe ler caso ela viesse. Mas os pinheiros entretanto
encheram-se de sol e a minha senhora não veio
em jeans azuis e camisola. Sentei-me e escrevi.




john berryman
(1914-1972)
collected poems, 1937-1971
farrar, straus & giroux, inc.
tradução de miguel gonçalves


13 outubro 2012

josé mário branco, sérgio godinho / eh! companheiro







Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou pra te falar
Estas paredes me tolhem
os passos que quero dar
uma é feita de granito
não se pode rebentar
outra de vidro rachado
p'ras duas pernas cortar

Eh! Companheiro resposta
resposta te quero dar
Só tem medo desses muros
quem tem muros no pensar
todos sabemos do pássaro
cá dentro a qu'rer voar
se o pensamento for livre
todos vamos libertar

Eh! Companheiro eu falo
eu falo do coração
Já me acostumei à cor
desta negra solidão
já o preto que vai bem
já o branco ainda não
não sei quando vem o vento
pra me levar de avião

Eh! Companheiro respondo
respondo do coração
ser sozinho não é sina
nem de rato de porão
faz também soprar o vento
não esperes o tufão
põe sementes do teu peito
nos bolsos do teu irmão

Eh! Companheiro vou falar
vou falar do meu parecer
Vira o vento muda a sorte
toda a vida ouvi dizer
soprou muita ventania
não vi a sorte crescer
meu destino e sempre o mesmo
desde moço até morrer

Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou p'ra responder
Sorte assim não cresce a toa
como urtiga por colher
cresce nas vinhas do povo
leva tempo a amadur'cer
quando mudar seu destino
está ao alcance de um viver

Eh! Companheiro aqui estou
aqui estou pra te falar
De toda a parte me chamam
não sei p'ra onde me virar
uns que trazem fechadura
com portas para espreitar
outros que em nome da paz
não me deixam nem olhar

Eh! Companheiro resposta
resposta te quero dar
Portas assim foram feitas
p'ra se abrir de par em par
não confundas duas coisas
cada paz em seu lugar
pela paz que nos recusam
muito temos de lutar.



sérgio godinho
do álbum margem de certa maneira
de josé mário branco
1982





12 outubro 2012

joão almeida / trocos




há casas que não ouço, protejo-me
no vão das portas
rua a rua

no bolso dois grãos de trigo
para que o vento pare




joão almeida
telhados de vidro nr. 11
averno
2008



11 outubro 2012

jean genet / a caracterização?





     A caracterização?
     Excessiva. Desmedida.
     Capaz de prolongar até ao cabelo os teus olhos.
     E vais ter unhas pintadas.

     Quem, normal e bem-pensante, anda no arame
     ou faz versos? louco demais.

     Homem ou mulher? de certeza monstro.
     E pelo Contrário,
     em vez de agravar um exercício destes vai atenuá-lo:
     é realmente mais claro do que um ser paramentado,
     dourado, pintado, para dizer tudo equívoco,
     que ali anda de passeio, sem perder o equilíbrio,
     onde notários e ladrilhadores nunca pensariam subir.

     Pintado pois, e sumptuosamente,
     até provocar náuseas.
     Mal apareça.
     Logo ao primeiro número no arame
     vai compreender-se que este monstro de pálpebras roxas
     só ali poderia dançar.
     Por certo irá dizer-se que pousar naquele arame assim,
     de olhos alongados, faces pintadas, unhas douradas,
     é que o obriga a ficar num Sítio onde nunca havemos nós graças a Deus!
     — de estar.

     Mas procuro agora que me entendam melhor.

     Para o poeta dispor da solidão absoluta que precisa,
     se realmente quer realizar a sua obra
     -- extraída de um nada a preencher e fazer, ao mesmo tempo,
     sensível pode expor-se numa atitude,
     numa atitude qualquer que será para ele a mais perigosa.
     Muito cruelmente afasta curiosos e todos os amigos,
     qualquer convite que tenda a vergar-lhe a obra em direcção ao mundo.

     Queira ele e pode proceder assim:
     largar à volta um cheiro pestilento,
     tão negro que ele próprio há-de perder-se,
     meio asfixiado, nele.

     De todos fugirem. E fica só.
     A maldição aparente vai permitir-lhe todas as audácias,
     já que se não perturba com nenhum olhar.
     E velamos como vai mover-se num elemento
     que parece a morte, o deserto.
     A sua Palavra não levanta eco.
     E porque se não dirige a ninguém,
     só a deve compreender quem estiver vivo,
     e aquilo que enuncia terá de fazer-se necessidade
     que a vida não exige mas antes a morte
     que vai dirigi-lo.

     (...)




jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984



10 outubro 2012

seamus heaney / a forquilha


  

Era a forquilha, de todas as alfaias,
A mais parecida com a perfeição imaginada:
Quando apertava a mão erguida e apontava
Ele sentia-a certeira e leve, como um dardo.
Brincasse, então, de atleta ou de guerreiro,
Ou trabalhasse a sério na palha e no suor,
Ele adorava-lhe a textura, a cor do freixo
da fina haste acetinada pelo uso.
Aço batido, madeira ao torno, lustre, toque
Do que é suave, recto, brando, luzente e esguio.
Suado, afiado, calibrado, posto à prova.
Em dinâmica tensão, presto e exacto.
E se ele pensava numa sonda nos confins,
Via o cabo de uma forquilha navegando
Serena, imperturbável pelo espaço,
Estrelas nas pontas e em silêncio absoluto -
Mas aprendeu enfim a seguir tão simples pista
Além do seu alcance, para um outro lado
Onde a perfeição - ou quase isso - se imagina
Na mão a abrir, que não a apontar.



seamus heaney
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução rui carvalho homem 
assírio & alvim
2001


09 outubro 2012

josé miguel silva / para agradar a uma sombra


  

                              Isn ‘t it just like love?
                                        The Psychedelic Furs



Agora que já chorei o meu papel de solitário
posso virar a folha e declarar que, na verdade,
eu nunca estive sozinho. Tive sempre a boa companhia
da minha sombra. E não posso dizer
que nos déssemos mal: uns dias pior, outros pior.
Como todos os casais. Tínhamos (e temos)
a mesma idade, os mesmos gostos musicais,
um amor paralelo por fogo de lenha,
líamos os livros a meias, quase não gastávamos
nenhum oxigénio.

Dos dois era ela quem insistia, às vezes,
para irmos dançar. Mas eu, é claro, detestava
o tremedal das discotecas; amava mais depressa
o movimento descritivo dos romances
do que a Iuz hipotecada de um corpo distante.
Com o tempo, no entanto, foi crescendo esse litígio.
As nossas relações foram perdendo vulto
à medida que ela convidava mais gente
para a nossa cama. Até que um dia chegou a casa
e apresentou-me “o amor da nossa vida; agora
somos três”. E assim a minha sombra,
a minha ingrata começou a dizer coisas Iacerantes.
Por exemplo: “Vai tu ao cinema. Nós ficamos.”
Ou então: “Bem podemos, de vez em quando,
caminhar separados, ou não achas?” E fecha-se
no quarto com a outra, em colóquios ofegantes.
Altura em que, de raiva, saio porta fora.

Uma vida a três é talvez menos longa do que uma vida
a dois. Há um milímetro agora de distância entre mim
e a sombra. O espaço bastante para um raio de luz.
Não ficamos, realmente, pior do que estávamos.
Mas chega a ser enjoativo ver o trevo cor-de-rosa
que semeiam no quintal, felizes como duas estrelinhas
de cinema. Nem sei o que diga. Parecem crianças.




josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d'água
2003



08 outubro 2012

luis muñoz / fixações





Telefona-me à meia-noite.
Escuto o lamber do vento
através do telefone, como um cachorro ansioso,
e a sua voz transparente na cabina.

Há em frente ─  diz-me ─
um armazém de chapa
com forma de garrafa,
um terreno com escombros
branqueados de gesso,
umas casas cúbicas como dados sem uso
e três ou quatro pinheiros calcinados
da cor do remorso.

Estas poucas imagens
fixam-me à sua ausência
como devem fixá-lo ao facto de estar só.

No meu quarto de livros clareados
pela luz de moeda da lua,
provoca uma pontada:
─  Estou atrás de ti ─  diz-me ─
e em redor de tudo isto.




luis muñoz
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000