O 25 de Abril tem autores e tem dono: fomos nós e é nosso. Sempre!
25 abril 2012
sophia de mello breyner andresen / como uma flor vermelha
À sua passagem a noite é vermelha
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.
Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.
Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999
24 abril 2012
joão rui de sousa / a hipérbole na cidade
… … …
Rossio. Rossio mil e um, mil e dois, mil e três...
Rossio multímoda da Lisboa-viela.
Lisboa aquecida. Lisboa despida.
Lisboa-viagem numa caravela.
Barcos de papel à tona d’água.
Cestos de papel à vista, flor.
Papel nos bolsos, papel nas arcas.
Papéis-meninas a vender amor.
Polícia artefacto (vendedor vem comigo).
Relógio partido (parado ou não).
Rodelas de ginja encantada e um vidro
(Estão todos bebidos, caídos, perdidos,
irmão).
Gravatas sem vida (baratas, presentes).
Marinheiro por detrás (redondo, redondo).
Magalas com sorte, magalas doentes.
Galegos despidos na frente do mundo.
Rossio. Proibido parar, proibido avançar.
Proibido fugir, proibido fumar.
Proibido sorrir proibido olhar.
Proibido cantar,
proibido
cantar.
*
Sou pobre. Medito em tudo a meu modo,
Medito em porto (tecido, conteúdo).
Medito em seios (sabor e olfacto).
Medito em tudo.
Há europas desnudas espalhadas por coxas.
Há repúblicas doridas a pernoitar.
Há montanhas já fartas dos prazeres iníquos.
Há rios imaginários do amor do universo.
Geográfica e nossa é a condição de pobres.
Sobretudo em Rossio, Rossio mil e três.
Com sorrisos nos lábios e
letreiros às costas,
cantando alegremente:
Estamos nus e gramamos.
Total a iniquidade de que estamos seguros.
Total a recompensa de mijo e areia.
Total o que somos, total o que fomos.
Total de pensarmos silêncio e candeia.
Total de mistela e de vão sacramento.
Total de miséria que um verme constrói.
Totais Descobertas... Eles lá o sabiam
explicar, se pudessem, como isso foi.
Rossio, meu amigo,
meu doidamente doido pelo chão.
Cais de Sodré vem comigo
Decifrar-me a canção:
Mil e dois, mil e três.
Mil e dois, mil e três.
… … …
A fome é uma mistura de carne
(pedras negras, .pedras brancas).
Desenhos? O tempo os desfaz.
Pombal restaurou. Pombal afinou.
Só não acabou o medo deste século.
Lisboa — a grande nau que não havia
no pensarmos sermos o que somos:
uma onda e outra sobre a outra onda,
feitas, de mil olhos, serpentinas.
Lisboa ou claro Tejo da ilusão.
(Funileiro à porta ou estar sentado.)
Somos o que somos: podres e serenos
na serena paz de fracassados.
Se os sinos da tua aldeia — Largo
de S. Carlos — falassem outra vez,
como diriam hoje agora:
Rossio mil e três?
Serrano e impossível.
Severo e impotente.
Cansado, impassível
grão podre
doente.
*
Envelope aceso para enviar notícias,
novas muito antigas deste tempo.
Capitão viaja. Comandante à âncora.
Viva a morte, a noite e o desespero.
São estas as cordas de um cartaz turístico.
São estas as luzes dum assassinado.
Estrangeiro acena. E canta e grita:
Pobre noite, camarada.
… … …
Temos de coabitar.
O sonho dilata-se no sonho.
Ficaremos pobres como dantes?
Ficaremos cegos?
Estrangulem-me se quiserem.
joão rui de sousa
a hipérbole na cidade
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
23 abril 2012
josé emílio pacheco / alta traição
Não amo a minha pátria.
O seu fulgor abstracto
não se deixa agarrar.
Mas (ainda que soe mal)
daria a vida
por dez lugares seus,
certa gente,
portos, bosques, desertos, fortalezas,
uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
várias figuras da sua história,
montanhas
- e três ou quatro rios.
josé emílio pacheco
tarde o temprano (poemas 1958-2000)
fondo de cultura económica
edição de ana clavel, 3ª edição
picacho-ajusco
2004
(versão de luís filipe parrado
22 abril 2012
benjamin péret / a desonra dos poetas
[…] O poeta luta contra toda a espécie de opressão:
em primeiro lugar a do homem pelo homem e a opressão do seu pensamento pelos
dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele luta para que o homem atinja
definitivamente um conhecimento perfectível de si próprio e do Universo. Não se
conclua disto que o poeta deseja pôr a sua poesia ao serviço de uma acção
política, mesmo revolucionária. Mas a sua qualidade de poeta faz dele um
revolucionário que deve combater em todos os terrenos: no da poesia pelos meios
que a esta são idóneos e no terreno da acção social sem jamais confundir os
dois campos de acção, sob pena de estabelecer a confusão que importa dissipar
e, por conseguinte, de deixar de ser poeta, isto é, revolucionário.
benjamin péret
a desonra dos poetas
o surrealismo na poesia
portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
21 abril 2012
paula almada-negreiros / canção
Longe, muito longe onde as minhas mãos serão cúpulas para
[abrigar corujas
onde meus olhos asas de águia para abrir livros antigos
onde meus braços serão novas árvores daqui a
milhões de anos para uma nova floresta virgem
onde minha cabeça será o campanário duma igreja aldeã
antiquíssima para os homens do
centésimo vigésimo quinto
[século depois de mim
onde minha boca será a gruta do lado de fora da Terra
[do lado de dentro do mar
onde se esconderão traineiras navegadas por sereias
de meus braços algas do princípio do mundo
onde minha cama será o barco para navegar em toda a Terra
[cinzenta
com dunas que taparão árvores de deserto
onde num mundo em que EU se diz ALFABETO NÚMERO
asteróide com um número
incapaz de se ler
paula almada-negreiros
ângulo poente
o surrealismo na poesia
portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
20 abril 2012
gil t. sousa / não saber
50
todas as
noites não saber
em que hora
parar
em que
degrau de sombra
largar o
recado para o nada
que nos
queima
as mãos
gil t. sousa
falso lugar
2004
19 abril 2012
dórdio guimarães / guerra e civilização
II
revolver o sangue até a língua ser revólver
revirar os olhos com endereço revoltar a lua
revelar em fotograma ao retardador o céu
rodopiar em árvore um réquiem solar
revoar em ave a rápice aventura
revolver o universo no rito de morrer
redigo refazer reunir recomeçar
(remorso foi não amar de mais) repercutir
ah grande organista é a flor
dórdio guimarães
a idade dos lilases
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
18 abril 2012
eugénio de andrade / somos folhas breves onde dormem
Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
17 abril 2012
hermes trismegisto / tabula smaragdina
Isto é a realidade não falseada mas certa e verdadeira.
O que está em cima é igual ao que está em baixo e o
que está em baixo é igual ao que está em cima para
realizar os milagres de uma coisa.
E da mesma forma que todas as coisas estavam sujeitas
à contemplação de uma, assim todas as coisas, por um
simples acto de contemplação, apareceram daquela.
O pai disto é o Sol. A mãe, a Lua. O vento transpor-
tou-a nas suas entranhas e a Terra foi a ama dedicada.
E a causa de todos os maravilhosos trabalhos espalha-
dos pelo mundo.
O seu poder é perfeito.
Se se entregar à terra, separará o elemento da terra do
fogo, o subtil do grosseiro.
Com grande sagacidade proporciona uma subida agra─
dável da terra para o céu.
Novamente proporciona a descida à terra e reúne em
si a força das coisas superiores e inferiores.
Assim, possuirás a glória do
esplendor de todo o mundo
e toda a obscuridade fugirá de ti.
Assim, intensamente se robustece toda a fortaleza. Com
ela dominarás tudo o que é subtil e penetrarás em toda
a substância sólida.
Assim se criou este mundo.
Tal é a maneira de conseguir maravilhosas adaptações.
Por esta razão me chamam Hermes Trismegistus, porque
possuo três partes da sabedoria do mundo.
Assim se completa tudo o que tinha a dizer sobre a
operação do Sol.
hermes trismegisto
tabula smaragdina
16 abril 2012
fernando grade / aqui no planeta encontrado
Aqui no planeta encontrado todos sabem tudo sobre
nós
e as raparigas tremendo de cio e de outras coisas
mais
pedem-me poesia e bravas rosas bravas bravíssimas
Pouco se fala de electrões e de bombas
─ não vale a pena falar de coisas que incomodam as
pessoas
Aqui as raparigas distribuem sorrisos pelas ruas
e há uma ternura especial nos seus olhos quando
falam no amor
Dói o corpo e o sexo por não ter trazido coisas da
Terra
Vim nu sem abraços navalhas ou mordeduras de pulga
Apenas trago dois versos do meu amigo Jorge
─ poeta anónimo que morreu sem ninguém dar por isso
Mas os versos do Jorge cabem dentro de um bolso
e a poesia não pode caber dentro de nada
Aqui no planeta todos sabem tudo sobre nós
mas há sempre quem pergunte que forma geométrica
tem
[a fome terrestre
a fome espanhola portuguesa ultramarina
querem saber se Lisboa ainda é uma cidade de dez
mil
[coitadinhos
e se a mesa de pé-de-galo serve para abrir caminho
na literatura
Há pouco uma criança castanha chegou-se a mim e
disse:
─ Fernando como foi aquilo em Nagasáqui?
E vem gente de muitas bandas oferecer-me cogumelos
e calor de seios e tranças vermelhas
bacteriologicamente puras
[e vermelhas
Aqui todos os cogumelos são objectos turísticos
pois nunca mataram ninguém
Agora mesmo acabo de ser beijado por uma moça
Aqui qualquer pessoa pode beijar outra
mesmo sem a conhecer
É preso quem não tiver estômago para entrar neste
ritual
há uma multidão de impotentes pelas ruas
beijando as virgens e as mulheres parideiras
Já me perguntaram que satisfação moral existe
em fazer filhos no Sena
fernando grade
desintegracionismo
o surrealismo na poesia portuguesa
org. de natália correia
frenesi
2002
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