21 dezembro 2011

gil t. sousa / claríssimo lugar




43

e chega-se ao lugar
do saber
ao claríssimo lugar
de tudo se nos correr no coração
como luz
como um animal devotado
e louco
branco, muito branco
caído nos olhos fechados
no outro lado
como se fosse enfim
a morte




gil t. sousa
falso lugar
2004




20 dezembro 2011

al berto / recado





ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer -- vai por esse campo
de crateras extintas -- vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo -- deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração -- ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna -- o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira -- não esqueças o ouro
o marfim -- os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço




al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997



19 dezembro 2011

edmundo de bettencourt / consagração





Tinham desaparecido
as casas da cidade.
E havia agora uma praça,
donde a população olhava o céu, à espera.

O avião chegou.
Vinha sobre uma nuvem branca,
que irradiava aromas,
a claridade e a música, pelos ares...

O aviador de fora e à frente,
conduzia-o
e andava no ar como no chão!

De repente o avião desceu
vertiginosamente!

Caía...

E embora não se ouvisse explosão,
em baixo
um fumo negro, imenso, com destroços,
e o fogo, começaram subindo
à altura em que o avião pairava antes.

A multidão,
rápida,
como as águas duma enchente,
escoou-se...

Depois mais nada;
isto é:
somente uma infinita escuridão por sobre
a qual a palavra perdão jamais será escrita!





edmundo de bettencourt
poemas surdos
assírio & alvim
1981


17 dezembro 2011

armando silva carvalho / cavalos persas, papagaios, panteras





Cavalos persas, papagaios, panteras
e um elefante branco que borrifava as gentes
- tal era a embaixada de D. Manuel
a Leão o Décimo
em frente da qual o paquiderme
ajoelhou três vezes.
Assim se transportou Portugal a Roma.
Um circo a abarrotar por entre os deuses
(Miguel Ângelo) que transpiravam
a melancolia da solidão e da grandeza.
Num tempo em que se incrementava
a poesia didáctica de formosos temas
que iam do xadrez à criação dos bichos-da-seda
ou até à sífilis do célebre Frascator.
Aliás o Papa, de pestilenta fístula,
perito ele em xadrez,
poderia ter ouvido dizer a um da sua família,
Lourenço de Médicis: devemos desconfiar
da parte dianteira dos bois,
da parte de trás das mulas
e das duas partes dos frades.
Comia-se no ouro. Ou se roubava gado.
Como fez Giovanna Catanei - a Vanozza,
primeira amante de Alexandre VI.
Em Roma, como agora,
os poetas não passam de macacos
que se acolhem sob o sol papal.
Como esse Aretino que seria um nome
nos cristais e nos rios,
na testa dos bastardos e dos avarentos,
na vagina sábia das Impérias
e no peito dos cardeais que folgam.
«Com uma pena de papel faço troça de tudo
e até mesmo de mim parece Deus ter medo.»

  



armando silva carvalho
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001





16 dezembro 2011

adrienne rich / os tigres da tia jennifer






Os tigres da tia Jennifer cruzam uma trama,
Cidadãos de fulvo quartzo num verde panorama.
Nada receiam dos homens ocultos na folhagem;
Desfilam com dignidade, galhardia e coragem.

As mãos da tia Jennifer manobram com desvelo
A agulha de marfim que a custo puxa o novelo.
No anel da Tia Jennifer o peso do meu Tio
Submete e verga o dedo que outrora cingiu.

Essas mãos amedrontadas, quando ela morrer,
Ficarão ainda algemadas ao que aceitou sofrer.
E na trama aqueles tigres por suas mãos cerzidos
Hão-de ficar desfilando, altivos e destemidos.




adrienne rich
a change of world, 1951
tradução de margarida vale de gato





15 dezembro 2011

luís filipe parrado / o tempo que faz






Os velhos sentam-se neste banco
a avaliar o tempo que faz encostados a uma empena
escura, mais antiga do que eles. Também eu,
escondido na sombra, deixei para trás
a luz das dunas. A visão pinta com cores cegas
o lugar onde a alegria se desfez, uma história
de águas perdidas no coração da terra.
O fim de um amor é como um sonho.
Ainda hoje o fumo dos cigarros me sabe
melhor pelo sopro da manhã
depois de um sono sereno. As limalhas radiantes
no túnel mostram como se cai no limbo negro do horizonte,
no rio espesso após o crepúsculo.
Sim, soube tarde de mais o que podia dizer
da minha vida, com a boca fechada por correntes
e trapos estava simplesmente morto.
Como os velhos que continuam sentados neste banco
acordo a tempo de comprar algum pão
e varrer do passado o teu rosto, uma promessa estilhaçada,
um grão de juventude que me guia com uma pequena luz
que só no vento destas palavras se mantém.




luís filipe parrado
criatura
nr. 4
2009





14 dezembro 2011

carlos edmundo de ory / poema





A minha boca é uma chaga
O meu trabalho é o silêncio
Eu e a noite dormimos juntos
e nunca dormimos




carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997



13 dezembro 2011

luiza neto jorge / acordar na rua do mundo






madrugada. passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos.
no meu quarto cai o som depois
a luz. ninguém sabe o que vai
por esse mundo. que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas. os pombos
alisam as penas. no meu quarto cai o pó.

um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.

sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios, pombos debicam
   
o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o vídeo
não gravou

e duma varanda um pingo cai
de uma vaso salpicando o fato do bancário




    
luiza neto jorge
poesia
fragmentos
assírio & alvim
1993





12 dezembro 2011

inger christensen / se estou





se estou
sozinha na neve
é óbvio
que sou um relógio

de outro modo como poderia
a eternidade deslizar





inger christensen
trad. josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001



10 dezembro 2011

henri michaux / náusea ou é a morte que se aproxima?




27 de abril


Rende-te, coração.
Lutámos tempo de mais,
Que se acabe a minha vida,
Não fomos cobardes,
Fizemos o que pudemos.

Oh! Alma minha,
Ou ficas ou vais,
Tens de te decidir,
Não me apalpes assim os órgãos,
Ora com atenção, ora com desvario,
Ou vais ou ficas,
Tens que te decidir.

Eu, por mim, não posso mais.

Senhores da Morte
Nem vos aplaudi, nem blasfemei contra vós.
Tende piedade de mim, viajante de tantas viagens sem
bagagem,
Sem amo, sem riqueza, sem glória,
Sois de certeza poderosos e ainda por cima engraçados,
Tende piedade deste homem transtornado que antes de
saltar a barreira já vos grita o seu nome,

Apanhem-no no ar,
E, se for possível, que se adapte aos vossos
temperamentos e costumes,
Se vos aprouver ajudá-lo, ajudai-o, peço-vos.



  

henri michaux
equador
trad. de ernesto sampaio
fenda
1999



09 dezembro 2011

muhammad al-maghut / inverno





como lobos em períodos de seca
crescemos por toda a parte
amámos a chuva
amámos o outono
um dia até pensámos
em enviar uma carta de agradecimento ao céu
com uma folha de outono como selo de correio
acreditávamos que as montanhas desapareceriam
os mares se dissipariam
apenas o amor seria eterno
de súbito separámo-nos
ela gostava de sofás compridos
e eu de longos navios
ela gostava de sussurrar e suspirar nos cafés
eu gostava de saltar e gritar nas ruas
e, apesar de tudo,
os meus braços vastos como o universo
estão à espera dela …




muhammad al-maghut
trad. adalberto alves
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

08 dezembro 2011

mark strand / elegia 1969




                               segundo carlos drummond de andrade


  

Arrastas a escravidão até à velhice
e nada que faças te vale de muito.
Dia após dia passas pelos mesmos gestos
tremes na cama, tens fome, desejas uma mulher.

Heróis representando vidas de sacrifício e obediência
enchem os parques por onde caminhas.
À noite, no nevoeiro, abrem as umbrelas de bronze
ou então refugiam-se nos vestíbulos vazios dos cinemas.

Amas a noite pelo seu poder de destruição,
mas enquanto dormes, os teus problemas irão morrer.
Acordar só prova a existência da Grande Máquina
e a luz árdua cai nos teus ombros.

Caminhas entre os mortos e falas
de tempos por vir a assuntos do espírito.
A literatura fez-te desperdiçar as melhores horas de amor.
Fins-de-semana perdidos, a limpar a casa.

De pronto confessas o teu fracasso e adias
a alegria colectiva para o próximo século. Aceitas
a chuva, a guerra, o desemprego e a distribuição injusta da riqueza
porque não podes, sozinho, rebentar a ilha de Manhattan.




mark strand
trad josé alberto oliveira
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




07 dezembro 2011

constantino cavafy / à espera dos bárbaros





O que esperamos nós em multidão no Forum?

       Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

        É que os Bárbaros chegam hoje.
        Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
        Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

        Porque os Bárbaros chegam hoje.
        E o Imperador está à espera do seu Chefe
        para recebê-lo. E até já preparou
        um discurso de boas-vindas, em que pôs,
        dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

        Porque os Bárbaros chegam hoje,
        e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

        Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
        e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

        Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
        E umas pessoas que chegaram da fronteira
        dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.

                                                         
 [Antes de 1911]






constantino cavafy
90 e mais poemas
trad. jorge de sena
edições asa
2003