16 março 2010

marosa di giorgio / os papéis selvagens





8

Vamos pela parede.

A mamã tem asas castanhas sedosas; eu, asas cor de violeta; ao abri-las vêem várias camadas de gaze. Prosseguimos pelo muro; com antenas finíssimas tocando nos galhos, nos ramos, de bálsamo, de salsa e de outras coisas.

Parece que estamos livres dos semelhantes que são como azougue.

A cada minuto, a lua é mais branca e escura.

E resplandece por todo o prado, aqui e ali, a Virgem dos Insectos.

Com asa e diadema e muitíssimos pés.










marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga







12 março 2010

marguerite yourcenar / essas mãos







Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornam pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas tuas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Com pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.







marguerite yourcenar
fogos
trad. maria da graça morais sarmento
difel
1995







10 março 2010

gil t. sousa / tarde antiga






15/


oratórias de Bach
e uma fileira de árvores nuas

o vento é um calendário antigo
arrumado na gaveta mais funda

as jarras, os cinzeiros,
todos os vidros com
aquela pose de diamante

que durante tanto tempo
me encheram os olhos

numa caixa sobre a mesa
estão amarradas as últimas palavras

escritas em papel surdo
numa caligrafia mortal










gil t. sousa
falso lugar
2004







08 março 2010

isabel meyrelles / tu és o meu relógio de vento






Tu já me arrumaste no armário dos restos
eu já te guardei na gaveta dos corpos perdidos
e das nossas memórias começamos a varrer
as pequenas gotas de felicidade
que já fomos.
Mas no tempo subjectivo
tu és ainda o meu relógio de vento
a minha máquina aceleradora de sangue
e por quanto tempo ainda
as minhas mãos serão para ti
o nocturno passeio do gato no telhado?







isabel meyrelles
o rosto deserto
1966






04 março 2010

al berto /engate








é uma ameaça encontrar-te à esquina das ruas
rente aos grandes cinemas do mar
como se fosses o espelho côncavo de feira
onde posso mergulhar e renegar-me

sim
se olhares o céu lúgubre deste fim de século
se fizeres um movimento de farol com o cigarro
eu - que vou a passar - tudo verei
mas nada será meu
porque não se pode falar com o espectro mudo
do engate - nem o desejo se levantará
para seduzir o corpo daquele que se ausentou

mesmo assim conheço
todas as esquinas da imunda cidade que amo
mesmo assim sofro de insónias - imito o noitibó
o bêbado louco
gesticulo como aquele que já não sou e
outro não serei

mantenho-me de pé e fumo
dentro deste túmulo de incertezas onde
nos encostámos de mãos enlaçadas à espera
que uma qualquer cesura nos agonie e sejamos
obrigados a vender o corpo já usado
aos insuspeitos violadores de poemas








al berto
horto de incêndio
assírio & alvim
1997






01 março 2010

manuel antónio pina / esplanada








Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramago & coisas assim
eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu:
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos de andar como dantes,
chamando do fundo do meu coração.







manuel antónio pina
poemas
encontros de talábriga
1999




25 fevereiro 2010

andre breton e paul éluard / nada existe de incompreensível





Que atracção reuniu assim no fundo deste abismo, a mil metros abaixo do nível do mar, alguns dos maiores criminosos do nosso tempo? O local é fresco, mas mais claro que espinhoso. Nenhuma inquietação pelo futuro, nenhuma luz escondida, ali chama por aqueles que procuram através das paisagens as grandes confidências vivas. Uma pequena vivenda de arrabalde fura entre os maciços de coral e os cantos de esferas o seu pára-raios e o seu pombal junto da suave epiderme da alga vermelha. Os que habitualmente vêm a este sítio falam com mais gosto de ódio que de amor. O acaso, este ano, conduziu para esta clareira famosos artistas.
Troppmann, a Brinvilliers, Vacher, Soleilland, Haarmann… Que festa de caridade poderia gabar-se de reunir tão grandes artistas no mesmo cartaz? Contudo, lá estão sem nada terem combinado, por repouso, por estudo também, preparando na paz desta depressão os programas misteriosos de que não nasceram os executores esplêndidos.
Na serenidade das noites a Brinvillers ressuscita os seus venenos perdidos com aquela graça reflectida que lhe permite uma interpretação justa e verdadeira do pensamento arsenical. Vacher evoca a beleza das prostitutas apaixonadas, Haarmann come, Soleilland joga, Troppmann ri, todo um terreno vago nos olhos.
Na volta de alguns carreiros, roçando pelos mastros de barcos submersos, palavras sem canções misturam-se com esta atmosfera de piratas e talvez nunca o seu poder se tenha exercido com mais liberdade. A atracção que agiu nestes criminosos não deve ser mais do que esta pureza, este silêncio do abismo, que permite à linguagem assassina reencontrar, de certo modo, a sua juventude, o ponto de força e de acção onde é absolutamente ela própria, sem que nada a estorve ou a corrompa.
Nunca esqueceremos o dia em que, pela primeira vez, vimos Soleilland entrar no mar. O silêncio estabelecera-se pouco a pouco no quarto quando este homem alto e jovem se aproximou do leito e se sentou. Olhou a cabe leira clara pela qual passara a mão, recolheu-se e era como se tivesse querido passar um pouco da sua emoção e da sua sagacidade para os adoráveis anéis do seu cabelo. Nenhuma afectação neste recolhimento. Sentíamo-lo só e verdadeiramente naquele instante todos nós existíamos mais ou menos através dele. O fenómeno que liga tão estranhamente um homem àquilo que ama não existe aliás fora da autoridade, da exigência: é tanto um abuso da força como uma força e pertence à distracção dos demónios.
Quando a vozearia pública esmoreceu, quando ficou à altura do mar, quando deixou de ser o mais forte, Soleilland apenas descobriu os olhos da criança. Nascidos na surpresa eles afirmavam de súbito a vida num resumo violento e magnífico. Era qualquer coisa que nunca tínhamos encontrado: a obra encontrava neles a sua grandeza, a sua verdade, certas. Ela é longa: de uma ponta à outra a impressão é acrescida de um tal vaticínio que não era possível duvidar de ter assistido à consumação dos séculos.
Tudo se passava, dissemo-lo, sob o mar. Nós não fazíamos mais do que estar sobre a jangada com os nossos contemporâneos, logo bem pouco suspeitos de romantismo. Foi então que se admirou o génio de Soleilland o bem denominado. Compreendeu-se que ele se manifestava para além mesmo da inteligência, por um daqueles dons que fazem crer em qualquer coisa mais do que as habituais possibilidades humanas.
Quando dissemos a Soleilland o que pensávamos dele, respondeu-nos com uma voz juvenil:
— Porque me dizem isso?
— Porque o pensamos.
— Acredito em vós sem dificuldade.
Sorria, maravilhado por o poderem considerar como um dos maiores directores de consciência vivos.
— Mas que fiz eu? acrescentava ele. Sobrecarregava-nos de perguntas para nos ouvir justificar o nosso juízo; e, não tardou, como fosse a nossa vez de o interrogar, que nos contasse a sua infância ao sol, entre os princípios de seu pai e os pressentimentos de sua mãe que, muito jovem, o tinha iniciado nos grandes arcanos e não duvidava de que um dia teria de se tornar um «sol».
Trabalhava com alegria, e já era senhor da sua indiferença e senhor dos seus desejos, quando grandes perturbações sacudiram as suas mãos. Arrancou da parede a gravura que a adornava e representava um homem batendo numa mulher com um violoncelo e todas as suas forças, com o título: «Violoncelo que resiste». Tanto bastou, iria confessá-lo, para que os seus estudos terminassem, para que se tornasse naquilo que escutávamos naquela tarde, um jovem célebre nas profundidades da vida, e que conhecia a glória por não ter conhecido o coração dos outros.
Aquele que cumpre este destino magnífico só pensa em si mesmo: habita um mundo sem vítimas e não está surpreendido com a sua aventura, aqui em baixo, quando se fala com ele.










andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972


22 fevereiro 2010

samuel beckett / sou esta areia que se esvai






sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948







samuel beckett
relâmpago nr.13
trad. manuel portela
10/2003






18 fevereiro 2010

sofia leal / os becos sem saída









4. Os becos sem saída
conheço-os tão bem
erguem-se na visão
parando os rios
como barragens malditas
dentro de poços
não vamos para lugar algum
nenhuma cidade
nenhum começo de frase
nos espera
agora as queimaduras do frio
sentem-se no interior
refugiado do corpo
deixou de haver ervas
para acolher os gritos
os nós das sebes
apertam as asas
resta esperar
sem nunca saber
se é possível passar










sofia leal
di versos 15
poesia e tradução
junho de 2009
edições sempre em pé
2009








16 fevereiro 2010

gil t. sousa / automatic winter






14/


quem se importa se não vens pela estrada, ou se o teu nome é muito longe como a sombra? hoje abri as mãos enquanto o sul me fugia em pássaros sob a lua. há árvores tão lentas neste Inverno e passos mudos, água nos caminhos do espelho.

e tu não estás, não estás lentamente, nem sobre os telhados vermelhos, nem ao longe como o forte querer que a neve caia e tudo apague como se apagava o mundo quando docemente um beijo nos explodia no meio da solidão.










gil t. sousa
falso lugar
2004







09 fevereiro 2010

mário-henrique leiria /claridade dada pelo tempo







I

Deixa-me sentar numa nuvem
a mais alta
e dar pontapés na Lua
que era como eu devia ter vivido
a vida toda
dar pontapés
até sentir um tal cansaço nas pernas
que elas pudessem voar
mas não é possível
que tenho tonturas e quando
olho para baixo
vejo sempre planícies muito brancas
intermináveis
povoadas por uma enorme quantidade
de sombras
dá-me um cão ou uma bola
ou qualquer coisa que eu possa olhar
dá-me os teus braços exaustivamente
longos
dá-me o sono que me pediste uma vez
e que transformaste apenas para
teu prazer
nos nossos encontros e nos nossos
dias perdidos e achados logo em
seguida
depois de terem passado
por uma ponte feita por nós dois
em qualquer sítio me serve
encontrar o teu cabelo
em qualquer lugar me bastam
os teus olhos
porque
sentado numa nuvem
na lua
ou em qualquer precipício
eu sei
que as minhas pernas
feitas pássaros
voam para ti
e as tonturas que a planície me dá
são feitas por nós
de propósito
para irritar aqueles que não sabem
subir e descer as montanhas geladas
são feitas por nós
para nunca nos esquecermos
da beleza dum corpo
cintilando fulgurantemente
para nunca nos esquecermos
do abraço que nos foi dado
por um braço desconhecido
nós sabemos
tu e eu
que depois de tudo
apenas existem os nossos corpos
rutilantes
até se perderem no
limite do olhar
dá-me um cigarro
mesmo que seja só um
já me basta
desde que seja dado por ti
mas não me leves
não me tires
as tonturas que eu teria
que eu terei
sempre que penso cá de cima
duma altura vertiginosa
onde a própria águia
nada mais é que um minúsculo
objecto perdido
onde a nuvem
mais alta de todas
se agasalha como um cão de caça
leva-me a recordação
apenas a recordação
da vida martelada
que em mim tem ficado
como herança dada há mil e
duzentos anos

deixa que eu fique
muito afastado
silencioso
e único
no alto daquela nuvem
que escolhi
ainda antes de existir











mário-henrique leiria
o surrealismo na poesia portuguesa
antologia organizada por natália correia
frenesi
2002







07 fevereiro 2010

isidore ducasse / que dizem um ao outro...




(…)

Que dizem um ao outro dois corações que se amam? Nada. Mas os nossos olhos exprimiam tudo. Digo-lhe que cinja o capote ao corpo, e ele fez-me notar que o meu cavalo se está a afastar demasiadamente do seu: cada um de nós interessa-se tanto pela vida do outro como pela sua própria; não rimos. Ele tenta sorrir-me; mas percebo que o seu rosto está marcado pelo peso das terríveis impressões nele gravadas pela meditação, constantemente debruçada sobre as esfinges que confundem, com um olhar oblíquo, as grandes angústias da inteligência dos mortais. Vendo como são inúteis as suas diligências, ele desvia os olhos, morde o seu freio terrestre com a baba da raiva, e contempla o horizonte que foge quando nos aproximamos. Tento por meu lado recordar-lhe a sua doirada juventude, que só pede entrada nos palácios dos prazeres, como uma rainha; mas ele nota que as palavras me saem dificilmente da boca emagrecida, e que também os anos da minha primavera já passaram, tristes e glaciais, como um sonho implacável que, nas mesas dos banquetes e nos leitos de cetim em que dormita a pálida sacerdotisa do amor, paga com as cintilações do ouro, passeia as amargas volúpias do desencanto, as rugas pestilentas da velhice, os sustos da solidão e os farrapos da dor.

(…)







isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto terceiro
trad. pedro tamen
fenda
1988




03 fevereiro 2010

marin sorescu / xadrez









Eu movo um dia branco,
Ele move um dia preto.
Eu avanço com um sonho,
Ele manda-o para a guerra.
Ele ataca os meus pulmões
Eu fico um ano no hospital a pensar,
Faço uma combinação brilhante
E ganho-lhe um dia preto.
Ele move uma desgraça
E ameaça-me com o cancro
(Que por agora avança em forma de cruz),
Mas ponho à sua frente um livro
E obrigo-o a recuar.
Ganho mais algumas peças,
Mas, reparem, metade da minha vida
Já está fora de jogo.
— Vou dar-te cheque e perdes o optimismo
Diz ele.
— Não faz mal, gracejo eu,
Faço roque dos sentimentos.

Atrás de mim a minha mulher, os meus filhos,
O sol, a lua e os outros mirones
Tremem por cada jogada minha.

Eu acendo um cigarro
E retomo a partida.







marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997