19 junho 2009
paul éluard / teus olhos sempre puros
Dias de lentidão, dias de chuva,
Dias de espelhos quebrados e de agulhas perdidas,
Dias de pálpebras cerradas ao horizonte dos mares
De horas sempre iguais, dias de cativeiro.
Meu espírito que brilhava ainda sobre as folhas
E as flores, meu espírito está nu como o amor,
A aurora que ele esquece fá-lo baixar a cabeça
E contemplar seu corpo obediente e vão.
No entanto, eu vi os mais belos olhos do mundo,
Deuses de prata que traziam em suas mãos safiras,
Deuses verdadeiros, pássaros na terra
E na água, eu os vi.
Suas asas são as minhas, nada existe
Salvo o seu voo que sacode a minha miséria,
O seu voo de estrelas e de luz,
Rio, planície, rocha, o seu voo,
As ondas claras das suas asas,
O meu pensamento sustentado pela vida e pela morte.
paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977
17 junho 2009
ievgueni ievtuchenko / entre a cidade sim e a cidade não
Sou um comboio rápido
que há muitos anos vai e vem
entre a cidade Sim
e a cidade Não.
Os meus nervos estão tensos
como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim.
Tudo está morto e assustado na cidade Não.
É como um embrulho feito de tristeza.
Dentro dela todas as coisas franzem a testa.
Há medo nos olhos de todos os retratos.
De manhã enceram com bílis o soalho.
Os sofás são de falsidade, as paredes de miséria.
Nunca te darão nessa cidade um bom conselho,
nem um ramo de flores, nem um simples aceno.
As máquinas de escrever batem, com cópia,
a resposta:
"Não-não-não... não-não-não... não-não-não..."
E quando enfim se apagam as luzes
os fantasmas iniciam o seu lúgubre bailado.
Nunca, ainda que rebentes, arranjarás bilhete
para fugir da negra cidade. Não.
Ah, mas a vida na cidade Sim é um canto de ave.
Não tem paredes a cidade, é como um ninho.
As estrelas dizem que as acolhas nos teus braços.
E sem vergonha seus lábios pedem teus lábios,
num brando murmúrio: "São tudo tolices..."
A flor provocante implora que a cortes,
os rebanhos oferecem o leite com seus mugidos,
ninguém tem ponta de medo.
E aonde queiras ir te levam num instante comboios,
barcos, aviões,
e com um rumor antigo vai a água murmurando:
"Sim-sim-sim... sim-sim-sim... sim-sim-sim..."
Mas às vezes é certo que aborrece
ser-me dado, afinal, tudo sem esforço
nesta cidade Sim, deslumbrante de cor.
É melhor ir e vir até ao fim da minha vida
entre a cidade Sim
e a cidade Não!
É melhor ter os nervos tensos como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim!
ievgueni ievtuchenko
in ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968
16 junho 2009
jorge luís borges / james joyce
Num dia do homem estão os dias
do tempo, desde aquele inconcebível
dia inicial do tempo, em que um terrível
Deus prefixou os dias e agonias,
até esse outro em que o ubíquo rio
do tempo terreal retorne à fonte
do Eterno, e que se apague no presente,
o ontem, o futuro, o que ora é meu.
Entre a alba e a noite se situa a história
universal. Assim, de noite vejo
a meus pés os caminhos do hebreu,
Cartago aniquilada, Inferno e Glória.
Dá-me, Senhor, a coragem e alegria
para escalar o pico deste dia.
Cambridge, 1968
jorge luís borges
nova antologia pessoal
trad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983
15 junho 2009
jorge reis-sá / vou para casa
Vou para casa. Esqueço a cidade. Tenho quarenta
e cinco anos e já esqueci as estradas de alcatrão.
Quero novamente a bouça em frente ao quarto,
algum ouriço-cacheiro a esconder o corpo
da noite que se avizinha.
jorge reis-sá
vou para casa
quasi
2008
14 junho 2009
al berto / ofício de viajante
procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias
vivi talvez em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das
ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro
todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficámos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o oficio de viajante
eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti
al berto
o medo
assírio & alvim
1997
06 junho 2009
marosa di giorgio / os papéis selvagens
6
Pus um ovo, branco, puro, brilhante; parecia uma estrela ovalada. Mas anos atrás, já tinha posto outro, celeste, e outro cor de rosa; mas este era puro, branco, brilhante e o mais bonito. Coloquei-o numa taça com a mão por cima, para que não perdesse o brilho; mimei-o com descrição, com certa indiferença fingida. As mulheres ficaram invejosas, insidiosas, criticavam-me; ostensivamente cobriam os ombros e alongaram os vestidos.
Prossegui, inflexível.
Não posso dizer o que saiu do ovo porque não sei; mas, seja o que for, ainda me segue; a sua sombra filial e terna, abate-se sobre mim.
marosa di giorgio
os papéis selvagens
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga
04 junho 2009
pere gimferrer / vigília
E nunca nunca mais poder
falar a taça, o casco, a coisa
que partiu o vidro, inútil
peso das imagens de ontem.
Nenhuma destruição de linho
poderá dizer a cor da rosa
que esmaga na pupila fechada
o triunfo da luz de um clarim.
Nunca mais isto poder dizer,
não poder dizer pelo avesso
a ternura da pele clara,
os lábios, os sulcos, o beijo, o ventre,
os corpos ao assalto; e depois
não poder nunca repetir!
pere gimferrer
quinze poetas catalães
trad. egito gonçalves
ed. limiar
1994.
03 junho 2009
stig dagerman /o que vem a ser o meu talento?
(...)
Decido encher todas as minhas páginas em branco
com as mais belas combinações de palavras
que seja capaz de engendrar.
E depois, porque quero assegurar-me
que a vida não é absurda
e não me encontro só sobre a terra,
reúno-as todas num livro
e ofereço-o ao mundo.
Este, retribui-me com a riqueza,
a glória e o silêncio.
Mas não sei que fazer com este dinheiro,
nem que prazer tirar
de contribuir para o progresso da literatura,
pois só desejo o que jamais obterei
- a certeza de que as minhas palavras
tocaram o coração do mundo.
É então que me pergunto
o que vem a ser o meu talento,
e descubro que não passa de uma forma
de me consolar da solidão.
Risível consolo - que apenas me torna
cinco vezes mais pesada
a solidão.
stig dagerman
a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
versão de paula castro e josé daniel ribeiro
fenda edições
1989
02 junho 2009
agustina bessa-luís / europeus
Possivelmente, todos nós, nas terras da Europa, nos parecemos. Temos uma sensibilidade comum perante a vida e as suas mudanças. O que mais nos agrada é inventariar as coisas do progresso para não nos iludirmos com ele. Mas, acima de tudo, amamos tudo aquilo que afinal não está na agenda da celebridade. Amamos os quatro favores da pobreza, que são: o humor, o vínculo ao quotidiano, o respeito pela morte e por tudo o que a pode atrasar ou activar. E amamos os caminhos da terra que percorremos sem descanso, mesmo quando somos obrigados a um ofício sedentário.
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008
31 maio 2009
gastão cruz / final
As palavras despedem-se dos dias
em que falar é o melhor serviço
Caem mortas e vivas da linguagem
vitimada
Mas quando regressarem
a sua fúria grande prenderá
nos humanos céus húmidos a arte
esquecida e excessiva da poesia.
gastão cruz
poemas reunidos
dom quixote
1999
25 maio 2009
pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão
O modo exemplar
da lapidação – irrepreensível
a executar
a infligir por cima
e por baixo as alvenarias
e a conformidade do sangue.
exímio e constante
nos pormenores do fogo
anterior aos incidentes
da predição e às funções
do alabastro.
pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008
22 maio 2009
josé alberto oliveira / elogio da solidão
Uma casa para estrear e descobrir
em quantas salas se acomoda a solidão.
Cozinhou o jantar e come atentamente
como todos quantos dividem a comida em silêncio:
o náufrago, o mendigo, o oleiro na lancheira.
Coze o seu barro, um jeito de partir o pão
que deve ao tempo uma lentidão coalhada.
O ruído do vizinho não o incomoda.
Nenhuma fala ou resíduo humano leveda
uma página ao acaso. Pode decidir beber mais vinho
ou inaugurar a leitura de outro livro.
Mesmo sair para beber café e mastigar o frio.
No pasto, a chuva rega a placidez do boi;
abana a cabeça, fumegam as narinas,
desenha-se num fundo de pinhal que o vento
castiga; na caruma molhada pressente-se
o rumor de um cão absorto na ilusão
do que procura. Coisas mínimas, irrisórias,
vão salvar o resto da noite de presumir felicidade.
Lá fora a cidade está cercada na convicção
das suas vidas perdoáveis, mercando
um alimento longamente dispensável
- a respiração em vitualhas e sarcasmos,
a pobreza irresignável e irresolúvel,
o cansaço de não estar só e não querer estar.
josé alberto de oliveira
por alguns dias
assírio & alvim
1992
19 maio 2009
andre breton e paul éluard / tentativa de simulação do delírio de interpretação
Quando se acabou este amor, encontrava-me como a ave no ramo. Já não servia para nada. No entanto observava que as manchas de petróleo na água me devolviam a minha imagem e apercebi-me de que a Pont-au-Change, junto da qual se encontra o mercado das aves, se curvava cada vez mais.
Foi assim que um belo dia passei para sempre para o outro lado do arco-íris à força de ver as aves furta-cores. Agora nada mais tenho a fazer na terra. Assim como as outras aves digo que já não tenho que cumprir na terra, de dar testemunho de presença alada sobre a terra. Recuso-me a repetir convosco a canção primaveril: «Morremos pelos passari-i-nhos, façam bem aos passari-i-inhos!»
A variedade de cores da chuvada fala papagaio. Choca o vento que sai do ovo com grãos nos olhos. A dupla pálpebra do Sol levanta-se e baixa-se sobre a vida. As patas das aves sobre o vidro do céu são o que eu recentemente chamava as estrelas. A própria Terra de que tão mal se explica a marcha, enquanto se vive sob a abóbada, a terra espalmada pelos seus desertos está submetida às leis da migração.
O verão de pena não acabou. Abriram-se os alçapões e ali se enfiaram searas de penugem. O tempo tem a sua muda.
O galo do campanário adorna o fumo dos tiros enquanto a viúva de peito alaranjado volta ao cemitério cujas cruzes são o ponteado minúsculo dos diamantes do Senegal e que o homem continua a imaginar-se na terra como o melro no dorso do búfalo, sobre o mar como a gaivota na crista das vagas, o melro sólido e a gaivota líquida.
Horo, de dedo na boca, é a avalanche. Eu não tinha visto estes passarinheiros que procuram homens no céu e se apanham no ninho com as pedras que atiram para o ar.
As fénix vêm trazer-me o meu alimento de vermes brilhantes e as suas asas que incessantemente se reanimam no ouro da terra são o mar e o céu que só se vêem esbraseados nos dias de tempestade, e que escondam as suas cristas de raios nas penas no momento em que adormecem sobre o único pé do ar.
Os moinhos dos relâmpagos quebraram-lhes a concha e escapam em voo rápido, a aragem come as dunas, o horizonte tenta evitar as nuvens.
Reconhecereis que os vossos leitos-gaiolas, e as vossas grades torcidas, e os vossos sobrados picados, e os vossos e as vossas moscadas e os vossos espantalhos à última moda, e os vossos fios telegráficos, e as vossas viagens em compartimentos de pombo, e o soco de cordeiros das vossas estátuas de rapina, e as vossas corridas de sebes feitas ao crepúsculo de pintarroxos que levantam voo, e as horas, e os minutos, e os segundos nas vossas cabeças de pica-paus, e as vossas gloriosas conquistas, contudo, as vossas gloriosas conquistas de cucos! Todas armadilhas de graça nunca ali estiveram senão para me fazerem passar as barreiras do perigo, as barreiras que separam o medo da coragem. Não contem mais comigo para vos fazer esquecer que os vossos fantasmas têm a forma das aves-do-paraíso.
No começo era o canto. Toda a gente às janelas! De uma margem à outra já não se vê senão Leda. As minhas asas redemoinhantes são as portas pelas quais ela entra no pescoço do cisne, na grande praça deserta que é o coração da ave da noite.
andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972
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