15 setembro 2008

casimiro de brito / três fragmentos do livro das quedas





)(

Escrevo pássaros e nada sei
do corpo deles nem das suas
inclinações – nada sei do amor
tão pleno de falsificações. Se canto,
se escrevo assim às escuras da noite
do meu lençol
é porque não sei incorporar
os ruídos, as veredas da casa
nem olhar para o lado
e ver por dentro
o rosto da amada, o sono
da filha – os ritmos da morte
que dão e só eles são
sabor
à passagem do tempo.


)(

Como é triste a carne quando se percorreram
todos os caminhos, quando se leram
todos os poemas_______tenho os olhos queimados
e não os li nem percorri mas,
pobre de mim, é como se o tivesse
feito. Pois a carne vai triste
e cai. Se morrer é isto, esta maneira
de pouco a pouco ir caindo no ar,
não tenho medo, é triste mas não tenho medo nem
dor nem nada que me possa
perturbar. Escrevo
um livro vazio
e já não sei se lá fora existe
outro lugar. Os olhos da minha amiga
vão comigo de regresso à fonte
que não cessa de cantar.






Petrarca


)(

Apodreço devagar e o meu lixo
em húmus resvalando
alimenta silencioso os animais
da terra, o basalto, as framboesas, os
lagartos que se elevam para o sol até caírem
eles também de corpo
em corpo como venho caindo
nas nuvens do chão.













casimiro de brito
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
trianual, nº 1 – série II
junho 2002
coimbra







mário cesariny / poema podendo servir de posfácio







ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado


ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso



há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar










mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981





12 setembro 2008

vasant abaji dahake / tarde






Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.






vasant abaji dahake
(índia, n. 1942)
tradução de pedro amaral
em quartzo, feldspato & mica





10 setembro 2008

gil t. sousa / falso lugar




1/


solta-te
como se ainda fosses
um peixe a fugir da morte
e houvesse
por entre os dedos da noite
uma escada
de sereno veneno
por onde pudesses
mentir ao medo
e acordar numa hora
possível de dizer sim
um luminoso sim
e as marés
te olhassem nervosas
como se a palavra
ou o segundo
que tudo pode secar
te roesse a mão nua
e esse fosse
o instante da dor
ou o momento
de partir


deixa
que te durmam nos lábios
os velhos tambores
que te queimem os pés
as nuvens gastas
e que um outro lugar
rompa a areia do tempo
e rasgue o coração
como o céu do deserto
um lugar
que fosse como o ventre
dos sinos
e soasse almas sem lama
olhos sem raiva
que poisassem no mundo
sem o cegar









gil t. sousa
falso lugar
2004




09 setembro 2008

andre breton e paul éluard / as possessões







Os autores têm o escrúpulo de garantir a lealdade absoluta da iniciativa que para eles consiste em submeter, tanto aos especialistas como aos profanos, as cinco seguintes tentativas, nas quais a menor possibilidade de empréstimo dos textos clínicos ou de imitação mais ou menos hábil desses mesmos textos bastaria evidentemente para fazer perder toda a razão de ser, para as privar de toda a eficácia.


Longe de sacrificar por gosto ao pitoresco ao adoptar sucessivamente, com confiança, as várias linguagens usadas, com ou sem razão, pelas mais inadequadas ao seu objecto, sem mesmo se satisfazerem em conseguir um real efeito de curiosidade, esperam, por um lado, provar que o espírito, erigido poeticamente no homem normal, é capaz de reproduzir nos seus grandes traços as manifestações verbais mais paradoxais, mais excêntricas, que está no poder deste espírito submeter-se pela sua vontade às principais ideias delirantes sem que nele exista uma perturbação durável, sem que isso em nada seja susceptível de comprometer a sua faculdade de equilíbrio. De resto, não se trata de maneira alguma de conjecturar acerca da perfeita verosimilhança destes falsos estados mentais, sendo o essencial fazer pensar que com alguma preparação se poderiam tornar perfeitamente verosímeis. Que se faria então das categorias orgulhosas nas quais se divertem a fazer entrar os homens que tiveram as suas contas a ajustar com a razão humana, esta mesmo razão que quotidianamente nos nega o direito de nos exprimirmos pelos meios que nos são instintivos. Se posso sucessivamente fazer falar pela minha própria boca o ser mais rico e o ser mais pobre do mundo, o cego e o alucinado, o ser mais receoso e o ser mais ameaçador, como iria eu admitir que esta voz, que, em definitivo, é unicamente a minha, me venha de pontos mesmo provisoriamente condenados, de pontos onde, com o comum dos mortais, tenho de desesperar de ter acesso.

Não nos ofendemos por permitir por outro lado, a confrontação destas cerca de trinta páginas, na elaboração das quais presidiram certas intenções confusíonais, com os outras páginas deste livro e as páginas doutros livros definidos como surrealistas. Tendo o conceito de simulação em medicina mental o seu curso quase só em tempo de guerra e cedendo o lugar, de outra forma, ao de «sobre-simulação» esperamos impacientemente saber em que base mórbida os juízes competentes na matéria estarão de acordo em dizer que operámos.

Enfim declaramos ter-nos agradado muito especialmente, este novo exercício do nosso pensamento. Por ele, em nós, ganhámos consciência de recursos até então insuspeitados. Sem prejuízo das conquistas que anuncia em relação à mais elevada liberdade, consideramo-lo, dentro do ponto de vista da poética moderna, como um notável critério. Basta dizer que proporíamos como de toda a vantagem a sua generalização e que, a nossos olhos, a «tentativa de simulação» de doenças que encerra substituiria vantajosamente a balada, o soneto, a epopeia, o poema sem pés nem cabeça e outros géneros caducos.










andre breton e paul éluarda imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972


07 setembro 2008

john ashbery / eco tardio







sós com a nossa loucura e a flor preferida,
vemos que não há mais nada sobre que escrever.
ou antes, é preciso escrever sobre as mesmas coisas de sempre,
do mesmo modo, repetindo vezes sem conta as mesmas coisas,
para que o amor continue e a pouco e pouco vá mudando.

colmeias e formigas têm de ser eternamente reexaminadas
e a cor do dia aplicada
centenas de vezes e variada do verão para o inverno
para que o seu ritmo desça ao de uma autêntica
sarabanda e ela aí se feche sobre si mesma, viva e em paz.

só nessa altura a crónica desatenção
das nossas vidas nos poderá envolver, conciliadora
e com um olho posto naquelas longas opulentas sombras amareladas
que falam tão fundo para o nosso mal preparado conhecimento
de nós próprios, máquinas falantes dos nossos dias.








john ashbery
uma onda e outros poemas
tradução colectiva / joão barrento
poetas em mateus
quetzal editores
1992.







03 setembro 2008

konstandinos kavafis / deus abandona antónio

Quando bruscamente, nas trevas da noite,
Ouvires passar o tropel invisível das vozes puras,
O coro celeste das sublimes harmonias,
Abandonado definitivamente pela fortuna,
Desfeitas em pó as últimas esperanças,
Esvaída em fumo uma vida de desejo.
Ah! não sucumbas lastimando um passado
Que te traiu, mas como um homem
Que se prepara há muito tempo,
Despede-te corajosa mente
De Alexandria que te abandona.
Não te deixes iludir e não digas
Que foi sonho ou um logro dos teus sentidos,
Deixa as súplicas e os lamentos para os poltrões,
Abandona vãs esperanças.
E como um homem que se prepara há muito tempo,
Resignado, altivo, como te compete
E a uma cidade como esta,
Abre a janela e olha para a rua
E bebe a taça inteira da amargura
E a derradeira embriaguez da multidão mística
E despede-te de Alexandria que te abandona.







konstandinos kavafis
justine, lawrence durrell
tradução daniel gonçalves
ulisseia
2007






29 agosto 2008

luís nunes / guardanapo







éramos nós
lagos desertos
de cabelos longos
saltando montanhas
quase nascemos
entre cores ruidosas
e paisagens de calendários
de oficinas de carros
em segunda mão
mas deixamos os corpos lá fora
quando nos deitamos na cama
de folhas verdes

tardes vestidas de perfume
que tínhamos desvendado
num olhar
mesmo que duas
crianças no mar
perdidos em castelos
sem pressa de fugir
ao encontro das marés
desafiávamos o sol
e já na vertigem
descíamos ruas
saltando muros
sempre pintados de branco
e nunca me falaste nele

digo isto agora que acordei
para a visão desse guardanapo
que tinha tido o cuidado
de arrumar no fundo de uma gaveta
onde se guardam as coisas
que não devem ser vistas
nem em dias de arrumações








luís nunes
controversosentidos






25 agosto 2008

álvaro de campos / o florir do encontro casual







O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos

O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida…

O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída…


As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem…


Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados…
Caminho sem fim…








fernando pessoapoesias de álvaro de campos
edições ática
1980




19 agosto 2008

kiki dimoulá / como quem escolhe







É sexta-feira hoje vou à praça do mercado
dar uma volta nos jardins decapitados
a ver o perfume dos orégãos
cativos nos molhos.

Vou ao meidia quando caem as cotações
encontra-se fácil o verde
entre feijões abóboras malvas e lírios.
Ouço ali com que coragem falam as árvores
com a língua cortada dos frutos
oradoras empilhadas as laranjas e as maçãs
e alguma convalescença começa a ganhar cor
nas faces amareladas
de uma mudez interior.

Raramente compro. É que nos dizem escolhe.
Isso é facilidade ou problema? Escolhemos e depois
como levantar o peso insustentável
que tem a nossa escolha?
Ao passo que aquele aconteceu, que pluma! No princípio.
É que depois as consequências põem-nos de rastos.
Também insustentáveis. No fundo é como quem escolhe.

Quando muito compro um pouco de terra. Não para flores.
Para me ir habituando.
Nisto não há escolha. Nisto, é de olhos fechados.






kiki dimoulá
grécia (n. 1931)
trad . de manuel resende






15 agosto 2008

henri michaux / ideogramas na china


(…)

De uma certa maneira semelhante à água, ao que ela tem de mais forte e de mais leve, de menos perceptível, como o são as rugas da sua ondulação, que sempre foram um tema de estudo na China.

Imagem do desprendimento: a água que não se apega a nada, sempre pronta a instantaneamente voltar a partir, água que, mesmo antes da chegada do budismo, falava ao coração do chinês. Água, vazia de forma.






Yi Tin, Yi Yiang, tche wei Tao
Um tempo Yin, um tempo Yang
Eis a via, eis o Tao.







Via para a escrita.


Ser calígrafo, como se é paisagista. Melhor. Na China, é o calígrafo que é o sal da terra.

(…)







henri michaux
ideogramas na china
trad. ernesto sampaio
cotovia / fundação oriente
1999