05 maio 2008

ficarão para sempre abertas as minhas salas negras







Ficarão para sempre abertas as minhas
salas negras.

Amarrado à noite,
eu canto com um lírio negro sobre a boca.

Com a lepra na boca,
com a lepra nas mãos.

Este mamífero tem sal à volta,
este mineral transpira, a primavera precipita-se.

Com a lepra no coração.

Mais de repente,
só chegar à janela e ver uma paisagem tremendo
de medo.

E uma vida mais lenta
só com uma estrela às costas,
uma tonelada de luz inquieta,
uma estrela respirando como um carneiro
vivo.

Igual a esta espécie de festa dolorosa,
apenas um ramo de cabelos violentos
e o seu odor a pimenta,
no lado escuro
como se canta que as salas vão levantar
o seu voo.

Ficarão para sempre abertas estas mãos exageradas
em dez dedos com sono,
como uma rosa acima do pénis.

Ao cimo do caule de sangue,
essa flor confusa.

Um equilíbrio igual,
só a estrela ao cimo do êxtase.

Só alguma coisa parada no cimo de uma visão
tremente.

A primavera, que eu saiba,
tem o sal como cor imóvel,

Por um lado entra a noite,
assim de súbito negra.

De uma ponta à outra enche-se o espaço
aplainando tábuas.

Rasga-se seda para aprender o ritmo.

Abraço um corpo com as camélias
a arder.

Abertas para sempre as negras partes
de mais uma estação.

Semelhante a isto
as mulheres andam pelas galerias transparentes,
e o palácio queima a noite onde estou
cantando.

É possível ainda cortar ao meio o ofício de ver —
e num lado há espelhos bêbedos,
no outro um cardume ilegível de sons
obscuros.

Sabe-se então pelo silêncio em volta,
sabe-se em volta que são lírios
sonoros.

Passando
as mulheres colhem estes sons irrompentes,
e as mãos ficam negras junto à beleza
insensata.

Elas sorriem depois com um talento
terrível.

Levamos às costas um carneiro palpitante.

Pesa tanto uma estrela
quando se acorda nas salas negras abertas de par em par,
e as mãos agarram um ramo de cabelos dolorosos,
e sobre a boca um lírio em brasa,
branco, branco,
que não nos deixa respirar.

A lepra na boca,
que não nos deixa respirar.


Um ramo de lepra contra o corpo,
como isto então só o movimento de águas obscuras
pelos canais de um canto,
como um palácio de salas negras abertas
para sempre.

Este animal respira como um espelho de pé,
no ar,
no ar.











herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968






28 abril 2008

os nós da escrita





Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.








luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




corridor in the asylum








vincent van gogh
(dutch, zundert 1853 - 1890 auvers-sur-oise)
dutch
corridor in the asylum, september 1889; 19th century
bequest of abby aldrich rockefeller, 1948 (48.190.2)
the metropolitan museum of art


24 abril 2008

noite de abril






hoje, noite de abril, sem lua,
a minha rua
é outra rua.


talvez por ser mais que nenhuma escura
e bailar o vento leste
a noite de hoje veste
as coisas conhecidas de aventura.


uma rua nova destruiu a rua do costume,
como se sempre nela houvesse este perfume
de vento leste e primavera,
a sombra dos muros espera
alguém que ela conhece.


e às vezes, o silêncio estremece
como se fosse a hora de passar alguém
que só hoje não vem.










sophia de mello b. andresen
obra poética I
caminho
1999


21 abril 2008

nesse dia






*

nesse dia ele parecia-se tanto consigo que se confundia,
tal como o dia se confundia consigo mesmo
e a confusão a ambos confundia


*






per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004





17 abril 2008

a função do geógrafo





1.


Se quiseres que eu me perca
buscarei outra ilha.
Esperarei a sombra diante dos olhos,
o milhafre na ravina de crisântemos.
Ao longe, correndo para a primeira luz do dia,
estarei à tua espera,
acenando com a mão esquerda,
avançando sobre o mar.
Não te esqueças,
aprendi um dia como deus nos traz um sono
leve que nos cega.








rui coias
a função do geógrafo
quasi edições
2000





16 abril 2008

memória







e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

num lugar mais seguro
que uma fotografia
ou um poema








gil t. sousa
água-forte
2007




10 abril 2008

há sede nos cantos da boca






há sede nos cantos da boca encerrada para obras
películas brancas brotam dos caminhos para o beijo
regos de águas paradas enxameiam as planuras
das aguarelas encaminhadas no sentido inverso
da nostalgia

a menina deixa a saia de tule branco
para usar uns calções de pele genuína
esganado que foi o animal da sua alma

saem-lhe perfumados chifres da cabeça
entontecida
os problemas respiratórios agravam-se
com a boca fechada para obras
os beijos perdem o norte
e enrolam-se nas palhas dos trigos ceifados
nas planuras aguareladas
repletas de nostalgias remanescentes







m.f.s.






09 abril 2008

carta da infância





Amigo Luar:


Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te ouço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.







carlos oliveira
trabalho poético
sá da costa
1998





07 abril 2008

tu anseias?!






- Alguma vez anseias?
- Se anseio?!... Se eu anseio?
- Eu anseio.
- Tu anseias?!
- Anseio, pois!... Muitas vezes sento-me e anseio!... Já ansiaste?
- Recentemente, não. Suspirei. Passo o tempo a suspirar. Estou sempre a suspirar!... Mas não ansiei.
- Olha para ti.
- Kramer, não comeces.
- Estás a desperdiçar a tua vida.
- Não estou nada. Aquilo a que chamas desperdiçar eu chamo viver. Estou a viver a minha vida.
- Ah, estás?! Tudo bem. Diz lá!... Tens emprego?
- Não.
- Tens dinheiro?
- Não.
- Tens uma mulher?
- Não.
- Tens perspectivas?
- Não!
- Tens alguma coisa no horizonte?
- Não.
- És minimamente activo?
- Não!
- Tens alguma razão imaginável para te levantares de manhã?
- Gosto de comprar o Daily News.
- George, está na altura de crescermos… e de nos tornarmos homens. Deixarmos de ser catraios.
- Porquê?
- Vou para a Califórnia. Estou com o bichinho.
- Parece que também estou a sentir qualquer coisa.
- Com o bichinho de actor. Desde que entrei no filme do Woody Allen.
- “Estes pretzles dão-me sede” ?! Foi uma deixa. Foste despedido.
- Eu sei, eu sei, mas, caramba nunca me senti tão vivo. Vens comigo?
- Não, não vou.
- Certo, como queiras, mas isto que fique aqui entre nós. Agora, somos irmãos de chave.
- Não vais mesmo para a Califórnia, pois não?
- Aqui… na cabeça, já fui.






seinfeld
diálogo entre kramer e george costanza
episódio 23
jerry seinfeld, carry charles
trad. Isabel monteiro, ideias & letras
sic radical


31 março 2008

andre breton e paul éluard / o nascimento



O cálculo das probabilidades confunde-se com a criança, negro como a mecha de uma bomba posta na passagem de um soberano que é o homem por um anarquista individualista da pior espécie que é a mulher. O nascimento, tirando isto, não é mais que uma rotunda. Uma tal auréola aplicada ao filho do homem e da mulher não corre o risco de que possam parecer menos insípidos os cueiros de rato que lhe prepararam e o berço como um esgoto onde o despejam com a água suja e o sal da tolice que permitiu esperar a sua vida como a de uma fénix obediente.
O vizinho afirma que ele é feito à imagem do fogo de lenha, a vizinha que não o podem comparar melhor que ao aspecto dos aeroplanos e a fada degenerada que fixou domicílio na cave inclina-se a dar-lhe como antepassado o gipso em ferro de lança que tem um pé na ociosidade e o outro no trabalho.
Para todos, ele traz em si as suas promessas. Cada um quer aprender a sua língua filial e interpreta o seu silêncio. Diz-se em toda a parte que com a sua presença favorece um mundo que já não podia passar sem ele. É o agulheiro de gatinhas, aquele que provoca com certeza o descarrilamento com panorama de ponte, celebrado pelo Petit Journal Illustrè. Traz em medalhão o salvamento, «Papá» é um disco em forma de lua, «Mamã» é côncava agora como a baixela.
Para suspender o efeito de uma presença tão obstinada como a do vaso de latão sobre a chaminé de salitre, um raio de mel veio esconder-se no quarto. Todos os cumprimentos do uso foram inúteis. Não há ninguém aqui. Nunca aqui existiu alguém.






andre breton e paul éluard
a imaculada concepçãotradução franco de sousa
estúdios cor
1972



26 março 2008

esta folha que eu abro não é para ti






Esta folha que eu abro não é
para ti. Veio dos imaginados desertos
da memória, trouxe-a a esta claridade
como quem a não queria aguar.
Folhas de deserto: o acaso das palavras
feriu-a nas gaiolas urbanas.







helder moura pereira
sião
antologia
org. al berto, paulo da costa domingos e rui baião
frenesi
1987






25 março 2008

o meu tempo (1960-1993)






Agora as pessoas
não sabem morrer
estar doentes
sofrer
ter prazer
tocar-se
dantes também não
(Ó mais nu
e branco dos homens)









adília lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004