21 fevereiro 2008
café da manhã
pôs café
na chávena
pôs leite
na chávena com café
pôs açúcar
no café com leite
e com a colher
mexeu
tomou o café com leite
e pôs a chávena no pires
sem me dar uma palavra
acendeu
um cigarro
fez rodinhas
com o fumo
pôs a cinza
no cinzeiro
sem me dar uma palavra
sem olhar para mim
levantou-se
pôs
o chapéu na cabeça
vestiu
o impermeável
porque chovia
e saiu
debaixo de chuva
sem uma palavra
sem me olhar
quanto a mim, meti
a cabeça entre as mãos
e chorei.
jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003
17 fevereiro 2008
os nomes inúteis
Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.
maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004
estranho dia
Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.
Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.
Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar.
alfonso barrocal
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000
13 fevereiro 2008
ruínas
corre
pelas ruínas de si
o corpo
ao relento da vida
dentro do corpo
lugares desconhecidos
estações ermas
onde deixou recados
e inventou
imóveis paisagens
que nenhum tempo
pode esgotar
escreveu memórias
enviou cartas
que ainda hoje
cruzam altíssimos céus
singulares oceanos
remotas geografias
sem que um nome
se levante
uma saudade
se acenda
ou uma resposta
se construa
mas corre
corre ainda
pelas ruínas
de si
o olhar
senhor dos horizontes
romeiro
das santas cidades
domador
das bestas ferozes
que nos ombros severos
sustentam a cúpula
dos sonhos
letais
e canta
melancólicos versos
que nas ruínas de si
ressoam
como o recitar das baleias
nos telhados febris
de uma casa
que guardasse a loucura
gil t. sousa
poemas
2001
11 fevereiro 2008
os sinónimos
Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.
francisco brines
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987
08 fevereiro 2008
restaurante
Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória
Só à porta da rua
o tempo reaparece.
yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998
07 fevereiro 2008
a imensidão íntima
O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar. (Rilke)
O espaço sempre me fez silencioso. (Jules Valles, l´enfant)
I
Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.
Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).
Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.
Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.
Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.
A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.
E, já que haurimos nos poetas todo o nosso ensinamento filosófico, leiamos Pierre Albert-Birot, que diz em três versos (2):
E eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.
(…)
(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle, l´escalier
(2) Pierre Albert-Birot, Les amusements naturels
gaston bachelard
a poética do espaço
trad. antónio de paula danesi
livraria martins fontes
s. paulo
1989
homossem
A noite vinha com umas mãos curvas de milagre
eram mãos tuas eram mãos minhas curvas de milagre
tu eras um holofote azul de dirigires alucinações
de prazer cor-de-rosa
tu eras uma flutuação constante de penumbra e surpresa
era um corpo de admiração e sublime
eras garbo da tua idade já nocturna para o pecado
tinhas uma mão que fazia regressar o espaço
por onde puxavas o amor
eras um corpo suave de admiração e sublime
um requinte de trazeres intenções pelo fato
tinhas um casaco especial de convidar uma visita
uma surpresa emancipava-te a vontade do queixo
não esqueço uma tua boca de construção de virtudes
porque beijavas onde o símbolo requeria
havia-te casa pelo convite da mão
eu sabia que a tua palma tinha um rio que fazia estalar
o medo
era a sedução de tu meditares longamente sobre quem te fosse
mais próximo
e nascia um horizonte duma maneira do teu olhar
Fazias o espaço ser-te magia de convite
convidavas uma semente de ir lá
porque não se falava no que se ia saber
nós tínhamos um conforto de destino próximo e azul
que era a manhã de tu fazeres desaparecer o medo do rio
Não íamos quebrar fauna pelos bosques
íamos sair ao concreto do tempo
por onde tu erigisses catedrais de
inauguração sentimental
Era um amor que tinhas
era inauguração dum desejo
o medo do rio que tinha uma manhã por dentro
era tudo tão diferente e admirado de nós
a maneira das coisas nos olharem por cima do dia
como o que fosse diferente de imaginar
Nada acontecia
Tu eras um holofote azul de construíres
alucinações de meio-dia cor-de-rosa.
antónio gancho
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995
28 janeiro 2008
errar nos tempos
(46)
Nunca nos detemos no tempo presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence, e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar.
Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.
blaise pascal
pensamentos escolhidos
trad. de esther de lemos
editorial verbo
1972
27 janeiro 2008
kopenhagen script
-1-
as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha
que mão amputar
se assim nos pedem o frio?
-2-
são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente
nas suas estações de
desespero
-3-
pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra
a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler
-4-
às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado
ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros
gil t. sousa
água-forte
2007
24 janeiro 2008
abandono
A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? Eu sei
que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo
sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado
ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.
Não haver palavras és tu a desaparecer.
bernardo pinto de almeida
hotel spleen
quetzal
2003