21 fevereiro 2008

a grande lousa





Eduardo Luiz (1932-1988)
a grande lousa, 1966
o/t, 97x130cm
col. MC



17 fevereiro 2008

os nomes inúteis






Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca


foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.











maria do rosário pedreira
nenhum nome depois
gótica
2004





estranho dia






Às vezes paro à porta
com o olhar perdido e habituado ao silêncio,
há mais desertos ainda, dias
e morte noutros olhos.
Com a garganta habituada à sede,
com os pés às feridas,
saio para a rua
e já não há umbrais.

Ando um dia, passo outro,
acabo uma semana de vidros partidos
e tosse mais velha.
Hoje parece que sempre
choveu sobre mim,
e não me importa
se a chuva já não se parece ao esquecimento
e apenas deixa charcos, paredes mais sujas
e fuligem e tristeza nos olhos de rímel,
ainda tenho sede
e não me importa
voltar às coisas más e aos velhos tugúrios
à procura de algo que não encontro nem recordo,
que costuma principiar por um encontro,
talvez por outra palavra
e corre o perigo de crispar-se
até à forma da folha da faca.

Às vezes tudo é tão estranho
que não basta continuar a andar.







alfonso barrocal
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








13 fevereiro 2008

ruínas






corre
pelas ruínas de si

o corpo
ao relento da vida

dentro do corpo
lugares desconhecidos

estações ermas
onde deixou recados

e inventou
imóveis paisagens

que nenhum tempo
pode esgotar

escreveu memórias
enviou cartas

que ainda hoje
cruzam altíssimos céus

singulares oceanos
remotas geografias

sem que um nome
se levante

uma saudade
se acenda

ou uma resposta
se construa

mas corre
corre ainda

pelas ruínas
de si

o olhar
senhor dos horizontes

romeiro
das santas cidades

domador
das bestas ferozes

que nos ombros severos
sustentam a cúpula

dos sonhos
letais


e canta
melancólicos versos

que nas ruínas de si
ressoam

como o recitar das baleias
nos telhados febris

de uma casa
que guardasse a loucura









gil t. sousa
poemas
2001






11 fevereiro 2008

os sinónimos






Para lá da luz está a sombra,
e por trás da sombra não haverá luz
nem sombra. Nem silêncio, nem sons.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não lhe chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.









francisco brines
ensaio de uma despedida
(antologia 1960-1986)
trad. josé bento
assírio & alvim
1987





08 fevereiro 2008

restaurante






Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória


Só à porta da rua
o tempo reaparece.








yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998





07 fevereiro 2008

a imensidão íntima



O mundo é grande, mas em nós
ele é profundo como o mar. (Rilke)


O espaço sempre me fez silencioso. (Jules Valles, l´enfant)





I

Poderíamos dizer que a imensidão é uma categoria filosófica do devaneio. Sem dúvida, o devaneio alimenta-se de espectáculos variados; mas por uma espécie de inclinação inerente, ele contempla a grandeza. E a contemplação da grandeza determina uma atitude tão especial, um estado de alma tão particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de um mundo que traz o signo do infinito.

Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da imensidão? A imaginação já não será activa desde a primeira contemplação? De facto, o devaneio é um estado inteiramente constituído desde o instante inicial. Não o vemos começar; e no entanto ele começa sempre da mesma maneira. Ele foge do objecto próximo e imediatamente está longe, além, no espaço do além (1).

Quando esse além é natural, quando não se aloja nas casas do passado, ele é imenso. E o devaneio é, poderíamos dizer, contemplação primordial.

Se pudéssemos analisar as impressões de imensidão, as imagens da imensidão ou o que a imensidade traz a uma imagem, entraríamos imediatamente numa região da mais pura fenomenologia – uma fenomenologia sem fenómenos ou, para falar menos paradoxalmente, uma fenomenologia que não precisa esperar que os fenómenos da imaginação se constituam e se estabilizem em imagens completas para conhecer o fluxo de produção das imagens. Noutras palavras, como o imenso não é um objecto, uma fenomenologia do imenso remeter-nos-ia sem rodeios à nossa consciência imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão construiríamos em nós o ser puro da imaginação pura. Ficaria então claro que as obras de arte são os subprodutos desse existencialismo de ser imaginante. Nesse caminho do devaneio de imensidão, o verdadeiro produto é a consciência dessa ampliação. Sentimo-nos promovidos à dignidade do ser que admira.

Por conseguinte nessa meditação não somos “lançados no mundo”, já que de certa forma abrimos o mundo numa superação do mundo visto tal como ele é, tal como ele era antes que sonhássemos. Mesmo se estivermos conscientes do nosso ser mirrado – pela própria acção de uma dialéctica brutal - , tomamos consciência da grandeza. Somos então entregues a uma actividade natural do nosso ser imensificante.

A imensidão está em nós. Está ligada a uma espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que retorna na solidão. Quando estamos imóveis, estamos algures; sonhamos num mundo imenso. A imensidão é o movimento do homem imóvel. A imensidão é uma das características dinâmicas do devaneio tranquilo.

E, já que haurimos nos poetas todo o nosso ensinamento filosófico, leiamos Pierre Albert-Birot, que diz em três versos (2):


E eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo,
Homem ilimitado.

(…)






(1) “A distância arrasta-me no seu exílio móvel”, Supervielle, l´escalier
(2) Pierre Albert-Birot, Les amusements naturels










gaston bachelard
a poética do espaço
trad. antónio de paula danesi
livraria martins fontes
s. paulo
1989




homossem









A noite vinha com umas mãos curvas de milagre
eram mãos tuas eram mãos minhas curvas de milagre
tu eras um holofote azul de dirigires alucinações
de prazer cor-de-rosa
tu eras uma flutuação constante de penumbra e surpresa
era um corpo de admiração e sublime
eras garbo da tua idade já nocturna para o pecado
tinhas uma mão que fazia regressar o espaço
por onde puxavas o amor
eras um corpo suave de admiração e sublime
um requinte de trazeres intenções pelo fato
tinhas um casaco especial de convidar uma visita
uma surpresa emancipava-te a vontade do queixo
não esqueço uma tua boca de construção de virtudes
porque beijavas onde o símbolo requeria
havia-te casa pelo convite da mão
eu sabia que a tua palma tinha um rio que fazia estalar
o medo
era a sedução de tu meditares longamente sobre quem te fosse
mais próximo
e nascia um horizonte duma maneira do teu olhar
Fazias o espaço ser-te magia de convite
convidavas uma semente de ir lá
porque não se falava no que se ia saber
nós tínhamos um conforto de destino próximo e azul
que era a manhã de tu fazeres desaparecer o medo do rio
Não íamos quebrar fauna pelos bosques
íamos sair ao concreto do tempo
por onde tu erigisses catedrais de
inauguração sentimental
Era um amor que tinhas
era inauguração dum desejo
o medo do rio que tinha uma manhã por dentro
era tudo tão diferente e admirado de nós
a maneira das coisas nos olharem por cima do dia
como o que fosse diferente de imaginar
Nada acontecia
Tu eras um holofote azul de construíres
alucinações de meio-dia cor-de-rosa.














antónio gancho
o ar da manhã
assírio & Alvim
1995





28 janeiro 2008

errar nos tempos





(46)

Nunca nos detemos no tempo presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence, e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar.

Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.







blaise pascal
pensamentos escolhidos
trad. de esther de lemos
editorial verbo
1972





27 janeiro 2008

kopenhagen script







-1-

as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?




-2-

são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero



-3-

pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler


-4-

às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado



ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros











gil t. sousa
água-forte
2007







birds









gil t. sousa
birds 2007







24 janeiro 2008

abandono






A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.









bernardo pinto de almeida
hotel spleen
quetzal
2003






21 janeiro 2008

os livros de pascale










(…)

O deserto tem muitas coisas belas, mas nada dá mais paz aos homens que o atravessam do que estar deitado de noite por baixo do seu céu. O ar seco perdeu até os mínimos vapores do dia e as estrelas tombam em cascata de um baixíssimo tecto colorido de um violeta translúcido como água; dir-se-ia que nos chovem em cima em torrente. Os perfumes do deserto desaparecem com o frio, e não resiste em redor um rumor mais consistente do que a respiração do nosso vizinho deitado um pouco adiante. De dia caminhámos, ao entardecer virámo-nos a oriente para o nosso deus e alimentámo-nos de poucas coisas gordas e boas. Bebemos a água pura e doce tirada lá de baixo, no fundo do coração do Sara, e agora só nos resta arrumar-nos no centro do céu e ficarmos em paz com todas as coisas. É o que todos fazem.

Eu procurava todas as noites colocar-me um pouco afastado dos outros, para me treinar a vencer o medo dos escorpiões que se deitam debaixo das pedras da superfície — nunca me curei deste medo — e, enfiado no meu saco-cama, olhava para cima e inevitavelmente vinham-me à mente três ou quatro versos daquelas poesias que tinha lido na praia:

Chega lá o poeta
e depois retorna à luz […]
[…] estou longe com a minha melancolia
atrás de todas as outras vidas perdidas

Estes versos que me vinham mastigados à boca eram quase como urna oração; não poderei defini-los de outro modo. Eu não tinha o meu deus como os outros. Não podia no meio das dunas arranjar um lugarzinho, pôr o tapete no chão e aliviar-me um pouco do estupor do deserto com uma confortante canção de embalar a murmurar ao Sol que se põe. Chegava à noite desarmado e sozinho. E aquele — ainda me custa a pronunciar o seu nome — apoderava-se então da noite desértica e falava por mim a seu respeito. Dizia que no meio dela, confundido com todo aquele reluzir de estrelas em silêncio, eu descobria em qualquer parte de mim uma dor, um pequeno espasmo misterioso que me fazia comover por algo que eu não sabia muito bem o que era. E, ao deixar-me cair adormecido, parecia-me ver as estrelas tombarem sobre mim sem peso e sem queimarem.

Acordava sempre com a sensação de que um escorpião estava a farejar por entre as pregas do saco-cama. Mas era a primeira luz da manhã que começava a aquecer-me. Bebia leite de camela e depois chá fortíssimo e muito açucarado, comia biscoito cozido na pedra e tornava a pôr-me a caminho com o meu jumento. Tchonc, tchonc, tchonc, batiam as minhas coxas na barriga mole da burrinha. E com aquela melodia poderia ir até ao infinito, com todos os meus sentidos tranquilamente à espera do que havia de trazer o dia.

No deserto há muitas coisas para ver, ouvir e cheirar. E cada uma tem um grande espaço em seu redor. Um arbusto enfezado de murta lança um perfume intensíssimo, mas é o único arbusto no raio de quilómetros e é o único odor que pode notar-se naquele momento. Com o olhar podem abraçar-se diversas horas de caminho e muitas montanhas e depressões e pistas que se perdem além do horizonte, mas nada está amontoado ao acaso, nada se sobrepõe e colide, como acontece numa cidade. Assim, todos os ruídos são distintos e livres de se propagarem até ao infinito. Tudo isto é muito repousante, tudo isto dá um sentimento de grande ordem e limpeza que torna fácil o caminho e nos deixa livres para pensar em sossego. Assim, o tempo torna -se uma coisa muito discutível e uma marcha de dez dias pode parecer um curto e agradável passeio. Desde que não queiramos alterar as regras. Fazem-no os que do deserto saem maltratados e perturbados ou os que não saem vivos; parece quase impossível, mas ainda há quem tente fazer as coisas à sua maneira. Eu viajava desviando-me sempre que me apetecia ver qualquer coisa ou perseguir um ruído. A corrida de um coelho, um grupo maravilhoso de rochas violetas, uma depressão escavada por fendas estranhas e complicadas, uma pista mal traçada que levasse à invisível nascente de água protegida por um beduíno e por uma palmeira anã. Inépcias deste género.

Nas horas mais quentes procurava urna sombra entre as rochas e fazia o chá com os pauzinhos que havia apanhado ao longo do caminho; o jumento tinha a sua aveia e para ele era sempre domingo. Eu pensava em muitas coisas, creio que sem cessar, mas de um modo tão suave e tão leve que nem dava por isso. Estava a dar-me a um luxo: esta minha marcha era como que umas férias de tudo. Assim cheguei a Siwa. E cheguei lá em companhia de urna data de gente.

Vinham do Sinai e estavam com as mulheres e os filhos num total que talvez fosse de duzentos, amontoados em cima de velhos camiões militares. Encontrei-os pouco antes da descida da colina de Dakrour, quando para lá da primeira barreira de palmeiras já se via a piscina de água quente que, dizem, mas não é verdade, foi construída por Marco António para Cleópatra. Avançavam pela estrada muito lentamente, precedidos por uma camioneta da milícia, os quatro camiões apinhados de gente carregada de trouxas, e em cada um deles um soldado negro e magro tentava desfraldar no ar pesado de poeira escaldante a bandeira verde da Jihad. Dos lados dos camiões estavam pendurados cartazes já desbotados com frases que eu não percebia escritas em caracteres muito grandes.

Quando a caravana me alcançou arrancando numa ultrapassagem interminável, um tipo de cara cinzenta de pó gritou-me qualquer coisa incompreensível. Fiz-lhe um gesto de saudação e por única resposta ele entoou um canto, encorajando com amplos gestos toda a gente a fazer o mesmo. Saiu um coro a custo que foi enfraquecendo logo até se tornar uma ladainha desafinada e bastante lúgubre. Deviam estar todos esgotados. Contudo, passado pouco tempo esse tal debruçou-se do parapeito e repetiu-me gritando a sua pergunta: «Inglé?». Não. Agora finalmente compreendi. «Yenky? » «Não, alexandrino, alexandrino da junihuriya árabe do Misr», respondi-lhe, com a certeza de que a minha cómica inflexão o enterneceria.

E, de facto, tal como todos os árabes que tenham uma pequena conversa na sua língua comigo, também se pôs a rir. Só que ria às gargalhadas e por entre os soluços continuava a gritar-me «Iskandariya, Iskandariya a gorda, a puta gorda, a puta gorda! Ah,, homem afortunado de lskandariya!», escandindo bem as palavras, corno se fizesse tenções de ensinar-me urna frase novinha em folha. E, com efeito, era a primeira vez que alguém, dirigindo-se a mim, usava o nome árabe de Alexandria.

Entretanto, a minha burra insistia em zurrar de despeito pela poeira que os pneus levantavam, envolvendo-nos em moles e asfixiantes baforadas de pó-de-talco. Para manter a dignidade, tentei acalmá-la com umas pancadas secas das rédeas no cu gordo. Era a primeira vez que demonstrava a minha autoridade de maneira assim brusca, e ela levou tão a mal que desatou a arrastar-me numa louca galopada pela ladeira abaixo, se calhar querendo mostrar ao vasto público dos refugiados a sua indómita burrice. Os dos camiões reanimaram-se de repente e começaram a incitá-la inesperadamente de bom humor, berrando toda a espécie de insultos. Eu só podia tentar manter-me em equilíbrio na garupa fazendo por salvar a pele. Assim, entrei em Siwa perseguido por uma horda motorizada de árabes em aclamação, meio morto de medo, agarrado às rédeas do jumento que rangia os dentes como um chacal.

Passei uma semana a tomar estupendos banhos quentes nas velhas piscinas, a vadiar pelo oásis por entre as ruínas dos antigos monumentos e a beber vinho de taráxaco no café de um pequeno hotel que tinha uns quartos estranhamente bonitos. Siwa era o Egipto, o Egipto árabe e africano, o Egipto dessa civilização demasiado velha para ser compreensível, mas que perdurava misteriosamente nos rostos de uma raça jamais vista em Alexandria: gente que falava um dialecto de sons cerrados entre os lábios e se vestia de cores conturbantes. Para mim, era como estar em viagem por um trópico que jamais atravessara.

Via coisas bastante notáveis à minha volta, coisas estranhas e exóticas, mas a minha curiosidade enfraquecia logo até se reduzir a nada. Vagueava em vez de observar. Caminhava como que pairando entre os pomares de damasqueiros e os hortos de palmeiras pejadas de cem maravilhosas qualidades de tâmaras. Brincava com os reflexos claro-escuros dos regatos ou no meio das grandes pedras historiadas do templo do Oráculo, sem realmente procurar nem descobrir nada que me sacudisse de um profundo desinteresse interior.

Em resumo, tinha a cabeça noutro sítio qualquer. Só que não sabia onde, senão poderia orientar-me de qualquer maneira. De vez em quando, ia ter com a minha burra ao estábulo onde estava alojada e, despreocupadamente, confiava-lhe que não me sentia nada brilhante para a minha idade e a minha condição. Ela, naturalmente, não respondia.

(…)





maurizio maggiani
os livros de pascale
trad. josé colaço barreiros
gradiva
1996