(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a extrema tarefa de estrangular uma criança.)
«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.
Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido um crime redentor.
Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias, salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.
Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.
Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não saiba.
Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas corrosivas.
Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas. Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma. Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar concretamente o espírito na matéria do tempo.
E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade, nada esconde na manga.
Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa.
herberto helder
retrato em movimento (1961-1968)
poesia toda 2
plátano editora
1973