01 julho 2007

para um livro de leituras escolares







não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exactos. desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga quotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito

e são meticulosos por ti.










hans magnus enzensberger
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978





27 junho 2007

hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo


22 de agosto de 1994



Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:
eu pode-
ria escrever sobre os problemas do tempo em que vivemos
mas só poderia falar deles a partir do meu, do meu tempo,
des-datando, que é o modo como escovo o fato dessas imã-
gens
que, aos que tomam este caminho,
lhes falam constantemente da sua irrealidade. O mundo.
Mas qual? No meu
combatem-se
existentes poderosos contra reais talvez inviáveis — o «é as-
sim» dos cínicos contra o «tenhamos um amor comum», de
Eckhart.
Basta atravessar a rua para encontrar o nosso tempo, basta-
-me voltar atrás para me encontrar no meu. Algures, no meu
corpo, entre atravessar e voltar atrás, houve o embate das
imagens.
Da televisão que vejo ao texto que escrevo, a distância é
incomensurável.
Não preciso carregar no botão para encontrar nos textos
que eu der a ler, inapagáveis, imagens próprias e não eféme-
ras — se os olhos de quem os ler forem também inapagáveis.
No tracejado desse inapagável, formam-se olhos que são es-
pelhos para as imagens reais de todos o territórios nómadas
que criamos, e vamos trocando entre eles e nós.
Lembro-me, a propósito de imagens, da frase de uma can-
ção que ouvi há anos:

«se eu fosse aquela em quem tu pensas, a quem tu tens
amor...»


Hoje, não posso interrogar — sou eu que afirmo:


que ouço na rua as patas dos cavalos; que vou sair;
que vou pentear-me;
que vou vestir o casaco;
que está um dia nublado;
que há tantos outros (não os outros) que existem, que-
rem ser reais,
e não morrer.


Afirmo que ir sair e não querer morrer me parece, de
súbito, uma espécie de constituição das imagens como se ne-
las houvesse uma certa matéria consciente e imperecível para
lá do corpo que a si própria perguntasse de que modo trazer o
que é vida corrente para o invisível não tomado pela morte.

Não posso perguntar. A escrever tenho de saber, na maior
das certezas.









maria gabriela llansol
inquérito às quatro confidências
relógio d´água
1996







25 junho 2007

paixão





estou no mais alto
da pura manhã

o meu coração é uma lágrima enorme
um frágil astro
que procura na linha dos teus lábios
o despertar generoso
dos solstícios
o alegre andamento
das estações

e quando desces a montanha do teu sono
e ficas tão nua da noite

eu
eu só sou
o sereno rio que passa
e que numa paixão de luz
te leva
ao azul infinito do mar









gil t. sousa
poemas
2001





avion arc en ciel








Eduardo Luiz (1932-1988)
avion arc en ciel (1987)
óleo sobre tela, 81x100 cm
colecção particular (França)






23 junho 2007

o limiar e as janelas fechadas







O que é certo é que gostei de ti.
O resto não: se exististe,
e se assim foi, qual a cor dos olhos, ora verdes
ora cinzentos, deles levantou-se uma vez
um bando de andorinhas. Quais. As rápidas,
as que não andam, as que se amam no ar.
Como foi. Ficaste doente
ou coisa assim, levaram-te, muito se passou,
acho que ia ter outro filho e esqueci-me de ti
até ouvir-te, esta noite, a horas impossíveis,
vem comigo, é tempo. Larga tudo e sai,
espero por ti ao pé da cancela.
Mas cheguei lá e o trinco
estava solto, batia ao vento
contra o poste, fechei-o, voltei para trás,
a pensar em ti, que estiveste lá,
sabe-o Deus, que abriste a cancela,
que gostei de ti e também
que a porta não encaixava bem.










eva gerlach
alguns poemas
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994









22 junho 2007

está-se a fingir muito bem







(…)

Está-se a fingir muito bem.
Finge-se quase até ao esquecimento.
Há paisagens, ruas, cinemas, amores, dinheiro,
pensamentos, palavras, estações do ano
e obras de arte.

Diz-se: a vida.

Ou: o tempo.

E um dia abre-se o livro
e vê-se de novo a fotografia.
E já não se recomeça a leitura no mesmo ponto.
O que se roubou foi o tempo,
sim, mas não naquele primeiro sentido suposto.
A antiquíssima imagem fixa
serve para se roubar ao tempo a sua qualidade de perdão.

Porque a idade não ensina a anuência aos bons
e fáceis sentimentos.
A idade é: cada vez mais atenção.
Só te resta isso, caminhador:
o perigo.
O perigo que é o conhecimento,
o conhecimento ganho na atenção.

Um homem que conquistou a sua idade
não pára diante da fotografia antiga
para se comover e murmurar:
a mãe com o seu filho ou o filho com a sua mãe.

Ele pensa: quem são?
o que fazem um ao outro?
Ele ouve:
vou morrer, e vou deixar-vos descansados.
E ouve a sua própria voz:
então morra.

E as mãos inocentes.

De uma delas sabe que se moveu
como se agarrasse um punhal
— a pequena mão inocente registada com oito anos.

Descanso?
Mas isso conhecia ela bem que seria impossível.
O que ela dizia era assim:
morro para que tu, tu, tu,
não tenhas nenhuma espécie de descanso.

Um pouco mais, um pouco mais
— é para isso que as imagens são imóveis.
Tu próprio não és uma criatura móvel,
a menos que fales em atenção,
em profundidade.

Desce àquilo em que te encontras imóvel.

Mas em vez disso saímos para a rua,
à procura dos velhos companheiros:
os que se vão suicidar,
os que se encontram à entrada do seu irrevogável romance de esquizofrenia,
os que de longe escreverão uma carta
pedindo para os ajudarmos a virem morrer nesta cidade branca
que, do outro lado,
quando se está com o fígado desfeito e a cabeça a tremer,
a gente imagina metaforicamente aérea,
varrida por ventos puros.

Saímos em busca dos bêbados.

Pretende-se a ilusão de espaços dinâmicos,
figuras que se propaguem através deles,
o empolgante cinetismo das visões,

E que haja tempo, o tempo, o tempo.

Que as coisas avancem,
desfazendo os nós ferozes onde a angústia se concentrou.

Uma semana de bebedeira ininterrupta
— e aparecem as amiguinhas,
vamos todos de um lado para outro,
bando apocalíptico,
animado por um furor malsão, uma alegria brutal.

Arranjamos um quarto,
despimo-nos,
e depois estamos noutro quarto,
e estamos a despir-nos,
e de novo a fazer amor,
quatro, seis, oito em cima do tapete —
o terrível milagre de uma alucinação de pernas,
braços, seios, mãos, sexos, coxas, cabeças, vestidos, camisas.

E uma madrugada, só,
vagueando pelos cais desertos,
no meio da luz suja e trémula,
ressurge o horror da inteligência.

Vê-se tudo, e seria preciso morrer.

E então volta-se para casa,
procura-se a fotografia no livro,
no fundo de uma gaveta,
e está lá isto: o tempo não existe.

Seria possível uma pequena piedade por nós próprios,
mas somos tão pouco sentimentais,
nós.

Não gostamos da piedade.

Descobre-se que a mãe não era para piedades.
A perversa cabeça infantil
entra nela como um punhal,
e a mãe, sem conhecer o peso do braço do cavalheiro,
olha o espaço, de lado, neutra,
ligada àquela espécie de enigmático crime,
à obscura vingança
no outro lado da sua profecia do descanso para eles, para ele, ele
— para ti.

Decifrando a metáfora,
percorrendo os caminhos para descobrir as deslocações das partes
e, assim, recompor a verdade do texto
— a fotografia, a realidade, a vida
— ele descobre que toda a gente tem as mãos cheias
de sangue.

Que nada foi criado
que o não fosse no abismo das destruições.
E entendendo enfim a linguagem das fotografias,
ele assume a sua desgraça,
e a insignificância dela,
e supõe poder avançar,
liberto,
para a sua própria morte,
algures num tempo.

(…)










herberto helder
apresentação do rosto
editora ulisseia
1968






20 junho 2007

os paraísos artificiais, o vinho





A ALMA DO VINHO


Uma noite, a alma do vinho cantava nas garrafas:
«Homem, vai de mim para ti, ó caro deserdado,
Nesta prisão de vidro e de selos vermelhos,
Um canto cheio de luz e de fraternidade!

Sei quanto é preciso, sobre a colina em chamas,
De esforço, de suor e de sol esbraseante
Para engendrar-se a minha vida e ser-me dada alma;
Mas não serei ingrato nem malfazejo,

Pois é imensa a alegria que sinto quando caio
Na garganta de um homem gasto pelo trabalho,
E o seu cálido peito é um túmulo tranquilo
Onde melhor me sinto do que nas frias caves.

Ouves tu ressoar as canções dos domingos?
E a esperança que ri no meu seio palpitante?
De cotovelos na mesa e arregaçando as mangas,
Tu me glorificarás e estarás radiante;

Iluminarei os olhos de tua mulher encantada;
A teu filho darei a cor e as forças
E serei para esse frágil atleta da vida
O óleo que reforça os músculos dos lutadores.

Em ti cairei, vegetal ambrósia,
Grão precioso lançado pelo eterno Semeador,
Para que do nosso amor nasça a poesia
Que subirá a Deus como uma rara flor!»





O VINHO DOS TRAPEIROS


Muitas vezes, à luz vermelha de um candeeiro
Cuja chama o vento sacode e cujo vidro atormenta,
No coração de um velho subúrbio, labirinto lodoso.
Onde a humanidade se agita em fermentos tempestuosos,

Vê-se um trapeiro que vem, meneando a cabeça,
Tropeçando, e esbarrando nas paredes como um poeta,
E, sem dar atenção aos espiões, seus súbditos,
Expande todo o coração em gloriosos projectos.

Presta juramentos, dita leis sublimes,
Derruba os maus, ergue de novo as vítimas,
E sob o firmamento como um dossel suspenso
Enebria-se dos esplendores da sua própria virtude.

Sim, estes seres fatigados de desgostos domésticos,
Moídos do trabalho e atormentados pela idade,
Extenuados e vergados sob um monte de restos,
Vomitados confusos do enorme Paris,

Regressam, perfumados de um odor de tonéis
Seguidos de companheiros, encanecidos nas batalhas,
Cujos bigodes pendem como os velhos estandartes.
As bandeiras, as flores e os arcos triunfais

Erguem-se diante deles, solene magia!
E na estrondosa e luminosa orgia
Dos clarins, do sol, dos gritos e do tambor,
Trazem a glória ao povo ébrio de amor!

Assim através da Humanidade frívola
O vinho rola ouro, deslumbrante Páctolo;
Com a garganta do homem canta as suas proezas
E reina por seus dons como os verdadeiros reis.

Para afogar o rancor e embalar a indolência
De todos esses velhos malditos que morrem em silêncio,
Deus, tocado de remorsos, fizera o sono;
O Homem juntou-lhe o Vinho, filho sagrado do Sol.





O VINHO DO ASSASSINO


Minha mulher está morta, sou livre!
Posso agora beber quanto quiser.
Quando chegava a casa sem dinheiro
Rasgava-me as fibras aos gritos.

Sou tão feliz como um rei;
O ar é puro, o céu admirável...
Tivemos um Verão assim!
Quando me apaixonei por ela.

A horrível sede que me dilacera
Precisaria para se satisfazer
De tanto vinho quanto pode conter
O túmulo dela; — e não é dizer pouco:

Atirei-a ao fundo de um poço,
E empurrei-lhe mesmo para cima
Todas as pedras do bucal.
Hei-de esquecê-lo se puder!

Em nome dos juramentos de ternura,
De que nada pode desligar-nos,
E para nos reconciliarmos
Como nos bons tempos do nosso entusiasmo,

Implorei-lhe um encontro,
À noite, numa rua escura.
Ela veio! — doida criatura!
Todos somos mais ou menos doidos!

Estava ainda bonita,
Embora fatiga da! e eu,
Amava-a de ‘mais! por isso
Lhe disse: Sai desta vida!

Ninguém pode entender. Um só
Desses bêbedos estúpidos
Terá pensado nas noites mórbidas
Fazer do vinho uma mortalha?

Essa crápula invulnerável
Como as máquinas de ferro
Nunca, de Verão ou de Inverno,
Conheceram o verdadeiro amor,

Com os seus negros bruxedos,
Seu cortejo infernal de alarmes,
Seus frascos de veneno, suas lágrimas,
Sem ruídos de grilhões e de ossadas!

— Eis-me livre e solitário!
Esta noite estarei bêbedo a cair;
Depois, sem medo e sem remorso,
Deitar-me-ei no chão,

E dormirei como um cão!
A galera de pesadas rodas
Carregada de pedras e de lamas,
O vagão desgarrado pode vir

Esmagar-me a cabeça culpada
Ou cortar-me pelo meio,
Rio-me de tudo como de Deus,
Do Diabo ou da Santa Mesa!





O VINHO DO SOLITÁRIO


O olhar singular de uma mulher galante
Que desliza para nós como o raio branco
Que a lua ondulosa envia ao lago trémulo
Quando quer banhar nele a beleza preguiçosa;

O último saco de escudos nas mãos de um jogador;
Um beijo libertino da magra Adeline;
Os sons de uma música enervante e carinhosa,
Semelhante ao grito distante da dor humana,

Tudo isto não vale, ó garrafa profunda,
Os bálsamos penetrantes que a tua pança fecunda
Reserva ao coração sedento do poeta piedoso;

Tu deitas-lhe a esperança, a juventude e a vida,
— E o orgulho, tesouro da indigência,
Que nos torna triunfantes e iguais aos Deuses!





O VINHO DOS AMANTES


Hoje o espaço é esplêndido!
Sem freio, sem esporas, sem brida,
Partamos a cavalo no vinho
Para um céu feérico e divino!

Como dois anjos atormentados
Por calentura implacável,
No azul cristal da manhã
Sigamos a miragem distante!

Suavemente balouçados sobre a asa
Do turbilhão inteligente,
Em um delírio paralelo,

Minha irmã, nadando lado a lado,
Fugiremos sem descanso nem tréguas
Para o paraíso dos meus sonhos!












charles baudelaire
os paraísos artificiais
trad. josé saramago
livros b
estampa
1978




19 junho 2007

tango azul





uma vez a polícia alvejou-me.
a história tem os seus quês. eu conto-te:


apanharam-nos num automóvel gamado
cercaram-nos
mandaram-nos sair do chaço
e apoiar as mãos na parte de trás
da mala para
nos revistarem
algemarem
nos levarem de cana.
era sexta-feira. no sábado
tinha pensado estrear roupa para ir todo
catita
à discoteca
a meter-me com as gajitas.
não hesitei dei a volta e desatei a correr.
estava perto a esquina da salvação.
um dos chuis gritou-me:


PÁRA, FILHO DA PUTA, OU MATO-TE!


atirou
disparou a 5 metros de distância
e falhou
escapei
vesti a minha roupa nova
dei show.


mas o importante da história
é o que eu digo sempre:

devia ter acertado

devia ter-me matado nesse mesmo instante

quando não tinha medo da morte

quando ainda era

feliz.










david gonzález
trad. gs
a partir do texto original em
poesia espanhola, anos 90
joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000








17 junho 2007

praga HIV








Antes do contágio, o hálito do prazer era-me constantemente familiar e os corvos suaves ferviam tolhidos no carro do miradouro. O filamento do vazio, emaranhado no interior do desejo, era o magnífico solo na distribuição de pedaços de jornal, com o meu telefone escrito a azul bebé, ao longo dos sexos molhados. Destrambelhados delitos cometidos, mas do culpado nem rasto sequer. Desrespeitei-me muitas vezes, mas depois do positivismo ao máximo, andamos perdidos com anatomias e angústias semelhantes. Aos corpos desmiolados, atiçados em conferência de imprensa, tudo lhes perdoo, excepto o princípio do vírus. No fundo, somos todos potenciais seres humanos, partilhamos tudo e tudo oferecemos, até a morte lenta. Na mitologia, a materialização da vacina. Aparição estragada, futuro sem lugar, imaginação desabitada para dentro do esqueleto minado. Apalpo-me em múltiplas ocasiões, mas das zonas endógenas inchaços, hematomas, nódoas, quistos. Tenho a protecção física flectida sob todo o tipo de infecções. Estremeço de medo, por detrás da latrina vertebrada. Os comprimidos são ímanes para a loucura, bengalas, hélices no deslocamento entre as várias divisões do lar. Na doença fealdade, tosse, cor amarela, pele amarela, bolor, desastre, estatística da pena. No imprevisto, a criatura amada fugiu antes de ter tropeçado no precipício ininstante. A análise sísmica foi-lhe favorável, nem sei bem como. Naquele dia tocou-me no braço e disse: - Mesmo que não me suicide antes, deixo-te para morreres à vontade, sem perturbações, na proibição dos átomos. Falta somente esculpir a execução. Assunto arrumado.








cláudia afonso
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem

trianual nº- 1 série II
coimbra
julho 2002






16 junho 2007

lucidez impura






numa falésia de silêncio
há um colar de palavras a arder

todos os ventos amargos
vieram morar na minha cabeça

morrem-me nos lábios
um a um
os verbos mais belos

que demoradamente se extinguem
e te arrastam

levam-te de mim
como se fosses todo o verde
que havia num deserto

e eu ergo esta saudade
para não te perder

na crueldade de Dezembro
a construo

porque nenhum outro tempo
te pode incluir








gil t. sousa
poemas
2001



13 junho 2007

espelho negro





Dois corpos que se estreitam e crescem
e penetram na noite de sua pele
e sexo, duas trevas entrelaçadas
que inventam na sombra a sua origem, os seus deuses,
que dão nome e rosto à solidão,
e desafiam a morte sabendo-se mortos
e derrotam a vida ao serem a sua presença.
Diante da vida sim, diante da morte,
Dois corpos impõem uma realidade aos gestos,
braços, músculos, à terra húmida,
vento de chamas, lago de cinzas.
Diante da vida sim, diante da morte,
dois corpos que porfiam exorcizam o tempo
construindo a eternidade que lhes é negada –
supõe eterno o sonho que os sonha.
É negro o espelho em que se replica a sua noite.








juan luís panero
antes que chegue a noite
versões de antónio cabrita e teresa noronha
fenda
2000








12 junho 2007

cantos de maldoror






Todas as noites, mergulhando a envergadura das minhas asas na memória agonizante, evocava a lembrança de Falmer... todas as noites. Os seus cabelos loiros, o seu rosto oval, os seus traços majestosos estavam ainda gravados na minha imaginação... indestrutivelmente.., sobretudo os seus cabelos loiros. Afastai, afastai pois essa cabeça sem cabelo, polida como a carapaça da tartaruga. Ele tinha catorze anos e eu um ano mais. Essa voz lúgubre que se cale. Porque vem ela denunciar-me?
Mas sou eu mesmo que falo. Servindo-me da minha própria língua para exprimir o meu pensamento, sentindo que os meus lábios mexem e que sou eu mesmo que falo. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude e sentindo o remorso penetrar-me o coração... sou eu mesmo, a não ser que esteja enganado... sou eu mesmo que falo. Eu tinha só um ano mais. Quem é então aquele a quem me estou a referir? É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. Sim, sim, já disse o nome dele... não quero soletrar outra vez essas seis letras, não, não. Também é inútil repetir que eu tinha um ano mais. Quem sabe? Repitamos, no entanto, mas com um penoso murmúrio: eu só tinha um ano mais. Mesmo então, a preeminência da minha força física era um motivo para sustentar, através do rude atalho da minha vida, aquele que se me tinha dado, mais do que para maltratar um ser visivelmente mais fraco. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco... Mesmo então. É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. A preeminência da minha força física... todas as noites... Sobretudo os seus cabelos loiros. Muitos seres humanos viram cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou em separado) explicam este fenómeno negativo de modo satisfatório. Tal é, pelo menos, a resposta que um sábio me daria, se eu o interrogasse a este respeito. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (sim, também eu sou sábio) que um dia, só porque ele me deteve a mão no momento em que eu erguia o punhal para trespassar o seio de uma mulher, o agarrei pelos cabelos com braço de ferro e o fiz girar no ar, a tal velocidade que a cabeleira me ficou na mão, e o seu corpo, lançado pela força centrífuga, foi embater no tronco de um carvalho... Não ignoro que um dia a sua cabeleira me ficou na mão. Também eu sou sábio. Sim, sim, já disse o nome dele. Não ignoro que um dia cometi um acto infame, quando o seu corpo era lançado pela força centrífuga. Ele tinha catorze anos. Quando, num acesso de alienação mental, corro pelos campos, apertando contra o coração uma coisa sangrenta que há muito tempo conservo como venerada relíquia, as criancinhas que vêm atrás de mim... as criancinhas e as velhas, que me perseguem à pedrada, soltam estes gemidos lamentosos: “Ali vão os cabelos de Falmer.” Afastai, afastai pois essa cabeça calva, polida como a carapaça da tartaruga... Uma coisa sangrenta. Mas sou eu mesmo que falo. O seu rosto oval, os seus traços majestosos. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. As velhas e as criancinhas. Ora, eu julgo que na verdade.., que é que eu ia a dizer?... ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. Com braço de ferro. Aquele choque, aquele choque matou-o? Partiram-se-lhe os ossos contra a árvore... irreparavelmente? Matou-o, aquele choque provocado pelo vigor de um atleta? Continuou vivo, apesar dos seus ossos irreparavelmente partidos... irreparavelmente? Aquele choque matou-o? Temo saber aquilo a que os meus olhos fechados não assistiram. Na verdade... Sobretudo os seus cabelos loiros. Na verdade, eu fugi para longe com uma consciência agora implacável. Ele tinha catorze anos. Com uma consciência agora implacável. Todas as noites. Quando um jovem que aspira à glória, num quinto andar, debruçado sobre a sua mesa de trabalho, à hora silenciosa da meia-noite, sente um ruído que não sabe a que atribuir, vira a cabeça para todos os lados, pesada da meditação e dos poeirentos manuscritos; mas nada, nenhum indício surpreendido lhe revela a causa daquilo que ouve tão baixo, mas que ouve. Vê por fim que o fumo da vela, ao subir para o tecto, provoca, através do ar ambiente, as quase imperceptíveis vibrações de uma folha de papel presa à parede com um prego. Num quinto andar. Tal como um jovem que aspira à glória ouve um ruído que não sabe a que atribuir, assim eu ouço uma voz melodiosa que me diz ao ouvido: “Maldoror!” Mas, antes de desfazer o engano, ele julgava ouvir as asas de um mosquito... debruçado sobre a sua mesa de trabalho. No entanto, eu não estou a sonhar; que importa que eu esteja estendido no meu leito de cetim? Faço com sangue-frio a observação perspicaz de que tenho os olhos abertos, embora seja a hora dos dominós cor-de- rosa e dos bailes de máscaras. Nunca... Oh! não, nunca!.., nunca uma voz mortal fez ouvir estas tonalidades seráficas ao pronunciar com tão dolorosa elegância as sílabas do meu nome! As asas de um mosquito... Como é indulgente a sua voz... Ter-me-á então perdoado?... O seu corpo foi embater no tronco de um carvalho... “Maldoror!”












isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto quarto
trad. pedro tamen
fenda
1988







10 junho 2007

pour faire le portrait d´un oiseau





a elsa henriques





se quiseres pintar o retrato de um pássaro
primeiro pinta uma gaiola
com a porta aberta.
depois pinta
algo engraçado
algo simples
algo bonito
qualquer coisa útil
para o pássaro.
depois encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou numa floresta
e esconde-te atrás da árvore
muito calado
sem te mexeres…
às vezes o pássaro aparece logo
mas também pode levar muitos anos
até decidir aparecer.
não desistas
espera
espera durante anos, se preciso for
a pressa ou a demora do pássaro
não tem influência no resultado
do quadro.
quando o pássaro aparecer
se ele aparecer
guarda o mais profundo silêncio
até ele entrar na gaiola
e quando ele entrar
delicadamente, fecha a porta com o pincel
depois
apaga uma a uma todas as grades
tendo o cuidado de não tocar a plumagem do
pássaro
em seguida, pinta uma árvore
e escolhe o ramo mais bonito
para o pássaro
pinta a folhagem e a frescura do
vento
pinta o dourado do sol
e o alarido das criaturas na relva sob o calor do
verão
e depois espera até que o pássaro se decida a cantar
se ele não cantar
é mau sinal
é sinal de que o quadro é mau
mas se ele cantar é bom sinal
é sinal de que o podes assinar
e então arrancas delicadamente
uma pena do pássaro
e escreves o teu nome num canto do quadro












jacques prévert
paroles
trad. g.s.
éditions gallimard
folio
2003