18 dezembro 2006

post it / w.d. sevahc




Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc




16 dezembro 2006

carlos edmundo de ory



dá-me




dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!





carlos edmundo de ory
“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997





11 dezembro 2006

ewa lipska




testamento



Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens





ewa lipska (polónia, 1945)
tradução de aleksandar jovanovic
a rosa do mundo
assírio & alvim
porto 2001




08 dezembro 2006

estações

15 )



lisboa 2006, © gil t. sousa



pedro gil-pedro




Desciam
às estâncias do frio

o metal pesado nas mãos

e resplandeciam –

tolhidas pelo silvo vertical das
nascentes.

às vezes
eram badalos de tristeza –

as manadas abertas do cio.

vinhas com elas.







pedro gil-pedro
“animais cheios de movimento no inverno”
quasi
2002



07 dezembro 2006

estações

14 )



instinto



aceitar os dias por instinto
por dentro
um vulcão de papel
a inventar
as horas seguintes

ser tranquilamente uma terra antiga
um lugar de secura
onde adormecidas pérolas
esperam o cavar silencioso
do tempo

e colher no infinito
esse brilho adiado

como se fossem outra vez
os teus olhos






gil t. sousa
poemas
2001




05 dezembro 2006

joão de mancelos



mil novecentos e oitenta e cinco




nesse tempo, deus existia ainda
e tudo quanto era frágil respirava
loucamente


no bar da escola,
as bandas tocavam
para os cleptomaníacos do coração


nas traseiras do ginásio,
treinavam-se beijos à serpente
e cigarros orientais


os rapazes cresciam
com olhos prateados
e duros totens de carne


debaixo das saias das raparigas
havia flores rasgadas
e sonhos de cavalos bravos


forever young, só o vento
— e as revoluções do amor
que beijo a beijo atraiçoávamos






joão de mancelos
“oficina de poesia”
nr. 3 junho 2004
coimbra




04 dezembro 2006

ievgueni ievtuchenko



dorme amor




Brilham na vala as gotas salgadas.
A porta está fechada. E o mar,
fervente, erguendo-se e rompendo contra os diques,
absorveu o sol salgado.
Dorme amor...
Não atormentes a minha alma.
Adormecem já as montanhas e a estepe,
e o nosso cão coxo,
de pêlo emaranhado,
deixa-se cair e lambe a corrente salgada.
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão acorrentado
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...
Dorme, amor...
Esquece que nos zangámos.
Imagina por exemplo:
acordamos.
Tudo está fresco.
Caímos sobre o feno.
Temos sono.
Vem um cheiro a leite azedo
lá de baixo,
da cave
convidando a sonhar.
Oh, como poderei fazer-te
imaginar tudo isto,
a ti, tão desconfiada!
Dorme, amor...
Sorri entre sonhos.
Não chores mais!
Corta flores e vai pensando
onde hás-de pô-las,
e compra muitos vestidos bonitos.

Disseste alguma coisa?
É o cansaço do teu sonho inquieto.
Envolve-te no sonho, agasalha-te bem nele.
Podemos ver em sonhos tudo o que queremos,
tudo o que ansiamos
quando estamos acordados.
É absurdo não dormir,
é mesmo um delito:
o que trazemos oculto
grita-nos nas entranhas.
Que difícil para os teus olhos
trazer tanta coisa!
Debaixo das pálpebras
sentirão o alívio do sonho.
Dorme, amor...
Porque estás acordada?
É o bramido do mar?
A súplica das árvores?
Um mau pressentimento?
A sem-vergonha de alguém?
Ou talvez não de alguém,
mas simplesmente a sem-vergonha minha?
Dorme, amor...
Não é possível fazer nada,
mas sabe desde já que não é culpa minha esta culpa.
Perdoa-me - estás a ouvir?
Ama-me - estás a ouvir? -
mesmo que seja só em sonhos,
só em sonhos!
Dorme, amor...
Estamos num mundo
que voa enlouquecido
e ameaça explodir,
e é preciso abraçarmo-nos
para não cairmos dele,
e se tivermos que cair,
vamos cair abraçados.
Dorme, amor...
Não te deixes encher de raiva.
Que o sonho penetre suavemente nos teus olhos
já que é tão difícil dormir neste mundo.
Mas apesar de tudo
- ouves-me, amor? -
dorme...
E o rumor dos ramos,
e o fragor das ondas,
e o cão na corrente
com toda a sua experiência,
e eu com voz muito branda
e logo num murmúrio
e depois em silêncio
dizemos-te ambos: dorme, amor...






ievgueni ievtuchenko
ievtuchenko em lisboa (1967)
dom quixote
1968






02 dezembro 2006

raul brandão (1867-1930)



21 de Novembro


Não me compreendo nem compreendo os outros. Não sei quem sou e vou morrer. Tudo me parece inútil e agarro-me com desespero a um fio de vida, como um náufrago a um pedaço de tábua.

Nem sei o que é a vida. Chamo vida ao espanto. Chamo vida a esta saudade, a esta dor; chamo vida e morte a este cataclismo. É a imensidade e um nada que me absorve; é uma queda imensa e infinita, onde disponho de um único momento.

Talvez o mundo não exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. Faço parte de uma coisa dolorosa, que totalmente desconheço, e que tem nervos ligados aos meus nervos, dor ligada à minha dor, consciência ligada à minha consciência.

Estou até convencido que nenhum destes seres existe. Este fel é o meu fel, este sonho grotesco o meu sonho. Estou convencido que tudo isto são apenas expressões de dor – e mais nada.

Nós não vemos a vida – vemos um instante da vida. Atrás de nós a vida é infinita, adiante de nós a vida é infinita. A primavera está aqui, mas atrás deste ramo em flor houve camadas de primaveras de oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás desta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chamo a vida é um elo, e o que aí vem um tropel, um sonho, desmedido que há-de realizar-se. E nenhum grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensanguentada e dorida, a cada grito se aproxima de Deus. Lá vamos todos a Deus, os vivos e os mortos.

O mundo é um grito. Onde encontrar a harmonia e a calma neste turbilhão infinito e perpétuo, neste movimento atroz? O mundo é um sonho sem um segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites.

Eu não sou nada. Sou o minuto e a eternidade. Sou os mortos. Não me desligo disto – nem do crime, nem da pedra, nem da voragem. Sou o espanto aos gritos.

O sonho completo é o universo realizado.

Cada vez fujo mais de olhar para dentro de mim mesmo. Sinto-me nas mãos de uma coisa desconforme. Sinto-me nas mãos de uma coisa imensa e cega – de uma tempestade viva.

Não só a sensibilidade é universal – a inteligência é exterior e universal.

O universo é uma vibração. A vida é uma vibração na vibração.

Toda a teoria mecânica do universo é absurda. Daqui a alguns anos todos os sistemas serão ridículos – até o sistema planetário.






raul brandão
húmus
frenesi
2000


29 novembro 2006

post it / l. maltez

sentires...



acordas junto à sombra dos sentires
perdido no movimento azebre,
fulguras da tristura ocasional
de um tempo passado
sem prazer.


suave na sua mudez,
a terra olha-te em silêncio.


escutas a voz do perigo
entre o bem e o mal,
consegue pousar
do lado da luz
no frio que te dá ordens


do coração saltam feridas
devoradas pelo infinito


já nada sentes
embriagado na música inaudível,
expeles do teu corpo uma seiva amarga,
e imploras para renascer
de um ventre sem rosto



aguardas na praia que a maré vaze,
encontro-te...



dou-te a minha mão!






l.maltez


28 novembro 2006

ternura

cruzeiro seixas



Cheguei a casa um pouco mais cedo que de costume. Tirei a ventoinha da cabeça, pus-me à vontade, fui ver se os mamutes estavam a fazer disparates e sentei-me na sala, no velho e confortável sofá que a tia Mizé nos oferecera pelo casamento. Querida tia Mizé! Preparei um gin.
Josela ainda não chegara. Estava atrasada, talvez as compras, quem sabe.
Foi quando ouvi abrir a porta. Fui ver. Josela chegava, empurrando o carrinho antigo que servira para o nosso filho agora com dezoito anos como sabem, e com um bom lugar de Viet qualquer coisa, lá não estou bem certo onde; lugar seguro e de futuro, foi o que me disseram. Bom rapaz, o nosso garoto.
Olhei o carrinho. Trazia um bebé dentro. Josela sorria. Vi o preço. Razoável. Do talho do senhor Esteves. Manias da Josela.
Olhei Josela.
Tinha os olhos brilhantes, havia urna ternura inesperada que a envolvia, uma tristeza distante nas mãos.
— Achas que podemos ficar com ele? — perguntou-me, afirmando.
Concordei. Josela manda.
Arrumei o carrinho.
Era um bebé ainda em muito bom estado. Durou cinco dias até apodrecer, calculem!





mário-henrique leiria
“casos de direito galático / o mundo inquietante de josela (fragmentos)”
ilustrações de cruzeiro seixas
editorial república
1975