24 novembro 2006

amalia bautista



A Vida Responsável


Conduzir mas sem ter um acidente,
comprar massas e desodorizantes
e cortar as unhas às minhas filhas.
Madrugar outra vez e ter cuidado
em não dizer inconveniências,
esmerar-me na prosa de umas folhas
e estou-me nas tintas para elas,
retocar de vermelho cada face.
Lembrar-me da consulta ao pediatra,
responder ao correio, estender roupa,
declarar rendimentos, ler uns livros,
fazer umas chamadas telefónicas.
Bem gostaria de me dar ao luxo
de ter o tempo todo que quisesse
para fazer só coisas esquisitas,
coisas desnecessárias, prescindíveis
e, sobretudo, inúteis e patetas.
Por exemplo, amar-te com loucura.




amalia bautista
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004





21 novembro 2006

antonio gamoneda




Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).


Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.




livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



20 novembro 2006

edgar morin



SABER PENSAR O SEU PENSAMENTO


Saber ver necessita saber pensar o que se vê. Saber ver implica portanto saber pensar, como saber pensar implica saber ver. Saber pensar não é algo que se obtenha por técnica, receita ou método. Saber pensar não é apenas aplicar a lógica e a verificação aos dados da experiência. Isso supõe também saber organizar os dados da experiência. Precisamos portanto de compreender que regras, que princípios comandam o pensamento que nos permite organizar o real, isto é, seleccionar / privilegiar certos dados e eliminar / subalternizar outros. Precisamos de adivinhar a que pulsões obscuras, a que necessidades do nosso ser, a que idiossincrasia do nosso espírito obedece ou responde o que temos por verdade. Numa palavra, saber pensar significa indissociavelmente saber pensar o seu pensamento. Necessitamos de nos pensar pensando, de nos conhecer conhecendo. Essa é a exigência reflexiva fundamental, que não é tão-só a do filósofo profissional, que não deveria estender-se apenas ao cientista, mas que deve ser a de cada um e de todos.



edgar morin
“as grandes questões do nosso tempo”
trad. adelino dos santos rodrigues
editorial notícias
1994




16 novembro 2006

henry deluy




Esquecer tudo, - à tarde
Quando a luz declina.


*


Depois dizer a verdade.








henry deluyprimeiras sequências
trad. colectiva Mateus, set. out. de 2000
quetzal editores
2002


15 novembro 2006

pictures at an exibition / egon schiele



Egon Schiele (1890-1918)




Four Trees
1917, oil on canvas, Osterriche Galerie, Vienna





Self Portrait With Black Vase
1911, oil on wood, Historiches Museum der Stadt, Wien/Vienna





Agony
1912, Neue Pinakothek, Munich





Self Portrait
1913, pencil, National Museum Stockholm





Death and Girl (Self-portrait with Walli)
1915; Osterreichisches Galerie Wien, Vienna





Sitting Woman With Legs Drawn Up
1917; Narodni Galerie, Prague




13 novembro 2006

um poema de: sylvia plath

a lua e o teixo



Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul.
As ervas descarregam as suas mágoas nos meus pés como se
[eu fosse Deus,
Picando os meus tornozelos e murmurando a sua humildade.
Esfumadas, inebriantes neblinas habitam este lugar
Separado da minha casa por uma fileira de lápides.
Só não consigo ver para onde se vai.

A lua não é nenhuma porta. É um rosto em seu pleno direito,
Branco como os nós dos dedos e terrivelmente transtornado.
Arrasta o mar atrás de si como um delito obscuro; silenciosa
Com a boca em O num esgar de total desespero. Vivo aqui.
Duas vezes aos domingos, os sinos assustam o céu -
Oito línguas enormes a afirmar a Ressurreição.
No final, fazem soar os seus nomes sobriamente.

O teixo aponta para o alto. Tem forma gótica.
Os olhos seguem-no e encontram a lua.
A lua é a minha mãe. Ela não é doce como Maria.
As suas roupas azuis libertam pequenos morcegos e corujas.
Como eu gostaria de acreditar na ternura -
O rosto da efígie, dulcificado pelas velas,
A desviar para mim, em particular, os seus olhos ternos.

Caí muito longe. As nuvens a florescer
Azuis e místicas sobre a face das estrelas.
Dentro da igreja, os santos vão ficar todos azuis,
A pairar com seus pés delicados sobre os bancos frios,
De mãos e rostos rígidos pela santidade.
A lua não vê nada disto. É calva e selvagem.
E a mensagem do teixo é a escuridão - escuridão e silêncio.





sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




07 novembro 2006

estações

13 )


os que se perderam



que rebentem estradas
sob os pés
dos que se perderam

que nos seus olhos gelados
cresçam fogueiras

*

que este silêncio se curve
como um animal sem voz




gil t. sousa



andrei tarkovsky / porque o destino





Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.





Arsenii Tarkovskii
“8 ìcones”
Assírio & Alvim
1987


04 novembro 2006

citações



stig dagerman



(…)

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece...
Noites há, em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objectos pontiagudos que me rodeiam, no peso do tecto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o facto de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!
Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de urna forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, sou por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: «Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis»! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o facto da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!
Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o facto de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.
Dir-se-á que preciso de ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus actos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objectivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.
Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitectei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é urna boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam?

(…)




stig dagerman
a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer
versão de paula castro e josé daniel ribeiro
fenda edições
1989




30 outubro 2006

post it / m. f. s.

a perfeita canção do soldado



a perfeita canção do soldado arma-se nos olhos dos escondidos
daqueles que cegam à luz do meio-dia

a perfeita canção do soldado soa a marchas de botas apertadas
enche-se de alegre patriotismo

a perfeita canção do soldado faz cair os pés de barro
dos ídolos instalados nos gabinetes

a perfeita canção do soldado soa a marcha fúnebre
com botas brilhantes e apertadas


m.f.s.

25 outubro 2006

um poema de: marguerite yourcenar



Gherardo Perini



«Não irei mais longe, Gherardo.
Não te acompanho mais porque o trabalho urge
e eu sou um homem velho. Sou um homem velho, Gherardo.
Às vezes, quando te entregas mais à ternura,
chegas a chamar-me teu pai. Mas eu não tenho filhos.
Nunca encontrei mulher tão bela como as minhas figuras de pedra,
mulher que ficasse horas imóvel sem falar,
como coisa necessária que não precisa de agir para ser,
e nos faz esquecer que o tempo passa porque está sempre presente.
Mulher que se deixe olhar sem sorrir nem corar
porque compreendeu que a beleza é qualquer coisa de grave.
As mulheres de pedra são mais castas que as outras,
e mais fiéis, porém, são estéreis.
Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer,
a morte, ou a semente de uma criança,
e por isso elas são menos frágeis.
Por vezes quebram-se e em cada pedaço de mármore
fica contida a sua beleza inteira, como Deus
que está em todas as coisas,
mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração.
Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem,
mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.



Gherardo, não tenho filhos.
Eu bem sei que a maioria dos homens não tem propriamente um filho:
têm Tito, ou Caio, ou Pedro, e não é a mesma alegria.
Se eu tivesse um filho,
ele não se havia de parecer com a imagem que eu dele formara
antes de existir. Assim também as estátuas que faço
são diferentes daquelas que comecei por sonhar.
Mas Deus permite-se ser conscientemente criador.
Se fosses meu filho, Gherardo, eu não te amaria mais,
mas não teria que perguntar-me porquê.
Toda a minha vida procurei respostas a perguntas
que talvez não tenham resposta e perscrutei o mármore
como se a verdade se encontrasse no coração das pedras,
e espalhei as cores para pintar muralhas
como se se tratasse de fixar acordes sobre um enorme silêncio.
Tudo se cala, sabes, até a nossa alma —
ou então somos nós que não ouvimos.



Assim, tu partes.
Na minha idade já não se dá importância a uma separação,
mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais
se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa.
É também deste modo que se vão separando de si próprios.
Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí,
mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida,
e a tua ausência já começou. É certo que compreendo
que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe.
Os homens que inventaram o tempo,
inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo
é tão vã como ele próprio. Não há nem passado nem futuro
mas apenas uma série de presentes sucessivos,
um caminho perpetuamente destruído e continuado
onde todos vamos avançando.



Estás sentado, Gherardo,
mas os teus pés estão assentes no solo
com a inquietação de quem experimenta o caminho.
Estás vestido com trajes do nosso século,
que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século
tiver passado pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo.
Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo,
que é como os santos vêem as almas, segundo penso.
É um suplício quando são feios,
mas é um outro suplício quando são belos,
dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados
e acabarão por tomar-te,
mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja
onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia
o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado
onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio
o reflexo imóvel de ti.
E desse modo imobilizarei a tua alma também.



Tu já não me amas.
Se consentes em ouvir-me durante uma hora
é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar.
Ligaste-me e agora desligas-me.
Não te censuro, Gherardo.
O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido
que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo.
Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces,
ao encontro de quem vais e que porventura te esperam:
aquele que eles vão conhecer será diferente daquele
que eu julguei conhecer e creio amar.
Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e,
sendo a arte a única forma de posse verdadeira,
o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.



Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas:
vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los.
Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe,
enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela.
Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo,
assim tu também não és mais para mim
do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver.



Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.
Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»




Marguerite Yourcenar
“O tempo esse grande escultor”
trad. helena vaz da silva
difel 2001

19 outubro 2006

post it / daniel delgado

Coisas de dentro


Os meus delírios,
confissões rimadas
de pessoas mimadas.
Preces ocas, suspiros.

Os meus assédios,
confissões caladas
de pessoas ignoradas.
Monte de sonhos perdidos.

Os meus demónios,
confissões quotidianas
de pessoas esteriotizadas
ultrapassando martírios.

Meus sentimentos doentios,
confissões irritadas
de pessoas maltratadas.
Nenhuma voz, apenas gritos.

E espero para poder falar...




Daniel Delgado

10 outubro 2006

estações

12)





Joan Miró. Dog Barking at the Moon.
1926.Oil on canvas. 73 x 92 cm. The Philadelphia Museum of Art, Philadelphia, PA, USA.





Dog Barking at the Moon, de Juan Mirró




Olhá-la
como um portal de luz por onde passam os sonhos
e chamar-lhe lua

depois
superar o céu até a noite não doer mais
e resolver o enigma da escada
como se cada degrau fosse feito de tempo
e cada minuto tivesse a forma do desejo

e cair na eternidade como o olhar de um cão




gil t. sousa
poemas
2001