Acreditas que te visitaram; claro que te visitaram.
Não consegues decidir em que ponto do tempo
deves alfinetar essa tarde de que te lembras.
Aconteceu o que aconteceu.
que leva à tua margem as verdades murchas
e caídas na correnteza.
Embrulharam em papel-pardo as saudades,
o bolo finto, uma saca de laranjas
das árvores antigas do pomar,
o teu relógio de pulso desafinado,
a correia que agora já fecha,
fotografias dos meninos a sorrir
durante as semanas de ausência.
Queriam que visses quanto os miúdos cresceram.
Atrás deles, em procissão cortês, seguiu chuva miúda,
trovoada de Verão, um rombo nos teus hábitos.
Os teus costados aguentariam uns quantos passeios pelos
corredores da casa, depois poderiam sentar-se no terraço
do primeiro piso, que é tão pequeno, bem o sabes,
mas tem bonitas cadeiras de metal, glicínias, roseiras,
cameleiras, dois sinos para os meninos se divertirem a
imaginar o repique e a urgência da cidade após o aviso
badalado.
dá-se fogo ao lume,
ateamos o presente,
atiçamos a vontade,
sugeriste.
a coisa ruim que vos obrigou à separação necessária
ditada pela ausência:
chamadas por vídeo a cada duas ou três semanas, os teus
cotovelos apoiados sobre as coxas, regaço enxuto, olhos
postos nos objectos, nas máquinas, nos auxiliares e nos
enfermeiros que aparecem diante de ti e exibem rostos
sem boca, mãos de látex, pânico nos gestos,
e invisível, o espaço vazio que se senta no teu colo
todos os dias, a cada segundo.
Os teus meninos.
de te ver arrastado nas enxurradas do contágio.
da batalha, sentado na tua cadeira de vime, num relance
atirado para a linha da frente:
dedos de cortiça, hálito de raposa, rumores nos lábios,
memória à flor da pele, coração de velho,
vácuo crescente nos ossos,
com pés descalços e calosos
a amassar a lama enegrecida
de um horizonte desfeito em fumo
e esboçado a silvos de bala.
se pudesses ver-te da perspectiva de quem não és,
reconhecerias, ali depositados, a tua experiência
e o teu saber; vê-los-ias cada vez mais mínimos,
cada vez mais ausentes, deixados ao abandono:
a galope na fronteira da batalha,
o pequenino que está para nascer, com os óculos de ver ao
perto a enfeitar-te a ponta fina do nariz e o gume estreito
da idade, ignorando a sarabanda, os gritos de ordem,
novo corpo a partir do avesso da pele, que vos inunda os
pulmões e os rins de líquido, de pus, que espalha pequenos
menires de sangue seco pelo sistema circulatório, pelas
vias do coração, que vos deixa rarefeitos por dentro,
e sem máscara que te tapasse o sorriso,
o nariz desocupado,
mergulhado na noite à espera da alvorada,
à espera do baque, mas ignorando o baque,
a jogar à sorte numa batalha de xadrez
armado com pólvora seca
e não mais do que o bico da lapiseira
e a frente esburacada da memória,
e eles, os jovens,
tu, o soldado raso,
e eles, o veneno.
estes ventos negros
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2021