08 fevereiro 2020

jorge melícias / os dedos batem o nome



Os dedos batem no nome e estacam.
Não há profundidade depois disso.
Queria emergir magnífico
do meu fôlego,
cantar sob os foles da língua.
Digo que todo o nome é dançado,
que freme como tocado de dentro.


jorge melícias
a luz nos pulmões
quasi
2000











07 fevereiro 2020

joão miguel fernandes jorge / falava como se um sonho pudesse



Falava como se um sonho pudesse

um sonho não teria tantas árvores
um sonho não as teria tão
suspensas e tão tomadas

que dizia que diziam?
que queriam eles de mim?



joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019








06 fevereiro 2020

alain bosquet / três poemas



1
Em cada ave dormia uma montanha.
Em cada mão o réptil sagrado
Vinha comer o sal. Nas ruas do porto
Um bispo velho interrogava a árvore.
O vinho andava nu, e havia perto do rio
quem chorasse as savanas perdidas
depois do seu encontro com a neve.
Como o fogo lhe faltasse, o feiticeiro
casou com a cidade enquanto ardia.


alain bosquet
trad. de eugénio de andrade
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






05 fevereiro 2020

antónio carlos simão / fiz más decisões




Fiz más decisões,
deixei que o mel doce da minha fé
secasse,
fossilizadas as orações extintas,
imóveis e ainda assim presentes.
Deixei todos os frascos por abrir
a ganhar pó no chão, alguns
ainda embrulhados.
Adiei a curiosidade,
assustei-me com a força para os abrir,
gastei demasiado tempo a sonhar.
            Gasto demasiado tempo a sonhar.
Juro que nunca quis envelhecer, eu juro.
Mas fiz más decisões
e deixei que o mel doce da minha fé secasse.
Fui ficando progressivamente cético e horrível
mente crente nos espelhos corporativos
e demasiado bonito à luz do frasco que inventei, já aberto
e de onde nasci.
Naquele espaço onde o mel nunca seca
e não existem decisões, sequer.
Juro que me arrependo de ter tentado envelhecer
e fiz más decisões
e deixei que o mel
doce da minha fé
secasse.

  

antónio carlos simão
nervo/7
colectivo de poesia
janeiro/março 2020








04 fevereiro 2020

jacques brel / o moribundo



Adeus Emile sempre te quis bem
Adeus Emile sempre te quis bem sabes
Cantámos os mesmos vinhos
Cantámos as mesmas mulheres
Cantámos os mesmos desgostos
Adeus Emile vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que és bom como o pão branco
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Cura sempre te quis bem
Adeus Cura sempre te quis bem sabes
Não líamos pela mesma cartilha
Não seguíamos as mesmas vias
Mas demandávamos o mesmo porto
Adeus Cura vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que tu eras seu confidente
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus Antoine sempre te quis bem
Adeus Antoine sempre te quis bem sabes
Estou lixado por morrer hoje
Ao passo que tu estás bem vivo
E até mais rijo que o tédio
Adeus Antoine vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro com a alma em paz
Porque já que eras seu amante
Sei que cuidarás da minha mulher
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova

Adeus mulher sempre te quis bem
Adeus mulher sempre te quis bem sabes
Vou tomar o comboio de ver a Deus
Vou tomar o comboio que sai antes do teu
Mas cada um toma o comboio que pode
Adeus mulher vou morrer
Não é fácil morrer na Primavera sabes
Mas lá vou para o meu canteiro de olhos fechados mulher
Porque já que por ti amiúde os fechei
Sei que cuidarás da minha alma
E que todos riam
E que todos dancem
E que todos se divirtam como loucos
E que todos riam
E que todos dancem
No dia em que me meterem na cova



jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997






03 fevereiro 2020

adonis / seis notas do lado do vento




5

                Escrevo em árabe. Nesta língua, a presença identifica-se com o invisível. O mundo está aí ausente, embora visível. O homem, segundo esta visão, é um estado continuado de ausência. A verdade reside no seio da língua enquanto desvendar da essência do mundo através das palavras de que Deus fez uso. Neste sentido, o próprio ser é aí uma língua. Os vivos estão adormecidos, hão-de despertar depois da morte. Escrever poesia nessa língua, e segundo o seu génio, é desvelar o invisível e o abismo da ausência que nos separa dele. Escrever poesia é prender-se a dizer uma «coisa», e essa «coisa» em árabe é o próprio abismo e o invisível. Se a poesia tem algum poder de fundar, funda aqui a presença do invisível. A escrita, em árabe, ensina apenas que a pátria não é um lugar, que não se situa em parte nenhuma. Ensina que é ela própria a pátria. Ensinou-me como poderia dizer: o meu corpo é o meu país.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016






02 fevereiro 2020

álvaro de campos / ah! ser indiferente!


Ah! Ser indiferente!
É do alto do poder da sua indiferença
Que os chefes dos chefes dominam o mundo.

Ser alheio até a si mesmo!
É do alto do sentir desse alheamento
Que os mestres dos santos dominam o mundo.

Ser esquecido de que se existe!
É do alto do pensar desse esquecer
Que os deuses dos deuses dominam o mundo.

(Não ouvi o que dizias...
ouvi só a musica, e nem a essa ouvi...
Tocavas e falavas ao mesmo tempo?
Sim, creio que tocavas e falavas ao mesmo tempo...
Com quem?
Com alguém em quem tudo acabava no dormir do mundo...

12-1-1935


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






01 fevereiro 2020

agustina bessa-luís / inverno


  
     De repente, era Inverno; escurecia cedo outra vez, os vendedores de castanhas apareciam e o fumo dos pequenos assadores espalhava-se no ar húmido, ar de cidade à noite, quando toda a gente sabe que tem um lar e o procura. Os jornais eram capazes de ter razão e traziam folhetins completamente conforme os meus gostos: Sem família ou Lucrécia Bórgia. E os manequins das montras abriam a estação com os modelos que pareciam sempre algo reprováveis, mas irresistíveis – isso eram.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008










31 janeiro 2020

yorgos seferis / garrafa ao mar



XII

Três rochedos alguns pinheiros queimados e uma ermida
e mais acima
a mesma paisagem copiada recomeça;
três rochedos em forma de pórtico, enferrujados
alguns pinheiros queimados, negros e amarelos
uma pequena casa quadrada enterrada na cal;
e mais acima muitas vezes ainda
a mesma paisagem recomeça em escadaria
até ao horizonte até ao pôr do céu.

Aqui atracámos o barco para remendar os remos partidos,
beber água e dormir.
O mar que nos amargurou é fundo e inexplorado
e desdobra uma serenidade infinda.
Aqui entre os seixos encontrámos uma moeda
e jogámo-la aos dados.
Ganhou-a o mais novo e perdeu-se.

Voltámos a embarcar com os nossos remos partidos.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





30 janeiro 2020

sylvia plath / berck-plage



I

É então isto o mar, esta enorme suspensão.
Como o remendo do sol evidencia a minha queimadura.

Sorvetes de cores eléctricas, tirados da geladeira
Por raparigas pálidas, andam pelo ar em mãos queimadas.

Por que está tudo tão silencioso, que estarão a esconder?
Tenho duas pernas e movo-me sorridentemente.

As covas na areia destroem vibrações;
Estendem-se por quilómetros, vozes já quase sem som

Acenando sem suporte, metade da altura que tinham.
As linhas dos olhos, escaldadas por estas superfícies nuas.

Bumerangue preso por elásticos, ferindo o dono.
É de admitir que ele ponha óculos escuros?

É de admitir que ele exiba sotaina preta?
Aí vem ele no meio dos apanhadores de cavala

Que se põem como um muro à sua volta.
Agarram nos losangos pretos e verdes como se fossem bocados
     de um corpo.

O mar, que tudo isto cristalizou,
Afasta-se lentamente, como as serpentes, soltando um longo
     e triste silvo.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996





29 janeiro 2020

jorge figueira / era a pessoa mais fria




2  era a pessoa mais fria que se pode imaginar. às vezes
    não tinha olhos. sentava-se aqui em silêncio. o seu
    corpo estabelecia difíceis relações com a mesa,
    as conversas, os cantos. todas as outras pessoas eram
    uma promessa quebrada com o balcão, a cerveja, aquele
    espaço de reunião.
    a desordem era algo exterior, portanto, por dentro,
    infantis peixes jogavam às escondidas, aos polícias
    e ladrões, assegurando paz, equilíbrio.

    sem degraus, sem palavras, sem conflitos.
    como um filme sem legendas.



jorge figueira
hífen 3 out. 88/ mar. 89
cadernos semestrais de poesia
1988





28 janeiro 2020

tomas tranströmer / madrigal




     Herdei uma floresta densa onde raramente ponho os pés. Mas lá chegará o dia em que os defuntos e os viventes troquem de lugares. É então que a floresta se põe em movimento. Não perdemos ainda toda a esperança. Os maiores crimes continuam por desvendar, malgrado o esforço de tantos polícias. Do mesmo modo, algures nas nossas vidas, há um grande amor por revelar. Herdei uma floresta densa, mas hoje entro numa outra, plena de claridade. Tudo o que vive canta, serpenteia, abana, rasteja! É primavera, e o ar que respiramos é fortíssimo. Tenho um exame da universidade do olvido, e as mãos tão vazias como a camisa pendurada na corda de secar roupa.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012







27 janeiro 2020

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)


4

TENS qualquer coisa a ver
Com a noção de Deus,

Água que já não és água,
Poder desprovido de mãos e de instrumentos,

Peso sem emprego
Para quem o tempo não existe.



guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965