09 maio 2019

juan luis panero / enigmas e despedidas




Um gato que mia na noite antes de morrer,
um gato que mia, o seu histérico adeus.
Que segredo, que estranho e banal mistério
a vida nos oculta nesse grito atroz?
Como olhar depois o seu lugar na sombra,
as unhas da morte, a pele da impotência?
Tantos anos a partilhar o destino
que é agora uma cesta vazia,
derrotados arranhões, uns olhos apagados,
o absurdo de tudo, enigmas e despedidas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003






08 maio 2019

césar simón / chegámos muito longe




   Chegámos muito longe,
pois a cidade funda é a cidade do tédio,
palmeiras indolentes,
de arrabaldes e comboios o pó leve.

   O pó e o asfalto
o jasmim e a ferrugem.
Vai fluindo o silêncio,
a essência da vida transparece.

  Arcos rotundos, solitários,
quando impera a tarde.
Sob os vãos hinos triunfam os vãos deuses,
oferece o sem-sentido um sentido solene.

   «O mar e nada mais».
Atrás, anos destruídos;
anos mortos, adiante. Nada interesse.



césar simón
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001







07 maio 2019

e e cummings / xix poemas



[x]

ele não tem que sentir porque pensa
(os pensamentos de outros,entenda-se)
Ele não tem que pensar porque sabe
(que tudo é mau o que tu pensas bom)

porque sabe,ele não pode entender
(por que o Jones não me paga o que ele sabe que deve)
porque não pode entender,ele bebe
(e bebe e bebe e bebe e)

não calvo. (Tosse) Dois olhos pequenos pálidos e manhosos

equilibrados sobre um beicinho quebrado
(dentes lindos eram para dentro do que e fora
de) Vida,encerrais Vós uma maravilha que
esta morte de nome Smith menos estranha?
                                                                               Casado e mente


Assustado;agressivo e:Americano



e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998






06 maio 2019

konstandinos kavafis / dias de 1903




Não voltei a encontrá-los – esses dias tão depressa perdidos…
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto… no anoitecer da rua…

Não os encontrei mais – aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
Esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais.


konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







05 maio 2019

bernardo soares / para compreender, destruí-me.



Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982










04 maio 2019

vasco graça moura / nó cego, o regresso



I
esta é a sombra, o rigor
do coração: nó cego, indesatável
por nevoeiro espesso
ou ténue gaze na distância.

uma obscura (translúcida razão?)
como papel de seda vibra
ou se amarfanha
surda, tu e eu poderíamos

rasgar a sombra intocável?
nenhum sentir distingue
seu intrincado músculo ansioso,
propulsor de sombras e sangue?

nenhum poder é transparente,
ileso? poderíamos?



vasco graça moura
nó cego, o regresso
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






03 maio 2019

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


V

Não falo do indivíduo, do ardor
sensual e sentimental…
outros vícios terá, outro é o nome

e a fatalidade do seu pecado…
Mas há nele tantos outros vícios comuns,
de antes de ter nascido, e um tão grande

pecado objectivo! Os actos
nele ou fora dele nascidos, que o fazem
despertar para a vida, não escapam a uma só

das religiões que na vida existem,
hipotecas de morte, instituídas
para enganar a luz, iluminar o engano.

Se os seus restos se destinam a ser
sepultados no Verano, é católica
a sua luta com eles: jesuíticas

as manias a que habitua o coração;
e ainda mais intimamente: na sua consciência
há astúcias bíblicas… e um irónico ardor

liberal… e a tosca luz, entre náuseas
de dandy provinciano, de uma saúde
provinciana… Até aos ínfimos detalhes

em que se esfumam, num fundo animal,
a Autoridade e a Anarquia… Bem protegido
da virtude impura e da embriaguez do pecado,

defendendo uma ingenuidade de obcecado,
e com quanta consciência!, assim vive o eu: assim
vivo, iludindo a vida, tendo no peito

o sentimento de uma vida que seria esquecimento
dolorido, violento… Ah como
compreendo, mudo neste húmido rumor

do vento, aqui onde Roma é silêncio,
por entre os ciprestes cansadamente revolvidos,
junto de ti, a alma a quem uma inscrição chama

Shelley… Como compreendo o turbilhão
dos sentimentos, o capricho (grego
no coração do patrício, visitante

nórdico) que o engoliu no ofuscante
azul do mar Tirreno; a alegria
carnal da aventura, feita de beleza

e de infância: enquanto a Itália, prostrada
como no ventre de uma cigarra
enorme, escancara brancos litorais,

salpicados, no Lácio, por velados bosques
de pinheiros, barrocos, amareladas
clareiras de eruca, onde dorme

com o membro túrgido envolto nos andrajos, num sonho
goethiano, o rapazinho de Ciociaria…
Sombreados, na Maremma, por rastos deslumbrantes

de sagitários onde se destaca a mancha clara
das avelaneiras, nos carreiros que um pastor
enche, sem saber, da sua juventude.

De uma fragrância alucinante nas enxutas
curvas da Versilia, que para o mar,
emaranhado, cego, volta os estuques claros,

e os leves embutidos dos seus campos
pascais totalmente humanos,
sombrios em todo o Cinquale,

nítidos no sopé das tórridas Apuanas,
vítreos azuis sobre o cor-de-rosa… Semeados de rochedos,
escombros, revolvidos, como por um pânico

de fragrância, na Riviera, húmida,
escarpada, onde o sol luta com a brisa
para dar suprema suavidade aos óleos

do mar… E em redor zumbe de alegria
o interminável instrumento de percussão
do sexo e da luz: tão habituada

está Itália que não treme, como
se estivesse morta em vida: gritam, calorosos,
em centenas de portas, o nome

do amigo jovens de tez morena e
radiosa, por entre a gente
da terra, junto dos campos de cardos,

em sórdidas e minúscula praias…

Irás pedir-me, tu morto austero,
para renunciar a esta desesperada
paixão de estar no mundo?




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005







02 maio 2019

paul éluard / em primeiro lugar



IV

Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
Pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.


paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






01 maio 2019

josé saramago / fraternidade




A qual de nós engano quando irmão
Nestes versos te chamo?
Não são irmãs as folhas que do chão
Olham outras no ramo.
Melhor é aceitar a solidão,
Viver iradamente como o cão
Que remorde o açamo.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








30 abril 2019

alexandre o'neill / amigos pensados: gente de pau e manta



Nunca jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus, sornas e vivos.

O aguardente aquece-lhes a casa,
o tabaco fuma-lhes a prosa.

Quando dormem,
nem a formiga os acorda.

Aceitam trabalho aqui,
Mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
ó minha linda,
gente que pra ti não há.


alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000






29 abril 2019

carlos de oliveira / papel




                Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001













28 abril 2019

natália correia / o livro dos amantes




III
Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e se apagou.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







27 abril 2019

josé de almada negreiros / a invenção do dia claro



[…]

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!

Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

[…]


josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971