07 fevereiro 2019

fernando pinto do amaral / escotomas



2.
Depois da tempestade é mais difícil
continuar fiel ao fogo,
encontrar um refúgio nas cinzas
deste vulcão silencioso. O tempo
devora a minha voz e adormece
todo o amor, todo o medo,
sob o peso de um grito. Não resisto
à luz que se despede
do coração doente – sei apenas
que a verdade se move entre a poeira
de cada corpo, à espera de rezar
uma oração feliz e tenebrosa
no centro da cratera calcinada,
eterno purgatório onde nascem
as cores do meu arco-íris.

  

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






06 fevereiro 2019

marianne moore / que contam os anos?





     Que conta a nossa inocência,
que conta a culpa? Tudo é
     nu, ninguém escapa. E vem de onde
a coragem: a pergunta sem resposta,
a dúvida decidida –
clamando muda, escutando surda – que
na desgraça, mesmo morte,
          os outros incentiva
          e quando sai vencida, agita

     na alma fortaleza? Sagaz
e feliz é aquele que
     aceita a mortalidade
e no cativeiro se ergue acima
da sua posição como
o mar face ao abismo, lutando
por ser livre sem poder,
          achando, na rendição,
          a sua resiliência.

     Condigno, pois, é aquele
que forte sente. Até o pássaro
      cantando se espevita
e todo se endireita. Embora cativo,
declara em canto firme
ser grosseira a satisfação,
ser tão pura a alegria.
          A mortalidade é isto,
          a eternidade é isto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018






05 fevereiro 2019

wislawa szymborska / o céu





Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.

Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.

Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.

Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.

Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.

Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







04 fevereiro 2019

juan luis panero / numa estação de madrugada




Recorda-os,
antes que o álcool os leve
ou a memória os maquilhe e confunda,
antes que sejam sonhos esquecidos,
as marcas de uma pele noutra pele pagadas.

Recorda-os,
além da bruma e da noite,
sob as luzes de néon fantasmagóricas,
diante das vias de metal silencioso,
sem comboios, sem despedidas nem destinos.

Recorda-os,
porque não te esperavam,
e nada te pediam, nem tu a eles também,
porque tudo era inútil, absurdo e desoportuno,
derrotada ternura e sombra da tua vida.

Recorda-os,
e beija outra vez aqueles lábios,
a sua alagada respiração, a língua surpreendida,
a sua frágil matéria húmida,
aqueles lábios que a tua boca imagina.

Recorda-os.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003








03 fevereiro 2019

bernardo soares / chove muito, mais, sempre mais...



Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






02 fevereiro 2019

marguerite duras / textos secretos




Vais pensar que fui eu que te escolhi. Eu. Tu.
Tu que és a cada instante o todo de ti mesmo em
relação mim, e é assim seja o que for que fize-
res, por mais longe ou perto que estejas da minha
esperança.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999







01 fevereiro 2019

inês lourenço / dois cimbalinos escaldados



Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo ainda
acreditávamos ser a maior
razão.

Curto, normal, cheio
o cimbalino, esse negro odor
com moldura branca
numa mesa de café, na cidade
onde habitávamos desde sempre.


inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015








31 janeiro 2019

julio martínez mesanza / quando regressa maio




Quando regressa Maio esqueço sempre
que o inverno me dizimou a hoste. Sonho
com sangue quando Maio me faz jovem
e não conto com o número de mulas
doentes, nem me lembro dos cavalos
que não suportarão outra campanha.
Sou em Maio o meu ser que não detesto
e não essa tardia sombra que medita.
Não me reconheço em Maio. Multiplico
com energia as ofensas e provoco
ao justo e ao injusto, ao estrangeiro,
ao da terra, ao aliado. Mando cartas
injuriosas para todos os lados,
entusiasmo-me quando me devolvem
a injúria e pronta guerra aceitam.
É melhor em Maio sermos insolentes
do que arrastarmos a fama nos torneios.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






30 janeiro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




2

                O abismo ensinou-me que não podemos compreender um problema a não ser por intermédio de um outro problema e através dele, como se o homem não avançasse indo do obscuro para a luz, como é hábito pensar, mas dirigindo-se para uma outra espécie de obscuro, menos espesso. Essa diferença entre duas obscuridades, chamamos-lhe luz. Felizmente para o homem e para a poesia, não existe claridade suficiente para apagar o obscuro no homem e nas coisas. Se a claridade se tornasse senhora do mundo, a vida seria alterada, e a poesia desfeita.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







29 janeiro 2019

yvette centeno / o teu discurso




O que dirias
perante a flor do cacto japonês?
Que é flor
e que o ser flor te perturba
e mais ainda
só floresce uma vez.



yvette centeno
a oriente
edit. presença
1998






28 janeiro 2019

jane hirshfield / natureza morta




Fidelidade de um livro
ao seu lugar na estante
numa natureza morta.



É assim
que continuam os velhos amores.




jane hirshfield
trad. francisco josé craveiro de carvalho
eufeme
magazine de poesia
n.º 4 julho/setembro 2017







27 janeiro 2019

francis ponge / doze pequenos escritos




I
Desculpem esta aparência de defeito nas nossas relações. Nunca saberei explicar-me.

Ser-vos-á impossível considerar-me a cada encontro como um bolo? Agora rio-me de falar disto tão a sério, varo Horatio! Tanto pior! Qualquer que seja vinda de mim a palavra guarda-me melhor que o silêncio. A minha cabeça de morto parecerá iludida pela sua expressão. Isso não acontecia a Yorick quando falava.

II
Forçado muitas vezes a fugir pela palavra, que ao menos eu tenha podido por vezes desfigurar um pouco, revirada por um golpe de estilo, essa bela linguagem, para que em suma ela renomeie Ponge segundo Paulhan.



francis ponge
alguns poemas
tradução de manuel gusmão
livros cotovia
1996






26 janeiro 2019

per aage brandt / o gato agacha-se na gravilha branca



*
o gato agacha-se na gravilha branca e fareja
uma mariposa nocturna porque é noite, e os insectos volteiam
em redor de todas as coisas brancas, como se fossem luzes,
cães e meios de transporte, cantam entre falésias
onde os humanos vivem,
deixamos o espaço às coisas e tapamos com mantas de imagens
os olhos, a noite é mais pesada que os nossos corpos, muito mais
                                                                                          [fria
e muito mais sabedora

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004