11 março 2018

bernardo soares / a maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia...




A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictícia e alheia. A maioria da gente é outra gente, disse Oscar Wilde, e disse bem. Uns gastam a vida na busca de qualquer coisa que não querem; outros empregam-se na busca do que querem e lhes não serve; outros ainda se perdem (...)

Mas a maioria é feliz e goza a vida sem isso valer. Em geral, o homem chora pouco, e, quando se queixa, é a sua literatura. O pessimismo tem pouca viabilidade como fórmula democrática. Os que choram o mal do mundo são isolados — não choram senão o próprio. Um Leopardi, um Antero não têm amado ou amante? O universo é um mal. Um Vigny é mal ou pouco amado? O mundo é um cárcere. Um Chateaubriand sonha mais que o possível? A vida humana é tédio. Um Job é coberto de bolhas? A terra está coberta de bolhas. Pisam os calos do triste? Ai dos pés dos sóis e das estrelas.

Alheia a isto e chorando só o preciso e no menos tempo que pode — quando lhe morre o filho que esquecerá pelos anos fora, salvo nos aniversários — quando pensando [...] e chora enquanto não arranja [?] outro, ou se não adapta ao estado de perda — a humanidade continua digerindo e amando.

A vitalidade recupera e reanima. Os mortos ficam enterrados. As perdas ficam perdidas.

Quando vejo um gato ao sol lembra-me sempre do homem ao sol.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990








10 março 2018

eugénio de andrade / vozes




Às vezes rompe pela casa,
pousa no silêncio,
no pulsar do silêncio.
Que faz ainda
por aqui? Coração de lume
velho – é um dizer.
Por fim corre
para o pátio de outros dias,
junta-se às vozes infantis.
E cantam, cantam,
matutinas.



eugénio de andrade
ofício de paciência
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







09 março 2018

herberto helder / elegia múltipla




VI

São claras as crianças como candeias sem vento,
seu coração quebra o mundo cegamente.
E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema,
pelo terror dos dias, quando
em sua alma os parques são maiores e as águas sujas
param junto à eternidade.
As crianças criam. São esses os espaços
onde nascem as suas árvores.

Enquanto as campânulas se purificam no cimo do fogo,
as crianças esmigalham-se.
Seu sangue evoca
a tristeza, tristeza, a tristeza
primordial.
— Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram
pelos séculos
entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes
e o olhar infinito de quem não possui alma.

Seu grito remonta ao verão. Inspira-as
a velocidade da terra.
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.

— É-lhes dado o pequeno tempo de um sono
de onde saem
assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta.
Dali a vida de um poema tira
por um lado apaixonadamente; por outro,
purificação.
Nelas se festeja a imensidade
dos meses, a melancolia, a silenciosa
pureza do mundo.

Quem há-de pensar para as crianças, sem ter
espinhos na saliva e as vozes
desertas até ao fundo? É vendo-se aos espelhos,
no seguimento da noite,
que as crianças aparecem com o horror
da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes
crianças vigiadoras —
cantando, pensando, dormindo loucamente.

Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas
que a vingança não afaste.
As crianças invasoras percorrem
os nomes — enchem de uma fria
loucura inteligente
as raízes e as folhas da garganta.
Aprendemos com elas os pecados do ar,
a iluminação, o mistério
da carne. Partem depois, sangrentas,
inomináveis. Partem de noite
noite — extremas e únicas.
— E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
                                                Loucamente.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996









08 março 2018

tomas tranströmer / no âmago da europa




Carcaça que sou, flutuo entre duas comportas:
repouso na cama do hotel enquanto à minha volta a cidade desperta.
o bulício abafado e o cinzento do amanhecer penetram no quarto
e devagar transpõem-me para a fase seguinte: a manhã.

Escuto o horizonte. Os mortos querem dizer algo.
Fumam mas não comem, não respiram embora lhes reste a voz.
Como um deles, andarei apressado pelas ruas.
A catedral enegrecida, pesada como uma lua, é maré de águas vivas.



tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012






07 março 2018

josé de almada negreiros / homem transportando o cadáver de uma mulher





Quis-te tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi!



josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971






06 março 2018

josé agostinho baptista / partida





Partirei.
E ao partir, ninguém saberá quem fui,
quantas horas passei, à beira das lápides,
sem pensar em nada.
Cairá o sol sobre o meu peito.
Cairá a escuridão.

Nas planícies do pai,
há um filho que escreve o livro dos órfãos.
O vento move as espigas.
No centeio e no trigo ouve-se um lamento.
Agora sim, direi adeus.


josé agostinho baptista
quatro luas
assírio & alvim
2006






05 março 2018

paul auster / desaparecimentos




5
Diante da parede,

ele adivinha a monstruosa
soma da singularidade.

Não é nada.
E é tudo o que ele é.
E se ele quiser ser nada, deixem-no então  principiar
onde se encontra, e como qualquer outro homem,
aprender o falar deste lugar.

Porque também ele vive o silêncio
que antecede a palavra
de si mesmo.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002






04 março 2018

fernando pessoa / a nuvem veio e o sol parou.




A nuvem veio e o sol parou.
Foi vento ou ocasião que a trouxe?
Não sei: a luz se nos velou
Como se luz a sombra fosse.

Às vezes, quando a vida passa
Por sobre a alma que é ninguém,
A sensação torna-se baça
E pensar é não sentir bem.

Sim, é como isto: pelo céu
Vai uma nuvem destroçada
Que é véu, mau véu, ou quase véu,
E, como tudo, não é nada.

10-9-1934

  
fernando pessoa
novas poesias inéditas
ática
1973







03 março 2018

pedro oom / idade sem razão




Os animais
cuja vivência
são as visitas
que todos temos feito
a girafa
ou o crocodilo
bastam
para romper
a fascinação
idade
cartesiana
tanto
do direito
como
do avesso


pedro oom
actuação escrita
& etc
1980


02 março 2018

pedro gil-pedro / para que ninguém sobreviva ao perdão





Num surto
alastram das várzeas – recidiva
traslação de gárgulas

a desarmar o fogo

no meio
do hangar o homem dirimindo os alçados

o jorro percutivo que o sustém pelas ilhargas.

só ele imagina como desabasse
nas traves de uma cria


pedro gil-pedro
para que ninguém sobreviva ao perdão
cosmorama
2008







01 março 2018

per aage brandt / quando duma coisa


  
*
quando duma coisa
decorre outra
e desta decorre
outra vez a primeira
então a primeira
não vale a pena

*

per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004








28 fevereiro 2018

paulo teixeira / agosto azul





A Grécia podia ser aqui, entre escarpas
que os seus pés sulcaram de degraus
e o compasso marcado pelas ondas no ouvido.
A terra eleva-se dessa costa submersa
para esta fronteira indolor em que vivem,
escoltados por velas que navegam junto
à praia, numa estação celebrada e eterna.

Corpos cunhados na depressão de uma onda
que emergem, na sua franja de espuma,
para a hora vaga de quem os vê, rapazes
com olhos da palidez do céu, deitarem,
um do outro, a cabeça no peito de armas.

Têm por língua um fraseado antigo
e por senha este costume licencioso.
O grito das gaivotas vai-lhes adormecendo
na areia o desejo e a memória de tudo
sob a luz de um sol que sempre esteve aqui.




paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001








27 fevereiro 2018

jorge luís borges / os enigmas




Eu que sou o que agora está cantando
Irei ser amanhã o misterioso,
O morto, morador num silencioso
Deserto sem depois, antes ou quando.
Assim declara a mística. Mas eu
Creio-me indigno do Inferno ou Glória,
Embora nada afirme. A nossa história
Muda tal como as formas de Proteu.
Que errante labirinto, que brancura
Esplendorosa será a minha sorte
Quando me der o fim desta aventura
A curiosa experiência que é a morte?
Quero beber o cristalino Olvido,
Ser para sempre; mas nunca ter sido.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998