25 abril 2014

sophia de mello breyner andresen / se tanto me dói que as coisas passem



Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na busca de um bem definitivo
Em que as coisas de Amor se eternizassem



sophia de mello breyner andresen






aqui posto de comando do MFA


24 abril 2014

paul éluard / liberdade




Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

Liberdade.



paul éluard
trad jorge de sena





23 abril 2014

thom gunn / o mensageiro



Transforma-se este homem num anjo quando fixa
Uma flor vermelha cujo nome ele desconhece.
        A face de veludo, os cabelos de pontas negras?

Os seus olhos dilataram-se como os de um gato à noite.
Os seus lábios entreabrem-se mas não fala
        Daquilo que vê e que assim o completa.

O seu corpo prepara-se para imitar a flor,
Ajoelhando-se e enterrando os dedos dos pés no solo,
        A origem crua, granulosa e acre.

A sua quietude responde como um espelho,
O da flor; ela é a serenidade da chama em botão
        Que abriga dentro de si a plenitude da erva.

Mais tarde as notícias, para se ramificarem de sentido em sentido,
Trazendo as suas versões da flor numa pequena
        Aparência exterior até à sua compreensão.

Entretanto, silencioso e expandindo-se como uma chama,
Ele inclina-se contemplando apenas o exterior:
        Caule firme e rosto sem nome.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



22 abril 2014

edgar lee masters / sónia, a russa



Eu, nascida em Weimar
de mãe francesa
e pai alemão, um homem muito culto, professor,
fiquei órfã aos catorze anos,
e tornei-me na dançarina que em todas as avenidas de Paris
era conhecida como Sónia, a Russa.
Fui amante, no início, de vários duques e condes
e, mais tarde, de artistas pobres e poetas.
Aos quarenta, passée, rumei a Nova Iorque
e conheci no navio o velho Patrick Hummer,
forte e de rosto corado, apesar dos seus sessenta anos,
que regressava após ter vendido um carregamento
de gado em Hamburgo, na Alemanha.
Vim com ele para Spoon River e aqui vivemos
durante vinte anos ─  todos pensavam que éramos casados!
Este carvalho junto à minha campa é o retiro favorito
dos gaios azuis que palram e palram, todo o dia.
E por que não, se até as minhas cinzas se riem
quando pensam nessa coisa tão cómica a que chamam vida?



edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



21 abril 2014

luís filipe parrado / partes de um todo



Esta tarde, sentado num banco do jardim,
tentava ler um livro difícil
enquanto esperava por ti.
O livro tornava mais dura, mais penosa, a espera.
Então levantei os olhos das páginas,
pousei o livro, vi um homem novo
aproximar-se e passar à minha frente
com um saco de plástico
com maçãs vermelhas numa das mãos
e uma caixa de cartão, com ovos, na outra.
O saco de plástico era transparente
e revelava nitidamente o esplendor e a forma
perfeita das maçãs, todas muito juntas
como partes de um todo.
Não consegui deixar de as olhar,
e tu chegaste logo de seguida.
Só agora, depois de jantar
e da loiça lavada, me lembrei do livro
que ficou no banco do jardim.



luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



19 abril 2014

álvaro de campos / cruz na porta



Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,  
Que subitamente, como uma sufocação, me aflige  
O coração que, de repente, 
Entre o que vive, se esquece. 
Não sei qual é o sentimento 
Que me desvia do caminho, 
Que me dá de repente 
Um nojo daquilo que seguia, 
Uma vontade de nunca chegar a casa, 
Um desejo de indefinido. 
Um desejo lúcido de indefinido. 
   
Quatro vezes mudou a 'stação falsa 
No falso ano, no imutável curso 
Do tempo consequente; 
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde, 
E não sabe ninguém qual é o primeiro, 
Nem o último, e acabam.

  

álvaro de campos




18 abril 2014

hans-ulrich treichel / minotauro I



Quando eu ara novo errava
errava pelos longos corredores sem sombra
do meu palácio e uivava como o vento
nas florestas. Agora estou aqui, neste
chão arenoso, à espera: há-de vir alguém,
de machado à cintura, para me rachar a cabeça.
Mas eu só ouço a minha respiração arrastada e
às vezes um restolhar entre as pedras.
Cansado da espera e cego, como hei-de
encontrá-lo, a esse único hóspede?



hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994



17 abril 2014

josé miguel silva / esconde-esconde




A nossa vida, libertada, pode agora
começar, dissemos, com o optimismo
de quem inaugura um abrigo decente
e se pretende a salvo das cargas
do mundo. A salvo? Lá mais para
diante se verá que não é bem assim.
Mas por enquanto não pensemos nisso.
Apreciemos a herança de cada tarde,
quando o oiro do crepúsculo acumula
sentimento sobre muros tão perfeitos
que podiam estar no British Museum
e nenhuma convulsão nos prende a vista.

  

josé miguel silva
serém, 24 de março
averno
2011




16 abril 2014

luis muñoz / esta



Esta é a noite
com seu dorso de iguana.
Não penso ter medo dela
nem pelo que conjura
nem pelo que ilumina.

Teu medo não acaba sem o meu
quando são uma força.



luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004



15 abril 2014

paul éluard / ela está de pé nas minhas pálpebras



Ela está de pé nas minhas pálpebras
com os dedos nos meus entrelaçados.
Ela cabe toda em minhas mãos,
ela tem a cor dos meus olhos
e desaparece na minha sombra
como uma pedra sobre o céu.

Tem sempre os olhos abertos
e não me deixa dormir.
Os sonhos dela à luz do dia
fazem os sóis evaporar-se,
fazem-me rir, chorar e rir,
falar sem ter nada a dizer.




paul éluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote
1977




14 abril 2014

konstandinos kavafis / desideri


1
DESEJOS
Como corpos belos dos que morrem sem ter envelhecido
— e são guardados, em lágrimas, num mausoléu magnífico,
com rosas na fronte e com jasmins aos pés —
assim os desejos são, desejos que esfriaram
sem serem consumados, sem que um só fruísse
uma noite de prazer, ou uma aurora que a lua inda ilumina.



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



13 abril 2014

miguel martins / provavelmente


Provavelmente, a próxima vez que ouvires falar de mim
será quando te disserem que morri
e que morri por minhas próprias mãos
(isso acontece).

Isso acontece do outro lado da ternura,
onde ela é demasiada e coisa rara,
vermelha e branca, ou seja, cor-de-rosa
quase transparente.

São coisas explicáveis e que não carecem de explicação
(já não),
como os incêndios, a fadiga extrema
ou o cheiro agreste da benzina.

São coisas da natureza dos comboios que passam
a alta velocidade
sem se importarem com os ratos e as flores
que nos carris fazem a sua lida.

È a morte,
uma coisa que tudo simplifica.


miguel martins
resumo
a poesia em 2012
documenta
2013