12 novembro 2013

josé gomes ferreira / todas as noites toca um telefone na lua


LIX

Todas as noites toca um telefone na Lua.
Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:
Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S. O. S! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
— e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.

Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
— e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares  de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.

Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
— e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S. O. S.! S. O. S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...

E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos,
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!



josé gomes ferreira
poesia III
1943-1944-1945
portugália
1971




11 novembro 2013

seamus heaney / o mestre



Ele vivia em si próprio
como um corvo numa torre sem telhado.

Para me aproximar eu tinha de escalar
longas e agrestes muralhas desertas
e não estremecer, nem erguer o olhar
à procura de um olhar vigilante
no canto onde ele tivesse o seu retiro.

Deliberadamente ele abria
o seu livro do segredo
uma página de cada vez
e nada era arcana, só as velhas regras
que todos tínhamos inscrito nas lousas.
Cada carácter estampado no pergaminho, seguro
no seu volume e medida.
A cada máxima dado o seu espaço.

Diz a verdade. Não tenhas medo.
Noções duradouras, obstinadas,
como martelos e cunhas de pedreiros
comprovados pelos rigores do seu uso.
Quais cumeeiras onde se repouse
no refrigério de uma nascente.

Como me senti frágil ao descer
as escadas sem protecção, contra a muralha,
escutando o propósito e a empresa
lá em cima, num golpe de asa.



seamus heaney
tradução de rui carvalho homem



10 novembro 2013

edwin arlington robinson / richard cory



Quando Richard Cory ia à cidade,
As pessoas na calçada se voltavam para ele;
Era, da cabeça aos pés, um cavalheiro,
Os traços nítidos, senhorialmente esbelto.

Sabia vestir-se, mas sem afectação,
Quando falava era sempre muito humano;
Todavia, o coração acelerava-se ao ouvi-lo dizer: “Bom dia!”
E ao andar dir-se-ia que tinha uma auréola.

Era rico, sim, mais rico do que um rei
E admiravelmente destro em todas as artes;
Nós, enfim, não nos cansávamos de supor
Que estar no seu lugar seria mais do que um sonho.

E assim trabalhávamos, aspirando à luz,
A maldizer o pão, vivendo quase à míngua:
E, numa calma noite de estio, Richard Cory
Foi para casa e estourou os miolos.



edwin arlington robinson
(e.u.a., 1869-1935)
tradução de breno silveira



09 novembro 2013

eugénio de andrade / é quando a chuva cai, é quando




É quando a chuva cai, é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho, dele fizessem
não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

  
eugénio de andrade




08 novembro 2013

augusto meneghin / boletim meteorológico do amor




nada de ser perfeito,
medir as coisas pela fita métrica
e dizer te amo demais. a maresia,
o ritmo bastam para solucionar
estes desencontros habituais dos lábios.
ninguém precisa amar um estofado
cuja cor nos obriga a alegria.
é insuportável que a louça esteja
sempre limpa e guardada no armário.
pela manhã é bom que a xícara
tenha um café seco em seu fundo
onde se enxerga um mapa-múndi das
brigas desde o início de nossa relação.
sim, viver é insuportável se não houver
ao menos uma chuva que destrua parte
da casa ou deixe uma estrada de barro
pela sala de estar. outra coisa misteriosa
é como gritar sem que ninguém perceba,
sofrer por alguma desconfiança tola
e sorrir escondido quando o destino
nos mostra que a imaginação humana
não passa de um alçapão bem elaborado.
como investigar uma beleza de bruços?
seduzir com algum filtro secreto
estando com um pijama rasgado?
e conciliar a aliança com essa vontade
insaciável de despir outras pessoas?
em algum momento avançado da velhice
talvez os orgãos parem de funcionar
e uma ereção torne—se um evento glorioso,
quem sabe? morrer antes não é má ideia
se colocarmos o abandono como única possibilidade.
nenhum asilo com cerca cor de rosa
conseguiu me convencer que o corpo pode
esperar o fim depois da poesia.
mas não é curioso como o amor
nos conduz envolventemente
por uma linha temporal inventando
imagens de morte,
esquecimento e abandono?
a cor, neste caso, é velocidade.
o botão da camisa, um pretexto,
a gema mole, um desgosto,
o cachorro, um dilema,
o sexo, um hábito.
por que este capítulo de ventos
ainda é surpreendente?
já não basta de poemas, literatura,
psicologia e traição?
por que os olhos ainda brilham depois
de tantos anos secando lentamente
e as roupas no varal sendo molhadas
por deus quem as esqueceu novamente?
vai longe o balão
tocar o teto de uma nuvem.
é sempre assim.

  

augusto meneghin
euOnça
ano_um_volume_um
editora medita
2013




07 novembro 2013

thom gunn / o concerto ao ar livre



Na orla
da compreensão
está o segredo.

Reconheces não
o seu conteúdo, mas
o facto que está
lá para ser reconhecido.

O pó levantado
por vendedores e dançarinos
lança reflexos no ar calmo
onde fica suspenso
como se nunca fosse pousar.

O segredo
é ainda segredo

não é uma proposição:
está em encontrar
o que liga o homem
à música, aos
ouvintes, ao nevoeiro
no topo do eucalipto,
ao pó descoberto no bocal
e, depois, em viver um instante
nessa luminosa intercepção,
difundida no centro
como uma aranha branca de jardim
tão tranquila
que a julgas
ter-se tornado a sua própria teia,

um deus existindo
apenas na sua criação.




thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993



06 novembro 2013

gil t. sousa / memória


21

e vinha a luz
e guardava-te

e eu guardava-te
também

em lugares mais seguros
que fotografias
ou poemas


gil t. sousa
água forte
2005



05 novembro 2013

cesare pavese / paisagem VI



Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.

A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.

Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.

Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.



cesare pavese
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997




04 novembro 2013

heinrich heine / bom conselho




Põe sempre os nomes aos bois
Nas histórias que contares.
Ou logo os burros depois
Se queixam de os retratares:

"Mas são as minhas orelhas!
Este azurrar é o meu!
Se estas são minhas guedelhas!
Ai este burro sou eu!

Não me nomeie ele embora,
Toda a Pátria vai agora
Saber-me por burro, hin-hã!
Ai que eu, hin-hã, hin-hã!"

- Quiseste a um burro poupar...
Logo doze hão-de zurrar.



heinrich heine
poesia de 26 séculos
segundo volume
de bashô a Nietzsche
trad. jorge de sena
editorial inova
1972




03 novembro 2013

álvaro de campos / acordar da cidade de lisboa



Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
Acordar da Rua do Ouro, 
Acordar do Rossio, às portas dos cafés, 
Acordar 
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 
 
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.  
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se  
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,  
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 
 
Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,  
Seja 
 
A mulher que chora baixinho 
Entre o ruído da multidão em vivas... 
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
Cheio de individualidade para quem repara... 
O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
Tudo isto tende para o mesmo centro, 
Busca encontrar-se e fundir-se 
Na minha alma. 
 
Eu adoro todas as coisas 
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
Tenho pela vida um interesse ávido 
Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
Para aumentar com isso a minha personalidade. 
 
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
Como uma criança a quem a ama beija. 
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
Do que as que vi ou verei. 
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 
 
Dá-me lírios, lírios 
E rosas também. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também, 
Crisântemos, dálias, 
Violetas, e os girassóis 
Acima de todas as flores... 

Deita-me as mancheias, 
Por cima da alma, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 

Meu coração chora 
Na sombra dos parques, 
Não tem quem o console 
Verdadeiramente, 
Excepto a própria sombra dos parques 
Entrando-me na alma, 
Através do pranto. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 
 
Minha dor é velha 
Como um frasco de essência cheio de pó. 
Minha dor é inútil 
Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
E minha dor é silenciosa e triste 
Como a parte da praia onde o mar não chega. 
Chego às janelas 
Dos palácios arruinados 
E cismo de dentro para fora 
Para me consolar do presente. 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também... 
 
Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
Como um palco deserto. 
 
Por isso, não te importes com o que eu penso, 
E muito embora o que eu te peça 
Te pareça que não quer dizer nada, 
Minha pobre criança tísica, 
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
Dá-me rosas, rosas, 
E lírios também..


álvaro de campos





02 novembro 2013

sylvia plath / ovelhas na névoa



As colinas penetram na brancura.
Homens ou estrelas
olham-me com tristeza, desiludo-os.

O comboio deixa um rastro do seu alento.
Oh vagaroso
cavalo da cor da ferrugem.

Cascos, dolorosos sinos...
Toda a manhã
a manhã obscureceu

uma flor abandonada.
Os meus ossos absorvem a quietude, longínquos
campos enternecem o meu coração.

Ameaçam
levar-me para um céu
sem estrelas e sem pai: uma água negra.


sylvia plath
pela água
tradução de maria de lurdes guimarães
assírio & alvim
1990




01 novembro 2013

sarah kane / falta



B   Aquilo que eu receio acaba por me acontecer.
C   Odeio-te,
B   Preciso de ti,
M   Preciso de mais,
C   Isto tem de mudar.
A   Toda a completa e previsível e enjoativa futilidade que é a nossa relação.
M   Quero uma vida verdadeira,
B   Um verdadeiro amor,
A   Com raízes e a crescer à luz do dia.
C   O que é que ela tem que eu não tenho?
A   A mim.
B   As coisas que eu quero, quero-as contigo.
M   Não. Sou. Eu.
A   Não há segredos.
M   Só há cegos.
A   Apaixonaste-te por uma pessoa que não existe.
C   Não.
M   Sim.
B   Não.
A   Sim.
C   Não.
B   Não.
M   Sim.
C   Eu sabia,
B   Eu sabia,
C   Por que é que não consigo aprender?
A   Não aceito uma vida nas trevas.
B   Não olhes para o sol, não olhes para o sol.
C   Amo-te.
M   Tarde de mais.
A   Acabou.



sarah kane
teatro completo
trad. pedro marques
campo das letras
2001



31 outubro 2013

natércia freire / a morte de calar



As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras. À morte de calar.
Do alfabeto meu ignoro as cristalinas
Formas de aladas letras nestes versos finais.
São fantasmas de sol. São fantasmas de sede
Que chegam alta noite para nenhum lugar.

Decifro nas entranhas das trevas migradoras
O solstício da vida além da morte clara.
Mas quem me vem cegar, com setas voadoras
Nega-me agora a paz das secretas paisagens.

Meus Irmãos de astronaves, guiadas por um morto,
Que me esperam e estão, que me cantam e falam.
Que na vazia Cruz crucificam meu corpo
E abandonam a flor, mesmo a meio da sala.
À janela rasgada, para as cinzentas águas,
Encostam-me, sem olhos, e deixam-me ficar.

Não tenho nada mais a escrever sobre as ondas.
E mesmo que tivesse, ninguém leria o mar.



natércia freire
foi apenas ontem
1977-1987