31 janeiro 2013

concha garcía / h. h. despede-se





Sou redonda e pouco bela.

A natureza concedeu-me
Uma leve camada de pele
Que se alegra de sol.

Esfolam os animais
dotados varões que nas suas mãos
contabilizam a sorte
num promontório de sábios.

A minha mãe é a mesma da fotografia.
Não se queixa do frio
E lamenta-se das escadas
Que sobe para a igreja
Húmida nos cânticos, lenços
Hasteados. Chora o quarto
Da fotografia. É um poeta
Com vários filhos. Diz
Que quando perdes alguém nunca
É exactamente
A mesma pessoa quem regressa.




concha garcía
la rambla
córdoba
1956
(versão minha)


30 janeiro 2013

salvatore quasimodo / e de repente é noite




Cada um está só sobre o coração da terra
Trespassado por um raio de sol:
E de repente é noite.




salvatore quasimodo 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de ernesto sampaio
assírio & alvim
2001




29 janeiro 2013

carlos saraiva pinto / valerá a pena escrever a neve




valerá a pena escrever a neve
em carreiros de água,
como se a noite fosse o líquido
que obedece às películas da distância.

a impressão ágil da sombra
que produz o efeito das tílias
e o sossego longínquo
do nada iluminado.

sobre a boca encontrarás
o sinal do silêncio

a sua mãe terrestre
que esquece as ervas,
os socalcos leves
que chegam ao rio
mortos em verbo.

valerá a pena
a asa envolvente do jasmim
o anjo insubmisso do trigo,
ou o espelho sonoro
que guarda a metafísica dos caminhos.

como o céu e o carvalho milenar,
o leito é isento de mágoa,
e a porta dos peregrinos
busca a religião da luz.

ouve e repara a teimosia
do vinhático
em perfumar o ar.

é inútil o tacto da boca.

descerás
pelos campos subterrâneos da névoa
e crescerá em ti
o profano esquecimento de tudo.




carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001



28 janeiro 2013

györgy somlyó / fábula da flor artificial





São tal e qual como as verdadeiras, seria de esperar que falassem.
Simplesmente não falam.
São belas como as verdadeiras rosas.
Mas um pouco mais belas.
Com mais plenitude.
Todas as espécies estão presentes. E cada qual a mais perfeita.
Do pénis do botão fechado aos lábios desabrochados das pétalas.
As que estão semiabertas, as que o estão totalmente.
E a gama das cores do amarelo profundo ao quase branco. 
Iguais hoje àquilo que foram ontem.
E ainda iguais amanhã.                                                                                                  
Ignorando o tempo e dele ignoradas.
Como elas zombam de ti, meu antigo desejo:
Anotar a álgebra de uma rosa do irradiar ao declínio.
 
Não se pode viver com uma rosa que não murcha.




györgy somlyó
poemas
tradução de egito gonçalves



27 janeiro 2013

marguerite yourcenar / e tu, vais-te embora?





e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.


  


marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



26 janeiro 2013

gabriela mistral / uma palavra




Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
ainda que o coice do sangue me empurre.
Se a liberto, incendeia pastagens,
degola cordeiros, faz cair os pássaros.

Tenho que a desprender da minha língua,
encontrar um buraco de castores,
ou sepultá-la com cal e massa
para que não esconda como a alma, o voo.

Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça pelo meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, e se prenda às suas tranças
ou se esfregue e abrace no pobre matagal.

Eu quero lançar-lhe violentas sementes
para que numa noite a cubram e afoguem
sem dela deixar o pó duma sílaba.
Ou cortá-la assim, como a víbora
a meio se corta com os dentes.

E voltar a minha casa, entrar, adormecer,
já cortada, já dela separada,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida de sono e esquecimento.

Sem saber mais que tive uma palavra
de iodo e alúmen entre os lábios,
nem me  poder recordar de uma noite,
de uma morada num país alheio,
da armadilha ou viga na porta,
da minha carne a andar sem a sua alma.

  



gabriela mistral
lagar
(versão minha)
santiago do chile
1954 


25 janeiro 2013

luís miguel nava / não muita vez




Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.




luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
onde: a nudez
publicações dom quixote
2002



24 janeiro 2013

hans-ulrich treichel / recaída




De vez em quando uma recaída
na fumarada dos blues,
nos uivos do saxofone
de não sei quem.
De quando em quando um dos livros
que estão em cima do guarda-
-fato. Há dias Camus
caíu-me aos pés. Meu Deus,
que belos tempos, quando tudo
era ainda sem sentido e não
me doíam as cruzes.

  


hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994


23 janeiro 2013

cecília meireles / lua adversa




Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha


Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.


E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...



cecília meireles



22 janeiro 2013

antonio gamoneda / geórgica


  

Entre o estrume e o relâmpago escuto o grito do pastor.

Ainda há luz sobre as asas do gavião e eu desço às fogueiras húmidas.

Ouvi o sino da neve, vi o fungo da pureza, criei
o esquecimento.




antonio gamoneda
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001



21 janeiro 2013

michális ganas / pancadas surdas


  

É obra conhecer as nossas dificuldades
articular a alma
num problema difícil de palavras-cruzadas,
umas vezes na vertical, outras na horizontal,
passando a cada passo
por uns grandes quadrados negros,
tropeçando em amigos esquecidos.
Circunspectos habitualmente
por vezes insinceros
cheios de marcas de pancadas surdas.
Perguntamos como foi
e uns dizem
que escorregaram na banheira
e outros dizem
que escorregaram na rua,
esta terra anda cheia de cascas de banana.




michális ganas
(n. 1943)
«akáthistos deipnos»
atenas, 1985
tradução de manuel resende



20 janeiro 2013

fernando alves dos santos / dois poemas da tranquilidade




I
Deve haver uma maneira tranquila
uma tranquilidade
uma certeza.
Deve haver uma febre
uma febre que seja, quando menos,
que nos dê olhos para ler tudo.
Depois dizem que há uma salvação...

Da minha infância
não guardo agora senão o chão que piso
e esse não chega.
Talvez a minha face
o meu vulto
a sombra
possam servir de algo.
Mas não.

Assim sem alegria
arrefecido, antigo
como posso comover-me
arder exausto
ou beijar o ar
o ar simplesmente
enleado!


II
Porque não posso senão trazer esta humildade
como posso dar-me ou pedir-me
se me pedem e me dão
dizendo fazê-lo por uma esperança.
Mas eu vejo
o que a morte me tem sido para que veja
e não respondo ao que imagino
porque sei que só posso desejar o que desejo.




fernando alves dos santos
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998



19 janeiro 2013

manuel de freitas / 5 010509 001229




É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato.
É tímido, inseguro e - por isso mesmo -
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.

Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.

A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.




manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001