07 julho 2012

leonardo chioda / azul antigo




consentir azulejos depende de leituras e mais leituras
das entranhas dos mares
das memórias do ar, de alguns
marinheiros

talvez ainda recitar uma canção aos pórticos
beber das fachadas aquáticas.
o magma
o caminho de velas

o encoberto é sempre novo
vida ladrilhada,
mensagem voltada [não ao barco à garrafa]
intocada
é o que chamam de piso estrelado de alma

emula-se a criatura do sal
as algas, aquela certeza de cronologia incerta mas
às vezes jornada

vozes tabuleiros de espuma
vítrea
as medusas
chegando perto do coração netuno

solidifica-se o tom e cimenta
a opera prima no corrimento de uma nação
ao longo das tempestardes.

  


leonardo chioda




06 julho 2012

thom gunn / blackie, o rembrandt eléctrico


  


Espreitamos pela frente da loja enquanto
Blackie desenha estrelas uma igual

concentração nesses rostos,
o seu e o do jovem. A mão

é firme e certa;
mas o rapaz não a vê

pois os seus olhos seguem o ponto
que toca (movimento rápido e escuro!)

um braço ainda puro abaixo
da sua manga arregaçada: sustém a respiração.

… Agora que está terminado, ele
paga com algumas notas a Blackie

e sai com uma ligadura no
braço, sob a qual cintilam dez

estrelas, pendendo de um cacho espesso
e azul. Agora ele é como as estrelas.





thom gunn
a destruição do nada e outros poemas
trad. maria de lurdes guimarães
relógio d´água
1993


05 julho 2012

diogo vaz pinto / estávamos a esquecer-nos tão depressa…






Estávamos a esquecer-nos tão depressa porque é
que a morte era uma ideia assim
tão triste, quando apagámos um nome
da lista de contactos
no telemóvel e nos tentámos lembrar
de coisas como o som da sua voz, ou de como
gostaria de ser recordado,
aliás, (a palavra certa é outra) esquecido.

Então Abril chega e é só mais um mês,
e a primavera rebenta cada vez mais distante
dos nossos gestos. Não contamos os cabelos,
mas vê-se bem que são cada vez menos
e a juventude, essa foi uma piada que na altura
não entendemos, e agora é já um pouco tarde
para nos começarmos a rir.

A manhã abre um parêntesis enquanto ponho
a cha1eira ao lume, pego num livro
que larguei ali. Aborreço-me
com os temas elevados e o modo inspirado
como trocam impressões as personagens
deste escritor.
Gostava que Deus existisse e nos visse assim,
de pijama na cozinha, remelosos e vazios,
à espera da primeira chávena de café
e de algum twist no enredo dos dias
que vieram até aqui.

De volta ao quarto onde dorme ainda
a cinderela da noite passada,
vou rabiscando umas linhas, uma metáfora
 molengona, a ver se colo duas estrofes
que não se entendem entre elas.
Por motivos óbvios penso na mão
que subiu pela saia da Mona Lisa
e lhe ensinou aquele sorriso.
É necessário ter tacto com coisas destas.

A gata borralheira finalmente acorda.
Falamos durante alguns minutos que
não consigo passar para aqui
e, depois de umas tiradas
dessas que vêm nos manuais, deixei-me des-
contrair, e vindo de uma rápida associação de ideias
fui meter o pé numa piada de mau gosto,
um parque de infância com muitas crianças,
todas tão indesejáveis, e uma recomendação
relativa ao uso de contraceptivos.

Ela demorou algum tempo a organizar-se,
deixou-me um olhar cheio de barcos a afundar
e foi-se, à procura de outra cama e de um príncipe
mais inclinado para finais felizes, ainda que
de curtíssima duração.

Estas coisas acontecem por uma boa razão,
acho eu. Mas o meu timing continua a não ser
dos melhores. Até por aí
me achego mais a versos, nestes cadernos
de exercícios onde marcamos encontros às cegas,
em lugares onde às tantas até é indiferente
se mais a1guém virá ou não.

Em que é que estás a pensar?
Tira uma nota mental, espera, tenta enviar
por telepatia. Ou trauteia uma canção qualquer,
uma fácil e pode ser que me fique no ouvido.
Sabes que dizem que é preciso matar o autor
para que o leitor possa nascer. Anda,
mata-me um pouco mais...
De qualquer modo não tenho já
muito por onde ir. Agora estou para aqui,
com este coração meio-deixa-andar,
lambido por suores frios, entre esperma e cinzas
nestes lençóis, nas gengivas deste fim de manhã,
escrevendo, passeando, como quem assobia
e tem agarrado pela trela algum abismo,
um desses animais que apanham o que atiramos
e vão suportando a nossa companhia.





diogo vaz pinto
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



04 julho 2012

allen ginsberg / uivo por carl solomon (fragmento)





  I


  Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura, esfaimadas
  histéricas despidas,
  arrastando-se através das ruas dos negros ao alvorecer em busca de uma dose
  enfurecida,
  hipsters de cabeça de anjo ardendo pela anciã ligação celestial ao
  dínamo de estrelas na maquinaria da noite,

  que de pobreza esfarrapada e de olhos vazios e mocados se sentaram alto fumando na
  escuridão sobrenatural de apartamentos de água fria flutuando através dos
  topos das cidades contemplando jazz,

  que destaparam os seus cérebros ao Céu debaixo do El e viram anjos Maometanos
  cambaleando nos tectos iluminados das moradas,

  que passaram através das universidades com olhos descontraídos radiantes alucinando
  com a tragédia de Arkansas e a luz de Blake por entre os escolásticos da guerra,

  que foram expulsos das academias por loucura & publicação de odes obscenas na
  janela do crânio,

  que se acobardaram em quartos por barbear em roupa interior, queimando o seu
  dinheiro em cestos de papéis ouvindo o Terror através da parede,

  que foram presos nas suas barbas públicas regressando através de Laredo com
  um saco de marijuana no cinto para Nova Iorque,

  que comeram fogo em hotéis baratos ou beberam terebintina em Paradise Alley,
  morte, ou purgaram os seus torsos noite após noite
  com sonhos, com drogas, com pesadelos ambulantes, álcool e picha e
  tomates sem fim,
  ruas cegas incomparáveis de nuvem estremecendo e relâmpago na mente
  saltando em direcção a postes do Caminho de Ferro de Canada & Paterson, iluminando todo   o mundo imóvel do Tempo entre eles,
  solidificações de paredes de Peiote, árvore verde de quintal traseiro no amanhecer de
  cemitério, embriaguez de vinho sobre os telhados, burgos de montras frontais de passeios ganzados em carros roubados
  no carrossel de néon luz de tráfico cintilante, sol e lua e vibrações de árvore no crepúsculo invernoso rugindo de Brooklyn,
  declarações de cinzeiro e luz da mente de rei generoso,

  que se acorrentaram a carruagens do metropolitano pelo percurso infindo de Battery
  ao Bronx sagrado em benzendrina até que o ruído de rodas e crianças
  os derrubassem estremecendo de bocas escancaradas e aridez desancada de
  cérebro todo drenado de brilho na lúgubre luz do Jardim Zoológico,

  que se afundaram durante toda a noite na luz submarina do restaurante Bickford
  flutuando depois para a saída e sentaram-se fora através da tarde cerveja morta em Fugazzi desolado,
  ouvindo o romper do destino na jukebox de hidrogénio,

  (...)


  

  allen ginsberg


03 julho 2012

luís filipe parrado / o que mais amo



  

Não sou capaz de estranhas paixões
e amo, como muitos, o vento forte
que agita a roupa estendida nas cordas,
as bicicletas ferrugentas
de pneus furados
esquecidas em garagens e arrecadações,
a água fresca que mata a sede
ao mais miserável dos homens.
Mas se, como outros, amo os dias de intensa luz
e o descuido dos pássaros no ar,
ninguém ama como eu
as estrias do teu ventre,
a primeira casa de dois filhos.
De todas as coisas prodigiosas que conheço
são elas o que mais se parece
 com os rasgos abertos por um arado
na terra crua deste mundo.




luís filipe parrado
resumo
a poesia em 2011
assírio & alvim
2012



02 julho 2012

nuno travanca / os pássaros dissertam sobre o reflexo


  


os pássaros dissertam sobre o reflexo
esvoaçam noite afora

por cima do quarto
sobre corpos profusos

recordam todos os quartos
que submergiram

não se afastam das costas

e têm ondas a crescer no peito
que nunca foram senão cultivadas

onde se suspendem [no lago]
há peixes espectro
vários reflexos e luzes estudo

se atentos
ocupam-se de ninhos

e seguem sempre viagem
apesar de






01 julho 2012

rui costa / o pão




Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar.





rui costa
a nuvem prateada das pessoas graves
quasi
2005




30 junho 2012

jean genet / uma solidão mortal






               (...)

               ...«uma solidão mortal»...

               Na taberna podes dizer graças,
               brindar com quem quiseres, qualquer um.
Mas o Anjo anuncia-se e deves isolar-te
               para o receber. Para nós, o Anjo é a noite
               que desceu à pista fulgurante.
               Que a tua solidão paradoxalmente se ilumine toda
               e pouco importe a escuridão feita de milhares de olhos
               que te julgam, temem e esperam que caias;
               vais dançar sobre e dentro de uma solidão deserta,
               de olhos vendados, se possível com as pálpebras agrafadas.

               Mas nada - nem mesmo aplausos ou risos -
               pode impedir-te de dançares para a tua imagem.
És um artista - ai de mim - não podes recusar-te
               ao precípicio monstruoso dos teus olhos.

               Narciso dança?

               Sim, ma sé coisa totalmente alheia à graça sedutora,
               ao egoísmo e amor de si próprio.

               E sendo a Morte, em pessoa?

Deves dançar sozinho. Empalidecido, na ânsia
               de agradar à tua imagem:
               ou a tua imagem é quem dança para ti.

               (...)






jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984







29 junho 2012

david gonzález / a caminho das sentinas







As ratazanas.

As da prisão.

A que pegámos
fogo
no centro do pátio.

Arrastavam pelo chão
com o seu corpo coberto
de chamas,
a camino das sentinas.

O Papuchi dizia:

Isso é porque
as grandes putas
sabem
que nas retretes
água

Não acredito.

Arrastavam-se nessa direcção
por ali terem a sua casa
por quererem morrer
cercadas pelos seus.

Como se fossem
seres
humanos.

Não importa,
que me lembre,
nenhuma
conseguiu
chegar.

Nenhuma.

Nunca.

Chegar.




david gonzález
poesia espanhola, anos 90
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



28 junho 2012

josé régio / cântico negro






"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!





josé régio


27 junho 2012

jorge fallorca / eu conheço uma música frágil como a chuva…


  

Eu conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto leio o que escrevi.

Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio, esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto, à espera que chovesse.

Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar não existe, ou não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar.




jorge fallorca
telhados de vidro nº. 11
averno
2008




26 junho 2012

josé carlos ary dos santos / estigma


  


Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.





josé carlos  ary dos santos 




25 junho 2012

vicente huidobro / o espelho de água





O meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e afasta-se do meu quarto.

O meu espelho, mais profundo que a orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na muralha
E no meio dorme a tua nudez ancorada.

Sobre as suas ondas, debaixo de céus sonâmbulos,
Os meus sonhos afastam-se como barcos.

De pé sobre a popa ver-me-eis sempre a cantar,
Uma rosa secreta cresce no meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça no meu dedo.




vicente huidobro
1893-1948
o mar na poesia da américa latina (antologia)
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
1999