08 julho 2017

joaquim manuel magalhães / por causa de photomaton & vox



Por causa de Photomaton & Vox, Assírio e Alvim, Lisboa, 1979



Herberto Helder,
Eu nunca tomei uma bica consigo. Nos seculares passeios do nosso adro é difícil tal prestidigitação. É verdade que tenho um certo susto das suas palavras. Deve ser o único português de quem diria tal coisa. As razões são curtas e julgo que se resumem a uma: você escreve assim.

Poucas vezes o enredo de um fio me faz perder entre os seus nós. As meadas grossas são coisas fáceis de jogar nos dedos. Mas aquelas que nem parecem para tecer, que vêm de um torvelinho onde o ar ainda não chegou, abrem um espaço cego onde as crateras confundem a inexperiência do olhar.

Eu tinha, como lhe mandei dizer uma vez, dezasseis anos. Vila Real era um castigo de que ninguém cresce, a menos que dê volta à vida. Havia uma pastelaria diante da Sé. Li A Colher na Boca. Você foi culpado de quase tudo. Sabotou a mágoa adolescente de alguns sonetos. A Judite Beatriz de Sousa nem podia imaginar que as aulas de Literatura eram nessa esplanada e não onde ela me dizia as coisas de maior fascínio que começava a ouvir.

É evidente que não se tratava de Nossa Senhora de Fátima. As aparições já haviam começado mais cedo, quase sempre nos intervalos das aulas e com gente que não ia querer ver-me de joelhos. Mal sabiam que não esperavam os desejosos por outra coisa. Mas, lembro-me de vez, quando cheguei às «Musas Cegas» deixei de saber o que fazer com as palavras. Você não devia existir.

Quero dizer, comecei a julgar que escrever era fazer como você, de tal ordem a mudança ou transfiguração foi radical. Foram centenas de poemas, nos anos da Faculdade, em que não havia mais ninguém, nenhuma outra linguagem capaz de ensinamento. Era a peste, o contágio mortal.

Os advérbios de modo, os pronomes possessivos desencadeadores das metáforas, o desregramento imaginístico de um onirismo agressivo, a raridade visual ocupavam o centro que tentava a sua capacidade de visão, donde me cresciam as palavras. O desencadeamento da beleza tem destas facas. Atingem um coração desprotegido de saberes. Calcam as poças de terra donde ele julga subir. Andei com os seus poemas por muitos amores, por mais desamores, pelo sequestro de quartos alugados, pela papalvice de muitos professores. Lembro-me que tinha por critério poético para respeitar alguém que gostasse do que você escrevia.

Porque sou do tempo em que você era odiado. Nos primeiros anos dos anos 60 você não era neo-realista e atacava-os. Isto é, não havia foices e martelos escondidos na covardia de algumas imagens que só os da célula ou os mais atentos entendiam. Nem falava das madrugadas futuras. Nem, acima de tudo, cumpria a retórica de sacristia e um alentejo qualquer. A sua cor era o negro, ouvia-o dizer por detrás de muitas frases e um dia, de trombas, no prefácio a Edmundo Bettencourt.

Diziam que você era um idealista. Eu zangava-me, eles não queriam saber. Um dia atiraram-me uma recusa definitiva: você trabalhava na Emissora. Fosse verdade ou mentira, trabalhavam assim. Contavam a qualidade dos versos pelos anos de prisão. Nem deixavam supor que houvesse outras prisões e que você cantava de um suplício onde eles talvez nunca pudessem sofrer.

Alguns deles, de uma bronquidão imbatível, acabaram ministros, secretários e outros cargos. Era vê-los, ainda hoje se vão vendo, embora os mais antigos lhes tivessem recuperado os cadeirotes. Basta olhar para a cara da maioria dessa geração, iguais aos que desalojaram, mais liberaizitos, mas também de olhos moles: ouve-se logo crepitar a roupa interior enxovalhada. De quem haviam de gostar senão dos que faziam palavras prontas para balada?

Fui descobrindo outras razões para estar consigo ao ouvi-lo declarar extremos que eu também sentia. Num questionário de outro Proust, que divertia as minhas tardes de cervejaria, vi que respondia quando quiseram saber o que pensava de Literatura Portuguesa: Agustina Bessa Luís. Mais nada. Isso bastava-me, nesses anos já distantes em que ainda ninguém a queria transformar em possível herdeira de Torga, para me confirmar tudo. Saber caminhar entre os escolhos era uma arte que também eu andava a aprender.

Fui saindo do «pesadelo» da sua escrita a muito custo. Voltei atrás muito devagar, graças a grandes montes de papel rasgado. Primeiro riscava o que lhe fosse semelhante, voltava ao princípio, descobria que não ficava nada. Só quando me despedi de si, consegui perceber que podia tentar com as palavras sons e sentidos que fossem meus.

Não fui só eu, comecei a ver depois. Você é culpado de mais epígonos do que ninguém. Poucos se poderão sentir tão mal ao ler imensos que se lhe seguiram. Gente da minha idade, outros mais novos do que eu, devem a si nunca terem conseguido ser melhores. Também se não fossem de você, valha a verdade, seriam pigmeus de outro. Deve sentir, melhor do que ninguém, a praga que desencadeou à sua volta. Quase cada livro de um novo que surgia, e se ficava só por esse livro, de certeza que lhe causava a zanga de se sentir por lá.

A poesia portuguesa que se lhe seguiu só era interessante quando não estava colada a si. Nenhum poeta português do pós-guerra precisou tanto de se ver fugido. Leia muitos desses que aparecem por aí, entre o pós-surrealista e o pós-beatnik, leia mesmo os que fizeram poesia de comício à custa de banalização de imagens e processos seus e diga-me se não é assim.

Poucos podem ter a honra de ter mais inimigos do que você. Inimigos como eu, a considerá-lo um dos maiores, mas a fazer tudo por causa disso, por o combater naquilo que me leva à escrita. Aliás você é dos poucos que não anda atrás dos mais novos para lhes «sacar» o que de melhor vão conseguindo propor. Inimigos como outros, da geração que o antecedia, mais de raiva, ultrapassados pelo que você fazia, ou na bovina ignorância da sua escrita até terem acordado tarde demais (exceptuo alguns, dentre desses de quem já tenho tentado falar aqui). Inimigos como ainda outros, calados, dos que surgiram consigo nos inícios desses anos 60, ou dos que estavam já na sua linha de escrita, porque sentiam o vazio a fazer-se à volta dos seus pés. Muitos andavam de alma revirada. Eu era muito novo e podia observá-los com eles a julgarem-se impunes. Tinham entrado numa de poema curtinho, tudo bem escolhido e recatado, fácil de ser entendido na Outra Banda. Dizia-me uma delas, que depois deixou crescer os versos: «Tem demasiados violinos e entrarem em demasiadas janelas.» Veja lá o mal que faz aos ansiosos terem de fechar as janelas e, nessa falta de ar, ouvirem os ditos só na grafonola.

Quando penso no um ou dois poetas da minha geração, sei que eles são bons porque não se lhe assemelham, quase tanto como por possuírem uma veemência própria a reivindicar. Quando penso nos da sua geração, penso que são maus porque não atingiram o centrodo tempo com a placidez do furacão em torno que você foi. Penso que, dos anos 60, só Ruy Belo pode competir consigo com o fôlego incomparável dos que ganham sem correr. Assim como penso que, dos livros que se seguiram à sua Colher na Boca, só Outro Nome de Gastão Cruz, poucos anos depois, e Crónica de João Miguel Fernandes Jorge, bastantes anos mais tarde, tocaram em algo de profundamente alterante e central entre os mais novos.

A maior homenagem que lhe quero prestar, porém, é esta: só consegui juntar verso para o ar livre quando soube, de certeza certa, que você não estava lá. Esse obscuro lugar, como você diria, tem percentagem de luta contra si. Ficou daí, talvez, esta barreira que nem a sangue sei como resolver: não sei falar de livros seus. Talvez seja esse susto de que falava ao princípio.

Por isso, sobre o seu Photomaton & Vox digo-lhe isto. E só acrescento uma certa surpresa por o ver referir americanos demasiado franceses, e ter lançado um piscar de olho cúmplice a um público fácil ao atirar-lhe com a Patti Smith. Mas que fará tal minúcia à grandeza persistente da sua deriva isto é, da sua «deambulação»?

E já agora, em troca de algumas das suas magníficas histórias juntadas neste livro, deixe-me contar-lhe uma que li em Otto Jespersen. «Um camponesa quem o padre perguntou que significado tinha para ele a palavra felicidade e que respondeu: qualquer coisa dentro de um porco, mas não sei explicar melhor o que é.»

A moral é: no meio da miséria institucional que cerca a nossa cultura, a prostituição das editoras comerciais e das outras que só se dedicam às obras completas dos vendáveis, desses autores que lhes aceitam fazer o jogo, do desprezo a que a máquina política votou a difusão séria de obras mais significativas ou de autores mais novos para promover a mediocridade dos que se deixam enredar nas suas teias partidárias dominantes – no meio desse «porco»que é o nosso mercado cultural, a maioria das nossas editoras, os programas literários, a «felicidade» é que possam ainda, aqui um, além outro, aparecer livros como o seu. E que existam figuras de recusa exemplar como a sua é.



joaquim manuel magalhães
os dois crepúsculos
sobre a poesia portuguesa
actual e outras crónicas
a regra do jogo
1981






07 julho 2017

fiama hasse pais brandão / epístola para os amados





Ainda vos amos, porque aqui não há só tempo
e o amor, no tempo, é tão intenso e absoluto,
que transborda do tempo para o não-presente.
Havendo tempo e não-tempo, eu vos confesso agora
que em parques ao poente ainda vos estou a amar.
E não que vos ofereça hoje alucinados versos,
mas porque do meu tempo sois donos, como os poemas
que eu escrevo do tempo para o não-tempo, sempre.



fiama hasse pais brandão
epístolas e memorandos (1996)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017





06 julho 2017

antónio osório / entrar contigo




Entrar contigo
dentro das searas
e depois
trigo
sairmos da terra



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981





05 julho 2017

jordi doce / jardim de inverno




No mais escuro deste jardim há alguém
com uma das mãos sobre os lábios que invoca
ou pelo menos aspira nomear este silêncio
atrás do qual passam nuvens e pó e pássaros

invisíveis ao olhar daquele que escuta,
inaudíveis como inaudível é, se escuto,
a passagem do vento entre os ramos de zimbro,
o ar que filtra o pouco ar de inverno.

Luz mínima. Sombras, silhuetas que se abraçam.
Faz como o frio. Regressa ao teu corpo.
Escuta lento o derivar do mundo.
Escuta como cresce o gelo e se interroga,

como tudo é espelho e a quietude do espelho.



jordi doce
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000





04 julho 2017

lawrence ferlinghetti / a poesia como arte insurgente



(excerto)


Envio-te sinais por entre as chamas.

O Pólo Norte não está onde costumava estar.

O Destino Manifesto já não é manifesto.

A civilização está a autodestruir-se.

Némesis bate à porta.

Para que servem os poetas, numa época assim? Qual é a utilidade da poesia?

O estado do mundo pede à poesia que o salve. (Uma voz no deserto!)

Se queres ser um poeta, cria obras que consigam responder ao desafio de um tempo apocalíptico.

Tu és Whitman, tu és Poe, tu és Mark Twain, tu és Emily Dickinson e Edna St. Vincent Millay, tu és Neruda e Maiakovski e Pasolini, tu és americano ou não, tu podes conquistar os conquistadores com palavras.

Se queres ser um poeta, escreve jornais vivos. Sê um repórter no espaço sideral, e envia as tuas matérias para um supremo redactor-chefe que acredite na transparência total e tenha uma fraca tolerância a conversa fiada.

Se queres ser um poeta, experimenta todo o tipo de poéticas, gramáticas eróticas imperfeitas, religiões extáticas, efusões pagãs glossolálicas, discursos públicos bombásticos, rabiscos automáticos, percepções surrealistas, fluxos de consciência, sons encontrados, discursos e divagações – e cria a tua própria voz límbica, a tua própria voz secreta, a voz que te diz.

(…)




lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016






03 julho 2017

manuel de castro / último poema possivelmente de amor




recorda
como se os dias não fluíssem em dias
e para ti fosse um nítido jogo de músculos
meu braço no teu corpo      anfiteatro
da mais pura derrota rumo às constelações

eis-me descoberta
de tudo que se arrisca sem limite
construído pela colaboração de globos de vidro
iluminados e submersos
para o teu nome
um novo mecanismo de linguagem
para o teu corpo
memória      ciclo perfeito
dos meus desejos de pedra e de violência

tu
única para quem fui     adeus     o homem sem comédia


manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002








02 julho 2017

ricardo reis / dia após dia a mesma vida é a mesma.




Dia após dia a mesma vida é a mesma.
        O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
        Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
        Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
        Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
        Forma alheio e invencível.

2-9-1923



odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




01 julho 2017

antero de quental / intimidade



Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo à rosa,
E que a rosa, bem vês, passou de moda...

Anda-me às vezes a cabeça à roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, Juras
- mentindo - que me tens amor...



antero de quental
sonetos







30 junho 2017

r. lino / nove instantâneos do sul



.primeiro.

as manhãs caem no intervalo dos panos,
normalmente rectangulares;
as listas descem até às sombras
penduradas nas varandas,
nos mercados,
como se compridas vestes
por entre tectos de cana



r. lino
nove instantâneos do sul
políptico
companhia das ilhas
2016





29 junho 2017

paul éluard / já que não é uma questão de força



Tudo a mais frágil palavra quebra
Sombra de ideia ideia da sombra morte feliz
O fogo torna-se água tépida e o pão migalha
O sangue mascara um sorriso e o raio uma
                                                                    [lágrima
O chumbo que o ouro esconde pesa sobre as
                                                                    [vitórias
Nada semeámos que não tivesse sido destruído
Pelo minucioso bico das delícias íntimas
As asas penetram no pássaro para o fixarem.




paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




28 junho 2017

rui knopfli / telegrama



Ao longo destes anos todos
nada temos dito – meia dúzia
de palavras trocadas para o ofício
difícil da vida diária
e quantas proferidas com azedume.
Não te roubou, a brancura dos cabelos,
a doçura que nos teus olhos mais
se acentua.
       Mãe,
este silêncio anda cheio de ternura.



rui knopfli
o dente do siso
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional - casa da moeda
1982








27 junho 2017

jorge de sena / vita brevis




A vida é breve mas o que a faz mais breve
não é morrer-se nem morrer quem foi
connosco nela espaço forma e tempo.
Que mais que a morte a humanidade encurta
e torna mais estreita a nossa vida.
Só brevemente e por um breve instante
seu corpo nos concede. E brevemente
é que pensar deseja que existimos.
Antes de mortos, antes de sozinhos
e apenas visitados de memórias,
já todos somos um jornal antigo
deitado fora sem sequer ser lido,
ou somos uma imagem desenhada
a borda do passeio em que se exibem
pisando-a com os pés com que desenham
seus mesmos rostos que outros pés já pisam.
A vida é breve, breve, mas mais breve
quanto a quer breve a estupidez humana
fiel ao tempo ainda em que de espaço
o tempo se fazia e a pouco espaço
na terra imensa a todos não chegava.



jorge de sena
exorcismos  (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




26 junho 2017

luís miguel nava / como alguém disse



Não é que eu seja sábio, como entre as de mármore alguém disse
ser sempre uma coluna de madeira,
mas creio já ter visto um livro brilhar como
se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse o texto.



luís miguel nava
como alguém disse
contexto editora
1982







25 junho 2017

bernardo soares / a tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias



A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.

Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objectos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!

Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: «Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!» Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relógio público parado.

Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






24 junho 2017

eugénio de andrade / estribilhos de um dia de verão



1.
Um nó de luz ou uma lágrima
nada mais era quando despertava.

2.
Sabor de água, puro sabor
de ser matinal até doer.

3.
Sabor de ser
ardor de florir
rumor de amanhecer.

4.
Ser
de neve ao fogo um só ardor.

5.
Um só fluir, um só fulgor.




eugénio de andrade
ostinato rigore 1963-1965
poemas
edit. inova
1971





23 junho 2017

rené char / folhas de hipno



49
O que pode seduzir no nada eterno é o facto de nele o dia mais belo ser indiferentemente este ou aqueleoutro.

(Cortemos este ramo. Nenhum enxame se há-de pendurar nele.)


         
rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000





22 junho 2017

carlos de oliveira / as marés em redor da tua ilha



As marés em redor da tua ilha;
o pequeno arquipélago na paz
da solidão marinha; a maravilha
do jeito da onda eu o teu corpo faz.

Sobre o pálido estuque da parede,
como um espelho da minha própria imagem,
uma seara de Van Gogh morre à sede
no óleo espesso e fulvo da estiagem.

Ao calor do céu de tela passa,
arrancando pedaços de céu velho,
um bando de aves que pressente a ameaça
no horizonte de cor, raso vermelho.

E de repente dou comigo absorto,
as mãos entre papéis de antigos versos,
soprando um lume que supunha morto
e aquece ainda os dias já submersos.

Ó mãos inquietas, porque não parais?
Mais do que penso, sonho: donde vim?
e as pupilas do tempo, azuis, mortais,
acordam a chorar dentro de mim.




carlos de oliveira
a noite inquieta
antologia poética
quasi
2001





21 junho 2017

al berto / cinco fotografias para alexandre da macedónia



1

apesar de Alexandre ter um olho de cada cor
a fotografia tinha o rigor das imagens a preto e branco
a noite desabara sobre os corpos estendidos
a lua surgia como um tentáculo de gelo
apercebíamos mãos voláteis por ente as estátuas
um de nós teimava em esconder-se no interior de uma delas

os répteis temiam a pedra
com seus inalcançáveis corações de quartzo
pulsando
uma cabeça azulada pousa docemente sobre os joelhos
a noite era um estuário de dedos emaranhados
na memória húmida das bocas… alguém contou:
a lebre é capaz de mudar de sexo em plena correria
eu não acreditei
os olhos vigiavam o exterior do corpo
quando te curvaste para colher um medronho

pelas fendas da janela entrava uma fragrância rubra
e a luz espessa deitava-se
sobre as areias cobertas de lodo
pouco sabíamos acerca do ciúme
deambulávamos à procura de um deus fogoso e terno
ou dalgum poço onde nos debruçarmos

depois tocámo-nos como crianças desajeitadas
enumerámos as terras que dali se avistavam



al berto
cinco fotografias para alexandre da macedónia
1981