17 dezembro 2016

herberto helder / o amor em visita




     Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
     e seu arbusto de sangue. Com ela
     encantarei a noite.
     Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
     Seus ombros beijarei, a pedra pequena
     do sorriso de um momento.
     Mulher quase incriada, mas com a gravidade
     de dois seios, com o peso lúbrico e triste
     da boca. Seus ombros beijarei.

     Cantar? Longamente cantar,
     Uma mulher com quem beber e morrer.
     Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
     o atravessar trespassada por um grito marítimo
     e o pão for invadido pelas ondas,
     seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
     ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
     de alegria e de impudor.

     Seu corpo arderá para mim
     sobre um lençol mordido por flores com água.
     Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
     e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
     os bordões da melodia,
     a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
     desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
     - Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
     as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
     mulher de pés no branco, transportadora
     da morte e da alegria.

     Dai-me uma mulher tão nova como a resina
     e o cheiro da terra.
     Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

     E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
     cantarei seu sorriso ardendo,
     suas mamas de pura substância,
     a curva quente dos cabelos.
     Beberei sua boca, para depois cantar a morte
     e a alegria da morte.

     Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
     pescoço de planta,
     onde uma chama comece a florir o espírito.
     À tona da sua face se moverão as águas,
     dentro da sua face estará a pedra da noite.
     - Então cantarei a exaltante alegria da morte.

     Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
     despenhada de sua órbita viva.

     - Porém, tu sempre me incendeias.
     Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
     imagem pungente
     com seu deus esmagado e ascendido.
     - Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

     Entontece meu hálito com a sombra,
     tua boca penetra a minha voz como a espada
     se perde no arco.
     E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
     estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
     se desfibra - invento para ti a música, a loucura
     e o mar.

     Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
     a inspiração.
     E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
     Vou para ti com a beleza oculta,
     o corpo iluminado pelas luzes longas.
     Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
     transfiguram-se, tuas mãos descobrem
     a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
     áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
     aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
     eu sou a beleza.
     Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
     teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

     Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
     que me vem o fogo.
     Não há gesto ou verdade onde não dormissem
     tua noite e loucura,
     não há vindima ou água
     em que não estivesses pousando o silêncio criador.
     Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
     originais.
     Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
     a carne transcendente. E em ti
     principiam o mar e o mundo.

     Minha memória perde em sua espuma
     o sinal e a vinha.
     Plantas, bichos, águas cresceram como religião
     sobre a vida - e eu nisso demorei
     meu frágil instante. Porém
     teu silêncio de fogo e leite repõe
     a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
     e teu amor. As coisas nascem de ti
     como as luas nascem dos campos fecundos,
     os instantes começam da tua oferenda
     como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

     Mais inocente que as árvores, mais vasta
     que a pedra e a morte,
     a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
     tinge a aurora pobre,
     insiste de violência a imobilidade aquática.
     E os astros quebram-se em luz sobre
     as casas, a cidade arrebata-se,
     os bichos erguem seus olhos dementes,
     arde a madeira - para que tudo cante
     pelo teu poder fechado.
     Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
     eu sei quanto és o íntimo pudor
     e a água inicial de outros sentidos.

     Começa o tempo onde a mulher começa,
     é sua carne que do minuto obscuro e morto
     se devolve à luz.
     Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
     com uma imagem.
     Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
     de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
     uma ideia de pedra e de brancura.
     És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
     que te alimentas de desejos puros.
     E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
     a sombra canta baixo.

     Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
     onde a beleza que transportas como um peso árduo
     se quebra em glória junto ao meu flanco
     martirizado e vivo.
     - Para consagração da noite erguerei um violino,
     beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
     darei minha voz confundida com a tua.

     Oh teoria de instintos, dom de inocência,
     taça para beber junto à perturbada intimidade
     em que me acolhes.

     Começa o tempo na insuportável ternura
     com que te adivinho, o tempo onde
     a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
     o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
     ingénua e cara, o que pressente o coração
     engasta seu contorno de lume ao longe.
     Bom será o tempo, bom será o espírito,
     boa será nossa carne presa e morosa.
     - Começa o tempo onde se une a vida
     à nossa vida breve.

     Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
     salina, imagem fechada em sua força e pungência.
     E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
     em torno das violas, a morte que não beijo,
     a erva incendiada que se derrama na íntima noite
     - o que se perde de ti, minha voz o renova
     num estilo de prata viva.

     Quando o fruto empolga um instante a eternidade
     inteira, eu estou no fruto como sol
     e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
     matriz de sumo e vivo gosto.
     - E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
     das nuvens florescem, a resina tinge
     a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
     E estás em mim como a flor na ideia
     e o livro no espaço triste.

     Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
     na cevada pura, de ti viriam cheias
     minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
     em minha espuma,
     que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
     - No entanto és tu que te moverás na matéria
     da minha boca, e serás uma árvore
     dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

     Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
     Ver no aro de fogo de uma entrega
     tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
     será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
     do meu perpétuo instante.
     - Eu devo rasgar minha face para que a tua face
     se encha de um minuto sobrenatural,
     devo murmurar cada coisa do mundo
     até que sejas o incêndio da minha voz.

     As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
     jovem da carne aspiram longamente
     a nossa vida. As sombras que rodeiam
     o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
     seu bárbaro fulgor, o rosto divino
     impresso no lodo, a casa morta, a montanha
     inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
     - aspiram longamente a nossa vida.

     Por isso é que estamos morrendo na boca
     um do outro. Por isso é que
     nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
     da brisa, no sorriso, no peixe,
     no cubo, no linho, no mosto aberto
     - no amor mais terrível do que a vida.

     Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
     o perfume da tua noite.
     Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
     e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
     e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
     ao círculo de meu ardente pensamento.
     Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
     sobre o teu sorriso imenso.
     Em cada espasmo eu morrerei contigo.

     E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
     das urzes, um silêncio, uma palavra;
     traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
     vermelha.
     Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
     casa de madeira do planalto,
     rios imaginados,
     espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
     maravilhosas da noite. Ó meu amor,
     em cada espasmo eu morrerei contigo.

     De meu recente coração a vida inteira sobe,
     o povo renasce,
     o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
     a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
     de crepúsculos e crateras.

     Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
     encanta pela noite equilibrada, imponderável -
     em cada espasmo eu morrerei contigo.

     E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
     entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
     da tua entrega. Bichos inclinam-se
     para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
     contra o ar. Tua voz canta
     o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
     o lento desejo do teu corpo.
     Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
     eu morrerei contigo.



     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996



16 dezembro 2016

antónio josé forte / natal de 1964




Este ano a quadra festiva vai ser melhor do que nunca

no seu centro vai haver
um grande ramo de flores
que é por onde vão entrar
uns atrás dos outros de cabeça para baixo
os rapazes de mais categoria das artes e das letras
uns atrás dos outros de mãos dadas
cantarolando com a boca cheia
e escorregando docemente escorregando
para debaixo da mesa
onde os espera Jesus
para introduzi-los na grande sala de recepção ao vómito

Quanto ao autor destes versos
aguardará um telefonema até ao último momento
mas à cautela e antes que seja tarde
já comprou um cachucho
que mandou fechar à chave no seu cofre-forte



antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003



15 dezembro 2016

nuno júdice / fotografia



Ainda me lembro: as dúvidas
que nasciam por entre os teus dedos,
e as tuas mãos que se transformavam em
folhas de uma vegetação abstracta…
Era de manhã, quando o ar frio encrespava
a pele e a humidade batia no rosto
como os fios de uma teia invisível. Era
a hora em que nenhum táxi parava, nem
se podia andar pelos passeios sem
atolar os pés de lama. No café,
porém, um calor nascia no intervalo
de um aquário: o teu amor. E como o peixe
que bate no vidro sem saber para onde ir
andava às voltas, procurando a saída
para te encontrar enquanto tu
sacudias a água dos cabelos e, sem te
importares comigo, sorrias, como
nenhuns outros lábios sabiam sorrir,
até hoje.


nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



14 dezembro 2016

mia couto / declaração de bens



Só tenho palavras
para o indizível.

Só tenho voz
para emudecer.

Só trago nome
para o que nunca nasceu.

Uma única certeza
demora em mim:
o que em nós já foi menino
não envelhecerá nunca.


mia couto
tradutor de chuvas
caminho
2013



13 dezembro 2016

amalia bautista / ver o sol



Era tudo mentira e apercebo-me
no momento mais despropositado.
O amor não era amor. Eram os beijos
uma maneira de apagar a sede.
As carícias, o modo de nos guiarmos
no meio da noite. E escuto agora
a voz da tristeza: se tu pretendes
ver o sol, devias em contraluz
olhar um ovo passado por água.




amália bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013






12 dezembro 2016

samuel beckett / o abutre




Arrastando a sua fome através do céu
do meu crânio concha de céu e da terra

mergulhando sobre os tombados de borco
que breve deverão retomar a vida e andar

escarnecido por um tecido que poderá não   
                                                                      [servir
até que a fome a terra e o céu se convertam
                                                             [em refugo




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



11 dezembro 2016

camilo pessanha / canção da partida




Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
                Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
                Lançai-o ao mar.

E heide mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves - a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.



camilo pessanha
clepsidra






10 dezembro 2016

vitorino nemésio / nomeio o mundo



Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.




vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002



09 dezembro 2016

josé ángel cilleruelo / a noite



Conhece todas as conversas,
Que vida contará como sendo sua,
Onde terá que rir, onde calar-se.
Não lhe serve, por mais que o pretenda,

Como sonho nenhum rosto belo
Ou jovem. Passou por muitas portas
(entrou em tantos quartos tantos dias)
Para agora o comover alguma.

Sabe que um corpo não é já o paraíso
Mansidão do tempo, puro dom.
Mas de pouco vale a experiência,

De nada a meditação, presságio
Ou incerteza, quando com a noite
O toma a ânsia de animal ferido



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




08 dezembro 2016

adonis / ocidente-oriente



Era algo que se estendia no túnel da História,
Algo enfeitado e minado
Levando seu menino de nafta envenenado,
Por venenoso mercador cantado;
Era um Oriente – criança que pede,
Grita «Socorro!»
E o Ocidente, seu senhor nunca errado –
Mudado está agora este mapa;
O Universo em chamas,
Oriente-Ocidente: um só
Túmulo
Em cinza os tem juntado…


adonis
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de doina zugravescu
assírio & alvim
2001



07 dezembro 2016

gabriel ferrater / dedos




     Ligeira, principiava
a chuva de uma noite.
Ligeiros, confiavam-se
teus dedos em meus dedos.
     Breve instante de adeus,
oh, por dois dias só.
Sorrias-me através
do pranto que chovia
     em teu casaco de couro.
Tremor dos bruscos túneis
por onde te perco: confuso coração,
despedaço esta noite
     o molho de lembranças
que tenho nos dedos. Vazios dois dias,
premiram a sombra do toque
dos teus dedos, quando eu te perdia.


gabriel ferrater
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001



06 dezembro 2016

carlos de oliveira / definição




O sal é o mar servido à mesa nas suas praias
domésticas de linho.



carlos de oliveira
terra da harmonia
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998


05 dezembro 2016

jorge luís borges / as causas




Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



04 dezembro 2016

josé de almada negreiros / aconteceu-me






Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado.
e eu tenho visto olhos!
mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


josé de almada negreiros
almada
o escritor
o ilustrador
secretaria  de estado da cultura
instituto da biblioteca nacional e do livro
1993





03 dezembro 2016

herberto helder / fonte



II

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
Aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva, em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996