31 janeiro 2025

lawrence ferlinghetti / três donzelas foram de viagem

 
 
 
 
Três donzelas foram de viagem
Uma levava um pedaço de pão
                                      na mão
Uma disse
                Cortemo-lo e dividamo-lo
 
E chegaram a uma floresta vermelha
e no meio da floresta vermelha
                  encontraram uma igreja vermelha
e na igreja vermelha
                  havia um altar vermelho
e em cima do altar vermelho
                  estava uma faca vermelha
e agora chegamos à parábola
                                                     Elas
pegaram na faca vermelha e feriram
                                                      o pão
e onde o golpearam com a
                                       faca vermelha
                                       o pão era vermelho
 
 
 
lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972
 

30 janeiro 2025

saint-john perse / para festejar uma infância

 
 
 
I
 
    Palmeiras…!
    Então banhavam-te na água-de-folhas-verdes; e a água era também sol verde; e as criadas da tua mãe, grandes raparigas luzentes, moviam as pernas quentes perto de ti, que tremias…
    (Falo de uma alta condição, dantes, entre os vestidos, no reino de claridades revoluteantes.)

    Palmeiras! e a doçura
    de uma velhice de raízes…! A terra
  desejou então ser mais surda, e o céu mais profundo, onde árvores demasiado grandes, cansadas de um obscuro desígnio, urdiam um pacto inextricável…
   (Tive este sonho, dentro da estima: uma estadia segura entre os tecidos entusiastas.)
               
    E as altas
    raízes curvas celebravam
    o pôr-se a caminho das vias prodigiosas, a invenção das abóbadas e das naves,
   e aluz, então, em mais puras proezas fecunda, inaugurava o branco reino para onde levei, talvez, um corpo sem sombra…
  (Falo de uma alta condição, outrora, entre os homens e as suas filhas, que mastigavam certa folha.)

    Os homens tinham então
    uma boca mais grave, as mulheres tinham braços mais lentos;
   então, alimentando-se como nós de raízes, grandes animais taciturnos enobreciam-se;
    e mais longas sobre mais sombra se erguiam as pálpebras…
    (Tive este sonho, ele consumiu-nos sem relíquias.)
 
 
 
saint-john perse
para festejar uma infância
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 

29 janeiro 2025

roger wolfe / o tinteiro

 
 
 
Em toda a parte
há poemas.
Muitas vezes
os melhores
são os que deixas ficar
onde estão.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




28 janeiro 2025

rené char / que viva!

 
 
 
Esta terra não passa duma esperança do espírito, dum
                                                       contra-sepulcro.
Na minha terra, as ternas provas da primavera e os
                              pássaros mal enfarpelados são
preferidos às metas longínquas.
A verdade espera pela aurora junto a uma vela acesa.
A vidraça da janela é desleixada. Isso que importa a
                                                     quem é atento?
Na minha terra não se interroga um homem emocionado.
Não há sombra maligna sobre a barca que mete água.
Bom dia sem mais, é coisa desconhecida na minha terra.
Só se pede emprestado o que se pode devolver aumentado.
Há folhas, muitas folhas nas árvores da minha terra.
Os ramos são livres de não carregarem frutos.
Não se acredita na boa fé do vencedor.
Na minha terra agradece-se.
 
 
 
rené char
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




27 janeiro 2025

billy collins / budapeste

 
 
 
A minha caneta move-se pela página
como o focinho de um estranho animal
com a forma de um braço humano
enfiado na manga de uma camisola larga e verde.
 
Vejo-a farejando incessantemente o papel,
determinada como se pensasse apenas
em forragear as larvas e os insectos
que lhe permitirão viver mais um dia.
 
Apenas quer estar aqui amanhã,
enfiada, talvez, na manga de uma camisa de xadrez,
com o nariz encostado à página,
obrigando-se a escrever mais umas poucas linhas,
enquanto eu espreito pela janela e imagino Budapeste
ou qualquer outra cidade onde nunca estive.
 
 
 
billy collins
rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001



26 janeiro 2025

charles bukowski / a cara de um candidato político num cartaz de rua

 
 
 
lá está ele:
poucas ressacas
poucas discussões com mulheres
poucos pneus furados
nunca pensou em suicídio
 
não mais de três dores de dentes
nunca falhou uma refeição
nunca esteve na cadeia
nunca se apaixonou
 
7 pares de sapatos
 
um filho na faculdade
 
um carro com um ano
 
apólices de seguros
 
uma relva muito verde
 
caixotes do lixo bem fechados
 
será eleito.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018




 

25 janeiro 2025

bob dylan / agora acabou-se tudo, baby blue

 
 
 
Deves partir agora, leva o que precisas, o que pensas que há-de durar
Mas o que quer que desejes guardar, é melhor agarrá-lo depressa
Além está o teu órfão com a sua arma
Chorando como uma fogueira ao sol
Cuidado que os santos estão a passar
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
A estrada é para os jogadores, é melhor usares o teu bom senso
Leva tudo o que juntaste da coincidência
O pintor de mãos-vazias das tuas ruas
Está a desenhar padrões loucos nos teus lençóis
Também este céu se está a dobrar debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Todos os teus marinheiros enjoados, eles estão a remar para casa
Todos os teus exércitos de renas, estão todos a ir para casa
O apaixonado que acabou de sair pela tua porta
Tirou todos os seus cobertores do chão
Também o tapete se está a mover debaixo de ti
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
Deixa o trilho de pedras para trás, algo chama por ti
Esquece os mortos que abandonaste, eles não te seguirão
O vagabundo que bate levemente à tua porta
Está com as roupas que dantes usavas
Acende outro fósforo, vai e começa de novo
E agora acabou-se tudo, Baby Blue
 
 
 
bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
bringing it all back home
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008
 



24 janeiro 2025

roland barthes / o corpo do outro



 

 
CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
 
1.
O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, do outro, a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, do outro, a voz – a voz, sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
 
2.
Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses miúdos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). essa operação processa-se de um modo frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho insecto que subitamente deixo de recear. Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a fazer de um morto um fetiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai da sua inércia, se põe a fazer qualquer coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
 
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.)
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017
 



 

23 janeiro 2025

sylvia plath / os anos

 
 
 
Entram como animais vindos
Do espaço de azevinho onde os espinhos
Não são os pensamentos que eu ateio, como um praticante
     de Ioga
Mas apenas, o verde, pura escuridão
Nela gelam e são.
 
Ó meu Deus, não sou como tu
Na tua vaga obscuridade,
As estrelas coladas por todo o lado, estúpidos confeitos brilhantes.
A eternidade aborrece-me,
Eu nunca a quis.
 
Do que eu gosto
É do pistão em movimento –
A minha alma morre só de o ver.
E os cascos dos cavalos,
Esse desapiedado ruído de cascos no chão.
 
E tu, Estase maior –
O que há de importante nisso?
Será um tigre este ano, este rugido ao pé da porta?
É o de um Christus,
O terrível.
 
Freio de Deus nele
Morto por voar e acabar assim?
As bagas do sangue são elas mesmas, estão muito quietas.
 
Os cascos não o vão ter,
Na distância do azul, os pistões assobiam.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




22 janeiro 2025

ron padgett / voz



 

 

Sempre me ri
quando dizem acerca de um jovem escritor
que «procura a sua voz». Eu interpretei
literalmente: teria ele perdido a voz?
Tê-la-ia projectado e ela
Não voltou? Ou talvez
se referissem ao jornal
The Village Voice? Ele está a tentar
encontrar a sua Voz.
                             O que não tem
graça é que tantos jovens escritores
tenham considerado esta ideia
credível: eles partem em busca
da sua voz, como se
fosse uma coisa independente, um tesouro
difícil de encontrar mas que merece
o esforço. Nunca pensei
que tal coisa existisse. Até
recentemente. Agora sei que existe.
Espero nunca encontrar a minha.
Espero continuar a ser uma fraude o resto da vida.
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018
 



 

21 janeiro 2025

pat boran / madressilva

 
 
 
 
                                                    para Ron Houchin
 
 
Meteu-se pelas estradas secundárias e conduziu durante horas
até o céu ser a poça de estrelas que ele perdera
na infância e da qual nunca se incomodara a sentir falta
até então, a noite dos seus cinquenta anos,
pais e vizinhos mortos havia muito, a velha casa
arrasada por um bulldozer, o lago
cheio e coberto com asfalto, um sinal de paragem
onde uma vez estivera posto um espantalho, a estrada
a desaparecer ao longe e apenas as estrelas
ainda familiares, ainda de confiança, e aquele perfume no escuro
a que ele chamava, então e ainda, madressilva.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




20 janeiro 2025

rami saari / melhoras



 
Nos banhos públicos de Al-Shifah em Schem
massajou-me as costas o jovem Sahid,
e o seu peito alto ofegou de tal modo
que as comportas todas do céu se abriram:
os joelhos dobrados tremeram na pedra,
seu hálito fundiu-se com os vapores da sala.
Do seu ventre, alpendre cheio de trigo e palha,
escorreram chuvas tardias alagando o solo.
E depois, o sabão. E depois, a água.
E depois,, toalhas e chávenas fumegantes.
Com o passar do tempo as comportas do céu entraram
à socapa no espaço reduzido que há entre as palavras.
 
 
 
rami saari
tradução de joão paulo esteves da silva
nervo/23
colectivo de poesia
janeiro/abril 2025
 



 

19 janeiro 2025

paul celan / no vermelho tardio

 
 
 
No vermelho tardio dormem os nomes:
um
é despertado pela noite
e levado com bastões brancos
para a muralha sul do coração,
sob os pinheiros:
um, de origem humana,
vai até à cidade de barro
onde a chuva se acolhe amiga
de uma hora marítima.
 
No azul
pronuncia uma palavra-árvore promissora de sombra,
e o nome do teu amor
acrescenta-lhe as suas sílabas.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023