31 dezembro 2024

joaquim manuel magalhães / fogo, felpa, farmacopeia

 
 
 
A noite ficou branca uma vez mais.
Nesse luar vazio floresce a rocha,
a silva, o contorno do que nada acolhe.
Subo para a armação de ferro
e fungos e vírus e bactérias
esperam no pousio alagado,
relíquias celestiais, a natureza.
Tiro uma a uma cada roupa
na voltagem do frio, mudo o que fui
por detrás da noite, no pesadelo.
 
Esmago as folhas da hortelã-brava,
um odor carnívoro que se mistura
à bruma roída dos barcos na lagoa.
Tudo tarde nas toalhas que nos limpam,
o sândalo deitado nos lençóis,
a linfa da estopa escura contra a luz.
Cor da açafroa, esse cardo cuja veste
Depois de morta é, como nos surge a noite,
macerada.
 
O arbusto aberto no muro, o varandim
e o trago da chama, o teu retrato. Uma espora
no centro do penhasco. Dessas coisas
que se perdem antes de lhes tocarmos.
O luar cai além do vidro, no desaire,
no alto morro preto onde este cansaço
por vezes é o deus.
 
O feixe sombrio lança sobre socalcos
outros socalcos mais escuros, no tecto
de madeira ameaçada, a caminho do saguão,
direito ao que fica por dizer.
Quando atravessa o farol da alvenaria
ilumina-o para dentro, essa parte
partida da revolta de que somos o resto
calcinado, sem fundura, um volume
trazido pela escuridão à despedida
e que não cessa de louvar
nessa alegria lacerada.
 
É melhor que no outro quarto o corpo,
o meu, o deles, a gruta abafada
da parede sem o reboco final,
acenda a noite com suores cobertos
pela lâmpada diminuta.
Que no outro quarto eu esqueça
a languidez suicida, o halo de passos
junto de um sabor, o conforto da derrota
que nos avisa com o longe, o sue esquife,
o bacelo translúcido despedaçado
e a viagem do sono, sem mais querer voltar.
 
Irão faltar-te as cartas que eu deixava
para tu pores os selos. Meu deus,
que mal faz a morte ao outro a quem
nos tira. Depois de nenhum mal nos fazer já
a nós.
 
Sempre que falo de noites assim
é o Douro visto da galeria. É Ariz. A minha avó
deu-me depois esta cadeira. Só lhe mudei
a lona. Apenas mudei eu. o pano cru
com a amarga simplicidade de tudo.
Cedro a cedro, a violência do que vai
diante de nós, dentro de mim.
Numa selha de zinco davam-me banho
e cantavam para eu não chorar,
é lá possível não chorar.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



30 dezembro 2024

joan margarit / o rosto do meu pai

 
 
 
Olho-te entre a gente e tu não me vês.
Os músicos de rua
partilham os seus sons num ruidoso concerto.
Vejo na tua cara a queimadura
que o hábito de olhar-te
tinha já apagado.
A tua história distante
perde-se nos becos estreitos e obscuros
dos arredores da Rambla.
Talvez nalgum sítio ainda esteja o fogão
onde dos braços da tua mãe caíste
sobre o óleo a ferver.
Pesam os anos contigo
amontoados como neve num telhado.
Não me viste, e os meus olhos, como lábios,
roçam a tua barba de uns quantos dias
e a velha queimadura que te atravessa
a cara e a vida.
Todos caímos de alguns braços
e a horrorosa cicatriz acaba
por ser um sinal de amor e companhia.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




29 dezembro 2024

paul bowles / cena III

 
 
 
Às vezes a febre regressa e eu posso ver as montanhas,
a manhã cheia de freiras que passam
e as terríveis seringas,
as árvores rapaces, as falsas cataratas brilhando com aranhas,
as vinhas do silêncio.
Vejo as mesmas montanhas surdas, com as suas bocas cobertas de neve,
e movo um pouco os meus dedos; ainda assim,
preciso de ajuda.
 
Às vezes a febre vagueia ao anoitecer pelos subúrbios.
Às vezes há apenas uma montanha, meso por cima das nossas cabeças.
Ao meio-dia começa a chover. Os cavalos escondem-se entre as rochas,
e o mar idiota lá está.
De vez em quando preciso de ajuda.
 
«Naquele dia dois mil homens morreram nessa praia infinita.»
 
                Para nós: tubarões, estanho, água estagnada.
                Oito doenças à noite
                enquanto o escorpião se agarra ao tecto.
                Para nós: arame farpado, bocas abertas, sangue seco,
                as cabeças peludas das tarântulas
                e o constante olho cego
                do tempo, congelado no ar.
 
                O vento cai em pedaços
                pelos caminhos da montanha.
                Temos de gritar sem tréguas –
                aquele que pára está perdido.
 
 
                                                  1938

 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



28 dezembro 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
 
III
 
Amor, amor, amor, um mal que ainda perdura
esta ferida grande, anónima, obscura,
esse beijo letal que vai da boca ao útero,
esta esperança vã, o desespero inútil.
 
Amor, amor, amor, meu ódio e meu horror,
amor, quisera não ter sangue, não ter corpo,
e te expulsar de mim como a falaz demónio
ou anjo que tingiu de fogo as asas brancas.
 
Chama voraz da vida incinerada em sonho,
Amor, por que me acordas para o dia novo
com promessas de voo, se me ardo em chão?
 
Ai, se me fora dado exorcizar-te, Amor…
(carvão posto em repouso, brasa alheia ao sopro)
… ai se me fora… – AMOR! AMOR! NÃO ME ABANDONES!
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



27 dezembro 2024

diego doncel / o filósofo das ruelas

 




 

1
 
Diz-me tu, dor – perguntava aquele filósofo das ruelas dos subúrbios
sentado atrás de uma folha de papelão – se, agora que vou tão pobre e sem refúgio
e com os olhos velhos como a cor do céu,
não é tempo já de que te esqueças de mim?
 
Diz-me tu, que és a única forma de consciência
Pela qual penso as coisas, se não é inútil habitar este frio,
se não é inútil fugir constantemente do que julgo que sou
ou que não sou, talvez aquilo que seja um estado
da minha própria morte ou uma forma diferente de viver?
 
No papelão escrevera a história da sua vida com inverosímeis
incorrecções ortográficas e deixava adivinhar
o permeável das fronteiras entre ser e deixar de ser.
As lojas estavam adormecidas, as gentes rodavam das franquias comerciais
de comida rápida para os bazares de diversão a cheirarem a terra húmida.
Uma franja de nuvens atravessava os intermitentes semáforos amarelos
a uma velocidade ilegal.
 
 
2
 
Noutros dias ganhava umas moedas a predicar à porta dos restaurantes
e dos centros de estética o esoterismo de uma vida feliz:
– Quando se segue o curso da vida – aconselhava –
alimentar-se é um acto espiritual:
são comprimidos de proteínas, comprimidos de carboidratos,
comprimidos de fibras naturais, comprimidos de ácido fólico
e vitaminas C e E,
nem sal nem gorduras nem açúcar,
só meditações, busca interior, serenidade.
Quando se segue o curso da vida
é decisivo o rejuvenescimento celular,
a absorção de oxigénio, o prodígio
dos extractos vegetais. A mente limpa,
escutar a música do coração.
E as pessoas, tão ávidas de novos visionários,
de novas mitologias, de modernos sonhadores
achavam sensata a mensagem das suas palavras.
 
Mas não era um filósofo existencialista
nem um profeta da vida sã.
Ninguém sabia quem era nem porque representava aquilo:
aquelas metamorfoses interiores, aquelas mudanças
de personalidade, aquela consciência fugidia
que é tudo e nada ao mesmo tempo,
o sonho de tudo que ninguém sonhava.
Depois sentava-se junto de jovens ociosos
a beber whisky em copos de papel,
e o álcool uivava nas suas veias
como uma ambulância numa rua tranquila.
Procurava talvez para lá
dos rituais humanos carentes de algum juízo
umas formas acabadas e perfeitas de existência.
E o seu eu não lhe servia.
Não sou, porventura, dizia-se a si próprio, o engano
que vou criando ao viver?
Porventura não fujo do meu nome, de qualquer
nome, pelos passeios deste subúrbio
e vagueio por estas ruelas,
que as drogas e a morte amam,
para não saber de mim?
 
 
3
 
Esquecia o mal-estar consigo mesmo
ao esquecer o pensamento, as dimensões doentes da sua alma
ao dar-se uma nova oportunidade de estar ali,
de continuar a celebração daquele estado em que as coisas
mais correntes não se convertiam em terríveis metáforas,
em que as coisas e os seres não eram já seus inimigos.
 
Tinha medo dele, do que se escondia
dentro dele e aterrava-o a morte.
 
E naquela noite o frio e a cobiça dos gelos
lembram-lhe toda a sua fragilidade.
Olhou os pombos nos ramos nus das acácias
como farrapos de velha roupa. Andou sem rumo
e refugiou-se em qualquer sítio,
talvez só ao calor da sua respiração.
Nas escuridões últimas da noite, quando a neve
tinha ocultado já a extensão dos passeios e o vento se ria
entre as elevadas estruturas de apartamentos com humorísticas gargalhadas,
encontrou uma única ideia que lhe deu paz, simples como ele,
algo que o reconciliava.
E por entre os lábios a si se disse, como um murmúrio:
eu sou apenas uma sombra
que pede humildemente esmola a outras sombras
e que ao estender a mão que treme
(a mesma mão com que às vezes
reconheço as formas do meu rosto,
com que dou de comer aos pardais das ruas
e lhes construo pequenas casas de madeira,
com que me guio, antes de adormecer, na leitura
dos aforismos de Marco Aurélio)
encontro toda a claridade do mundo.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007
 



26 dezembro 2024

josé emílio pacheco / apocalipse na televisão

 
 
 
Cornetas do fim do mundo
Interrompidas
Para dar lugar a um anúncio
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



25 dezembro 2024

ruy belo / poema de natal

 
 
 
É dia de natal a festa da família um deus nasceu
não me sinto sozinho mas estou sozinho
toda a minha família sou só eu
Levo nas algibeiras alguns versos e caminho
quando sinto de súbito o desejo de reler o herculano
a única pessoa que nos livros e na vida hoje me faz falta
única companhia para o meu natal
Entro nas poucas livrarias de peniche
e gasto em livros de herculano o dinheiro que tenho
O herculano entre outras coisas bem sabia distinguir os tempos
sabia o que num tempo é distinto de outro tempo
tinha muitos amigos entre os seus e meus antepassados
e deu sempre à verdade o que os demais costumam dar à vida
Era casmurro abandonou um dia as casas de má nota
deixou o parlamento e a vida literária
e procurou no campo a companhia
de árvores bem mais que os homens verticais
Tinha muito mau génio fulminava com os olhos
franzia a testa e não havia nada que fazer
era teimoso o velho como antero lhe chamava
Penso nele e caminho pelas ruas de peniche
e só vão a meu lado uma má música daquelas
que ferem os ouvidos nestas quadras do natal
e a fotografia num jornal de um elevado dignitário da hierarquia
para quem o mistério do natal não sei bem que mistério ou que natal
encerra o verdadeiro humanismo novo
frase que me provoca comoções
porquanto as aliterações são dos meus pratos favoritos
Vou encerrar-me em casa a sós com herculano
que tanto quanto sei não era humanista
ou que se porventura o era o não sabia
ou não dizia ao menos ser tal coisa como
se duvidássemos que o fosse se é que o era
É dia de natal estou sozinho e penso ler o herculano
que há tanto ano já me não fazia
a falta que me faz precisamente neste dia
em que só me faz falta a sua companhia
Vamos pra minha casa ó herculano
vou fechar as janelas acender a luz
e aguardar contigo o fim do ano
Prefiro-te herculano a músicas e altos dignitários pois
nem talvez tenha já a convicção de quem anualmente
escreve pontual se não contente o seu poema de natal
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004
 



24 dezembro 2024

agustina bessa-luís / presépio

 
 
 
Não é sem razão que os animais aparecem no Presépio, no século XIII, quando a sociedade agrária começa a sair da sua incerteza e a medir a sua aversão pelo perigo. O animal doméstico é posto a para da religiosidade, como indicador do comando da incerteza humana. Os Presépios com a vaca e o burro são apresentados no rito natalício franciscano e significam exactamente a prosperidade ideal, o homem num abrigo de terra batida com os seus animais, escapados à fome e às inundações que assolaram a Europa na primeira metade do século XIV. A festa do Presépio foi instituída por São Francisco, em Greggio, três anos antes da sua morte. Fez preparar uma manjedoura e trazer feno para ela; junto colocou uma vaca e um burro, e disse a Missa sobre a dita manjedoura. Foi um cavaleiro, justo e piedoso, quem contou ter visto uma criança maravilhosa que dormia no presépio. Portanto, a intenção de São Francisco não foi a de celebrar o Nascimento, mas sim a de realizar um pacto sagrado com os factores de segurança para o homem agrário, tão aterrado pelas condições climáticas que assolaram a Europa desde os Pirenéus às estepes russas.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




23 dezembro 2024

sophia de mello breyner andresen / às vezes

 
 
 
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
 
Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999
 



22 dezembro 2024

e e cummings / se eu te amo

 
 
 
LIV
 
se eu Te amo
(espessura significa
mundos habitados por errantes
austeras brilhantes fadas
 
se tu me
amas) distância é mente cuidadosamente
luminosa com inúmeros gnomos
De completo sonho
 
se nós (timidamente)
nos amamos, o que nuvens fazem ou Silentemente
Flores assemelha-se à beleza
menos que a nossa respiração
 
 
 
e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




21 dezembro 2024

samuel beckett / bem bem existe um país

 
 
 
bem bem existe um país
em que o esquecimento em que pesa o esquecimento
lentamente nos mundos inominados
aí a cabeça aquietamo-la a cabeça está calada
e sabemos não nada sabemos
o canto das bocas mortas morre
no areal fez a viagem
não há nada para chorar
 
a minha solidão conheço-a vamos lá conheço-a mal
tenho tempo vou achando que tenho tempo de vida
mas que tempo osso faminto a vida do cão
do céu que assola incessante o meu vão de céu
do raio que trepa ocelado fremente
dos mícrons dos anos trevas
 
querem que vá de A para B não posso
não posso sair estou numa terra sem rastos
sim sim é uma coisa bonita que aí tem uma coisa bem bonita
o que é não me façam mais perguntas
espiral poeira de instantes o que é isso o mesmo
a calma o amor o ódio a calma a calma
 
 
 
samuel beckett
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
trad. filipe jarro
assírio & alvim
2001





20 dezembro 2024

fayis suyyagh / o cavaleiro

 
 
 
permanecendo firme sob o calor do sol
e o açoite da chuva
passando por ele dia e noite
passado e futuro
as quatro estações
esperou o grande momento
com as feridas enroupadas de esquecimento
(quando visse o dragão cujos olhos cospem fogo)
quando ele veio
correu
     bateu em retirada
     dobrou-se para trás
     inclinou-se
     caiu
     como uma tempestade
cravando a sua lança na face do Nada
 
 
 
fayis suyyagh
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalbaerto alves
assírio & alvim
2001




 

19 dezembro 2024

yorgos seferis / dentro das cavernas marinhas

 
 
Dentro das cavernas marinhas
há uma sede há um amor
há um êxtase,
tão duro como as conchas
podes segurá-las na palma da tua mão.
 
Dentro das cavernas marinhas
dias inteiros olhava-te nos olhos
e não te conhecia nem tu me conhecias.
 
 
 
yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993