A dualidade do belo e do útil está presente em toda a filosofia grega desde Homero a Platão. Enquanto o homem pré-histórico marcava a sua arte por uma forte intenção social e pela utilidade quotidiana, os gregos libertando-se da necessidade do mágico e do sobrenatural pelas ideias, equacionam essa dualidade por uma prática artística e filosófica.
Hesíoclo começou por dar uma interpretação à beleza que, segundo ele, tinha a ver com as cores, as formas, a expressão e até mesmo a beleza moral, adaptando pela primeira vez o belo a uma manifestação humana. Para ele, a diferença entre o belo e o bem é que o belo é imediato, enquanto que o bem é mediato. Isto é: o belo permite uma sensibilidade de gozo, o bem é apenas uma fruição do prático.
Este conceito evoluiu em Homero para uma interrogação dialéctica entre um e outro conceito. São as coisas belas forçosamente úteis e haverá sempre beleza no que é útil?
Homero diz que o que é útil pode ser belo e que o belo pode ser útil, mas uma coisa não implica a outra. De facto, a beleza pode ser utilitária mas não é essa utilidade que lhe confere a categoria de belo.
A metafísica, no entanto, veio trazer ao pensamento grego uma nova concepção. O belo não é o formal, o concebido na materialidade das coisas. O belo passa a ter e a ser uma existência nos próprios conceitos e nas ideias. Aliás, Sócrates e Platão, opõem à beleza artística a beleza da natureza. E esta está acima daquela porque nenhuma realização artística pode criar vida, enquanto a natureza é a própria vida, ela mesma na sua criação, incomparável a qualquer criação humana.
Platão formula na sua filosofia um novo conceito de belo. Institui o mundo como a criação dum modelo e dum paradigma onde, na sua essência, o belo é autónomo tanto quanto o seu fim.
Já a lógica aristotélica intrinsecamente naturalista, atribui à realidade uma certa imperfeição. A realidade é desajeitada e em si mesma desprezível, porque tudo está nas ideias. A realidade, como tudo afinal, só é apreendida quando se conhece a Ideia Final. O bem e o belo têm assim um valor cósmico.
É destes pensamentos que vai nascer pela primeira vez a arte como deleite. Abandonada ao tempo a necessidade da magia e do sobrenatural, a arte reflecte e traduz o Ideal e exerce na realidade uma influência modelar. Longe de preceitos e de práticas, a arte afirma-se sem um objectivo prático. Ela já não é um meio para atingir um fim, mas um fim em si mesma.
O artista criará a perfeição e a beleza e é a partir daí que o real será interpretado e julgado.
Ortega y Gasset (“Estética en el tranvia”) opõe-se completamente a esta unicidade do que é belo e do seu modelo absoluto sobre a realidade.
Para ele a perfeição é o implícito em cada parcela de real. Não é a ideia cósmica que temos do mundo que nos leva à insatisfação estética com cada uma das suas parcelas. Tudo está em mim, idealizado e com um apuramento perfeito. Mas esse paradigma que exerço sobre tudo o que me chega aos sentidos, só se forma quando sinto e faz parte não inteiramente de mim, mas da coisa que é sentida por mim.
Sou, portanto, não inteiramente juiz da beleza e da fealdade dos outros ou das coisas. O mundo não é perfeito por eu aplicar o meu modelo de perfeição. A perfeição ou a imperfeição daquilo que observo é intrínseca à minha observação e não à minha qualidade e papel de observador.
Na sua aventura no eléctrico, Ortega exercita muito bem este seu conceito. Há traços no mundo, como na sua “Guapa”, que se desenham por si numa projecção de beleza no que se realiza como feio.
Neste exercício, o que está em causa é talvez a nossa petulância de juízes ou de detentores de modelos que se dilaceram ou erigem ideias e concretizações do belo, justo e perfeito.
Afinal de contas, o desconhecido não é inteiramente desconhecido e a descoberta dos filósofos e dos estetas gregos, vista a esta luz, é um grande feito, não das coisas belas que os artistas expressaram, mas uma expressão definitiva do que por si só era já beleza, ainda que diáfana, ainda que soprada pela força imensa da genialidade.
E, como a cor nos impressionistas é definitiva mais que o desenho, delimitando as formas e as composições, também o belo é uma emanação das próprias coisas, que valem pelo que evocam e traduzem. A promessa de beleza não está em mim, mas vem — invisível — de quem, ou das coisas, que eu pretendo belas.
Assim, nada é mais previsível do que ser o artista não aquele que cria, mas o próprio objecto criado.
A Estética actual procura no quotidiano e no discurso das Artes, a determinação dos seus conceitos filosóficos, assumindo intencionalmente o problema da sua inserção no mundo e da sua universalidade.
No mundo moderno é precisamente essa pretensão de universalidade que nos faz surgir o intemporal do belo como princípio estético quer objectivo, quer subjectivo.
De facto, a morte da beleza nos tempos modernos, não é mais que o resultado da crise histórica de um princípio estético uniforme.
Essa crise inscreve-se na fragmentação cultural do nosso mundo, directamente relacionada com o carácter culturalmente diverso dos modos de vida humanos.
A confrontação com outras situações históricas e com outras culturas humanas, situa em primeiro plano a pluralidade e diversidade da beleza, a existência irrefutável dessa multiplicidade de princípios estéticos não homogéneos. Não é só a diversidade de gostos, do desajuste das apreciações estéticas subjectivas, mas antes a estreiteza e diversidade das representações humanas: individuais, sociais e linguísticas da beleza. “A beleza não é uma realidade substantiva, senão um horizonte de conceitos e valores sensivelmente representado, o produto dum conjunto de relações”.
Significativamente patentes na sociedade actual, os modos de representação multiplicaram-se profusamente, fruto também das tecnologias inovadoras e da tentativa de pluralizar uma certa estética veiculada pelos meios massivos de comunicação. Pela imagem, pelo som ou pela escrita, assiste-se desde o início do século a uma difusão planetária de valores ideológicos e estéticos, até aí cativos de uma élite. A arte sai dos museus e dos palácios e entra-nos em casa, nas ruas, no quotidiano.
É assim que a fotografia se vem afirmar como arte. Em simultâneo com o desenvolvimento técnico, assiste-se a uma concepção teórica que elabora uma estética própria da fotografia e em que se apoia a generalidade dos fotógrafos que fazem já parte da sua história.
A História parece ter esperado pelos fotógrafos para se precipitar duma vez por todas no nosso século.
Desde as guerras que refizeram a geografia política e económica, até ás ciências que mudaram o pensamento e o quotidiano, tudo se desenrolou perante as objectivas. E embora quase tudo viesse do pensamento do século XIX (como a própria fotografia) toda a acção se transpôs e realizou a partir de 1900.
Nomes como
Mathew B.Brady,
John Thomson,
Lewis Hine,
Eugene Smith,
Robert Capa ou
Sebastião Salgado, ficarão ligados para sempre aos acontecimentos mais marcantes do nosso século. Eles foram os primeiros a resgatar do efémero a verdade dum acontecimento e, por outro lado, deram à fotografia a sua dimensão social lançando as bases do que viria a chamar-se fotojornalismo.
O exercício do fotorepórter é uma dialéctica entre o objectivo e o subjectivo, um encontro da verdade com a interpretação do fotógrafo. Nessa dialéctica residem em simultâneo a crónica do tempo, a obra de arte e a filosofia.
Tal como os pintores da Idade Média, o fotorepórter tem como missão pregar o mal e exorcizá-lo. Seja a guerra ou a moral, a justiça ou o despotismo, o que os torna diferentes é o quanto de mentira se pode colocar numa pintura e o quanto de verdade se pode retirar, apesar de tudo, a uma fotografia.
Este jogo entre a verdade e a mentira está na origem da profusão iconográfica do nosso tempo. Os mitos contemporâneos hão-de assentar sempre num obscuro poder de auto-multiplicação da sua própria imagem que os mass media se encarregarão de difundir. Longe dos modelos clássicos, o veículo desta nova mitologia tanto pode ser uma lata de feijão, como a loura mais vulgar. No entanto, é definitivo que todos nos inclinaremos na direcção daquilo que assim for deificado. Andy Warhol demonstrou-o até à saciedade.
Eis então o homem no controlo total da realidade, moldando-a ou construindo-a segundo a sua própria medida.
A mentira das imagens tem no nosso tempo a força do desejo; as imagens são as “asas do desejo”. Elas asseguram-nos a passagem para as cidades mais cobiçadas, as mesas mais fartas, os corpos mais invejados.
No fundo, talvez ainda acreditemos que entre a cópia das coisas e as próprias coisas haja uma relação mágica e que a posse de uma influencia a outra.
gil t. sousa