29 setembro 2025

albano martins / solfejo

  

De algumas pedras também às vezes necessitas. Boleadas, como os seixos, são elas que dão consistência à arquitectura do poema. Porque nelas, como no solfejo das algas, resiste ainda, ou é somente o seu resíduo, a música das águas.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

28 setembro 2025

al berto / doze moradas de silêncio

  
 
6
 
hoje é o sexto dia,
sexta morada de silêncio
 
anotar os nomes das flores e
suas significações emblemáticas
     absintio / amargura, tristeza
     asfódelo / coração abandonado
     cinerária / dor de coração
     glicínia / ternura
     junquilho / melancolia
     silindra / recordações
anotar os nomes das areias e das argilas mais profundas
os nomes dos insectos e dos minerais
as marcas discretas das coisas cortantes
e recopiar algumas palavras de Amers:
 
          … Tol que j'ai vu dormir dans ma tièdeur de
          femme, comme un nomade roulé dans son étroite
          laine, qu'il te souvienne, ô mon amant, de toutes
          chambres ouvertes sur la mer où nous avons aimé.
 
manter a imobilidade absoluta dos rochedos
recear as falésias onde a lua abriu um sulco
tactear teu rosto disperso pelos ventos
recolher a dor na penumbra do entardecer
 
anunciar a noite com a ponta dum punhal de veludo
espiar o frémito súbito das estrelas… reler tudo
mantendo o corpo em surdina
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997




 

27 setembro 2025

amadeu baptista / prisão


 

Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.
Seque a figueira e o fruto prometido,
estaque o vento para todo o sempre,
não seja nunca mais o mar o mar.
Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
Prender como a mão de um amigo.
 
 
 
amadeu baptista
paixão 2003
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017



 

26 setembro 2025

anna akhmatova / para a poesia

  
 
Tu guiaste-nos através do inexplorado
como uma estrela cadente na escuridão.
Foste a amargura e a mentira.
Nunca o consolo.

 
*
 
A fama nadou como um cisne
através da neblina dourada
e tu, meu amor, foste sempre
o meu desespero.
 
 
 
anna akhmatova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022




 

25 setembro 2025

leonard cohen / não há tempo para mudar

  
 
Não há tempo para mudar
O olhar para trás
É demasiado tarde
Meu doce livro
 
Demasiado tarde para
Que os homens se envergonhem
Daquilo que eles fazem
Com chamas nuas
 
Demasiado tarde para
Cair sobre a minha espada
Nem sequer tenho espada
Estamos em 2005
 
Como ouso preocupar-me
Com o que tenho a fazer
Ó doce livro
Vens demasiado tarde
 
Não percebeste nada
Da poesia
É toda sobre eles
Não sobre mim
 
 
 
leonard cohen
a chama
poemas
tradução de inês dias
relógio d´agua
2019




24 setembro 2025

wislawa szymborska / os dois macacos de brueghel

  
 
Sonhei assim com o meu exame do fim do liceu:
amarrados por correntes, dois macacos estão sentados à janela,
voa o céu, banha-se o mar
para além dela.
 
É a oral de história humana.
Eu gaguejo, vou-me atolando.
 
Um macaco fixo em mim, irónico vai escutando,
o outro quase dormita –
e no silêncio que se segue à questão posta,
este sussurra-me em segredo uma resposta,
no som baixo da sua trela tilintando.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



23 setembro 2025

primo levi / as estrelas negras

  
 
Não mais um canto de amor ou de guerra.
 
 
A ordem de onde o cosmos trazia o nome desfez-se;
As legiões celestes são um emaranhado de monstros,
O universo assedia-nos cego, violento e estranho.
O céu está cheio de horríveis sóis mortos,
Sedimentos densíssimos de átomos triturados.
Deles nada emana, senão uma gravidade desesperada,
Nem energia, nem mensagens, nem partículas, nem luz;
A própria luz deixa-se cair, quebrada pelo seu próprio peso,
E todos nós, semente humana, vivemos e morremos para nada,
E os céus revolvem-se perpetuamente em vão.
 
30 de Novembro, 1974
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 



22 setembro 2025

zbigniew herbert / fragmento de um vaso grego

  

Em primeiro plano vê-se
o corpo formoso de um jovem
 
a barba recai-lhe sobre o peito
um joelho dobrado
os braços como ramos secos
 
fechou os olhos
até a Eros renuncia
 
cujos dedos mergulhados no ar
cabelos soltos
e contornos da túnica
formam três círculos de tristeza
 
ele fechou os olhos
renuncia à armadura de bronze
 
ao belo elmo
adornado com sangue e crista negra
ao escudo quebrado
à lança
 
fechou os olhos
renuncia ao mundo
 
as folhas pairam no ar silente
um ramo treme com a sombra de pássaros em debandada
e somente um grilo escondido
nos cabelos ainda vivos de Mémnon
canta com convicção
o elogio da vida
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024
 



21 setembro 2025

joão rebocho / eu pensei



 

 
eu pensei,
no meu livre arbítrio,
trazer-te a este livro
em versos abreviados;
fazer-te o pequeno almoço
escolher música para ti
bravio, a desnivelar:
vai embora liberdade de escolha,
um revólver para eu
aceitar a tua opção
ou dar um tiro no ouvido?
 
 
 
joão rebocho
obrigado é sozinho
edições fantasma
2025
 


 

20 setembro 2025

catarina costa / viagem à tua terra

 


 

 
Procurei-te no cemitério local pelo teu nome e foto
e não te encontrei –
 
a tua ausência era sinal de que ainda estavas vivo
 
não precisei de te ver
para voltar em paz
 
acabara de visitar uma terra misteriosa
com a sua necrópole histórica
e intacta
 
 
 
catarina costa
nervo/25 setembro / dezembro 2025
colectivo de poesia
2025
 



19 setembro 2025

paul auster / meridiano

  
 
Pelo verão afora,
junto ao declive de luz erodida
das nossas mãos, escuras parteiras de dunas:
as tuas pedras
ruindo de volta à vida
à tua volta.
 
Atrás da minha translúcida pálpebra de ébano,
uma estrela prematura,
expurgada de um inferno de bolbos,
ergue-te, inocente,
rumo à manhã, e povoa a tua sombra
de nomes.
 
Rimada de noite. Funda de arado.
Próxima.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 



18 setembro 2025

paul bowles / ed djouf

  
Chegamos
Em nove etapas, de sete dias cada uma.
Amamo-nos a pontapés.
Morremos de insolação.
Pó de ouro, melodia de cinzas
Confiai-me um dia de silêncio.
Vendi-lhe escorpiões ao longo de trinta e oito milhas.
No desenho animado do horizonte
Irrompem novamente as loucas cristas.
Aqui sente-se a gasolina, o progresso, a agonia.
Em nove etapas, de oito dias cada uma
Chegamos ao silêncio.
 
                                                    1934
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008





 

17 setembro 2025

john updike / televisão

  
 
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
 
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009