09 maio 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
 
CCLXXVI
 
Não fujas do teu medo procurando
a tua audácia. Isto é só vestir
com outra roupa o mesmo espanta pássaros.
Se dás um nome ao medo, dás-lhe sombras
onde melhor te esconde a natureza
verdadeira, a que importa. Vais mais fundo
não à sua raiz, mas às carências
que elas são a raiz, mas às carências
que elas são a raiz do conflito.
Aparências opostas do real,
Teu medo ou tua audácia nada são.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 



08 maio 2025

adília lopes / irmã barata, irmã batata

 
 
 
Fez-se do sexo um bicho de sete cabeças. Parece que mais vale morrer violada do que virgem, quando isso é um grande disparate. A castidade é um valor, infelizmente confunde-se castidade com ausência de relações sexuais e de masturbação. O sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar muito alto. Chamo a isto o sentimento da irrealidade.
 
 
 
adilia lopes
irmã barata, irmã batata (2000)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




07 maio 2025

adam zagajewski / a europa adormece

 
 
 
                                    para Gosia
 
 
A Europa adormece; em Lisboa
franzem as sobrancelhas velhos xadrezistas.
 
No céu de Cracóvia paira um nevoeiro cinzento
que apaga os contornos das veneráveis velas.
 
O Mediterrâneo embala-se suavemente
e daqui a pouco vai-se transformar numa canção de embalar.
 
Quando a Europa finalmente cair num sono profundo,
a América há-de velar
 
o pobre, mudo mundo
desconfiadamente, como uma irmã mais nova.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




06 maio 2025

a. m. pires cabral / poeira

 
 
 
A poeira que a noite levantou
enquanto ardia
ainda anda no ar e é seca como
uma pistola disposta a disparar.
 
E tarde assentará
essa poeira.
 
Só espero que quando repousar
sobre o tampo da mesa
seja tão espessa que eu possa escrever nela
à ponta do dedo
alguns madrigais.
 
Ou então heresias, se estiver
para aí virado.
 
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




05 maio 2025

a. c. swinburne / um camafeu

 
 
 
Havia uma imagem esculpida do Desejo
     Pintada com sangue vermelho num campo de ouro,
     Passando entre os jovens e os velhos,
E a seu lado a Dor cujo corpo brilhava como o fogo,
E o Prazer com mãos descarnadas agarrando o seu salário.
     Com a mão esquerda, os dedos crispados e frios,
     Segurava-o a insaciável Saciedade,
Caminhando com pés descalços que tocavam a lama.
Os sentidos e as dores e os pecados,
     E os estranhos amores que sugam os seios do Ódio
Até que os lábios e os dentes mordam a sua profunda ferida,
Iam também, como animais batendo as asas ou as suas
                                                                barbatanas.
     A Morte mantinha-se afastada atrás de uma grade toda aberta,
Em cuja fechadura estava escrito: Talvez.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006




 

04 maio 2025

adolfo casais monteiro / fruta do tempo

 



 

 
Tempos houve em que ainda me perdia…
Hoje
de antemão tudo sonho já vivido,
inútil e pesado,
passos que dou com olhos distraídos…
isto mesmo não é embora certo:
que venha um pouco de sol, e toda a sombra
há-de esvair-se em bruma pelos cantos…
 
 
 
adolfo casais monteiro
poemas do tempo incerto (1934)
poesias completas
imprensa nacional-casa da moeda
1993




03 maio 2025

zetho cunha gonçalves / pelo meu nome

 
 
 
Escavo a esta mão os ventos – da onça,
sustentam a noite: quem contraceno em gesto,
e os seus olhos. Se dou um passo
tropeço noutro passo – simétrico, tropeço
na flecha. O dorso é todo o horizonte,
a sua escultura movediça.
 
Eu trazia o fogo na cabeça, era um pássaro.
O canto das águas seria a minha voz – a pedra,
Terra
de outra carne,
e osso –
não me houvessem roubado o fogo, não me houvessem
justificado em lenda, pelo meu nome.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
o testamento do mundo
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021
 



02 maio 2025

josé miguel silva / em suma

 
                                        
 
Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.
 
Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhado por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.
 
Os versos, com o tempo, tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, cortava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça
por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





01 maio 2025

josé emílio pacheco / «moralidades lendárias»

   
 
Odeiam César e o poder romano.
Privam-se de comer a última uvinha
pensando nos escravos estourados
nas minas de sal ou nas galeras.
 
Falam das crueldades do exército
em Ilíria e nas gálias.
Empanturrados
de javali, perdizes e vitela
bebem um gole
de vinho siciliano
para empinar os lábios pronunciando
as mais belas palavras:
a uuumaaaniiidaadee, o ooomeeem, todas essas
– tão rotundas, tão grandes, tão sonoras –
que apagam a humildade de outras mais breves
– como, digamos, por exemplo, as pessoas.
 
Termina a função. Entram os servos
para levarem os restos do banquete.
Então os patrícios acomodam-se
aos seus mantos de Chipre.
Com o fogo do prazer nos olhinhos,
como um gladiador que afunda o tridente,
enumeram felizes os abortos
de Clódia a Toscana,
a impotência de Lívio, os avanços
do cancro em Vitélio.
Afirmam que é cornudo o velho Cláudio
e condenam Flávio à cadeia,
um escravo liberto, um arrivista.
 
Depois à saída acordam aos pontapés
o cocheiro insolado
e marcham com fervor em direcção ao Palatino
para oferecerem mansamente o triste cu
ao magnânimo César.
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024




 

30 abril 2025

sophia de mello breyner andresen / fragmento de «os gracos»

 
 
 
«…………………………………………………………..»
 
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham
 
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um touro na arena
 
«……………………………………………………………»
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética
poemas reencontrados
assírio & alvim
2015




 

29 abril 2025

fernando pinto do amaral / elegia do porto

  
 
Fechei o círculo: a minha adolescência
jaz morta e arrefece. Ainda é noite
e os caminhos já não se bifurcam
enquanto a lua vai sorrindo. A esperança,
sabemos que é a última a morrer,
mas a cidade é toda um déjá vu,
um abismo de imagens repetidas
por espelhos iludindo outros espelhos
acompanhando um rio que nunca teve
quem o cantasse – diz-nos a Agustina
na frase inicial do seu romance
sobre a filha infeliz do coronel Owen,
um desses ingleses que este Porto
soube adoptar num século romântico
de jardins desbotados e emoções
por vezes muito óbvias, embebidas
na treva e no silêncio. Alguns passos
feitos de sombra e água e logo tudo
recupera o perfil do esquecimento,
a consistência mole das coisas surdas
que adormecem as dores e os prazeres
em casulos de vidro litoral
a meio de um percurso que retoma
nobrezas, burguesias, novos-ricos,
pessoas sempre sólidas, compactas,
povoando os anódinos destinos
com sinais quase sempre obrigatórios
da serena fortuna: Maseratis,
B.M.W.’s série sete ou mesmo
um Jaguar tão azul, tão luminoso
como o da minha infância. Tantas vezes
duvidei do passado e do futuro
como se o tempo não me conhecesse
e a verdade brilhasse, distraída,
para lá do horizonte. Cada voz
é o sangue do nada que circula
e vai coalhando agora no tranquilo
sono dos automóveis pelas ruas
entre uma escória de recordações
que mal sei distinguir e no entanto
me deixam hoje absorto na esplanada,
quase submerso em estranhas avarias
do sentimento ou da imaginação
– só literatura, mera literatura.
Fechei de novo o círculo: esta vida
começa a ser igual às outras vidas
que alguém viveu em mim antes de mim
nesta e noutras cidades. A memória
é um poço vazio, quase um deserto
onde vislumbro vagas caravanas
à procura do rumo que não há
nos corpos ou nas almas segregando
outros corpos e almas. Entro e saio
dos cem ou mil lugares onde vicejam
a flora e a fauna predadora
das quatro da manhã. Não me submeto
às inúteis mensagens da alegria
em cada rosto e sinto que encontrei
a velocidade de cruzeiro: é isto,
escrever talvez ao ritmo de apelos
a que este mundo chama ainda música
e serão simplesmente contracções
de vísceras aflitas, vãos esgares
imitando o sorriso de ninguém
no instante em que nasce ou em que morre
o estilhaçado som de um coração
quando se parte sem nenhum remédio,
sem promessas que o salvem da catástrofe,
até ficar sozinho para sempre,
à mercê de outro sonho ainda mais forte,
mais rápido que o álcool, transformando
a vida em morte, a morte em vida, agora
exactamente iguais – perfeita ekphrasis
do universo inteiro. Ah, fogo e gelo,
continuem felizes a queimar
os anónimos nomes que se elevam
da madrugada aqui na Foz do Douro
onde a névoa da água é mais que névoa
no mar feito de fumo onde os meus olhos
sobrevivem já cegos, noutra luz.
 
 
 
fernando pinto do amaral
dez elegias para o fim do milénio
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





28 abril 2025

josé manuel teixeira da silva / acabar, começar

 
 
 
Da antiguidade da vida
O arco aberto da primeira maré
a chuva concêntrica no musgo dos lagos
o fio incerto dos pássaros no trânsito das nuvens
os olhos que se olham nas cidades aquáticas
Como se ainda voltasses dizendo
no espelho das janelas mergulham para sempre
os peixes sombrios das constelações
Súbitas permanências
 
 
 
josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001




27 abril 2025

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
433
 
Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam sua fúria com sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006