06 março 2025

albano martins / quatro haikais

 
 
 
1.
Se houve um paraíso, foi
Depois, quando a maçã
Foi mordida.
 
2.
A cabeça da lua
entre as coxas.
O sexo do luar.
 
3.
Solitários, solidários
ambos – Hermes
e Afrodite.
 
4.
A um passo
da luz fulguram,
grávidas, as espadas.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
entre a cicuta e o mosto (1992)
glaciar
2021
 


05 março 2025

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VIII
 
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

04 março 2025

antónio osório / amo os teus defeitos

 
 
 
Amo os teus defeitos, e tantos
eram, as tuas faltas para comigo
e as minhas; essa ênfase
de rechaçar por timidez; solidão
de fazer trepadeiras, agasalhos
para velhos, depois para netos;
indulgência de plantar e ver
o crescimento da oliveira do paraíso,
carregada de flores persistentemente
caducas; essa autoridade, irremediável
desafio; e a astúcia
de termos ambos quase a mesma cara.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
os cavalos de tróia
editorial presença
1982
 



03 março 2025

fátima maldonado / crepúsculo

 
 
 
II
 
Depois de te vazares
até secar na pele o recôndito veio
os opalinos rios desaguando baixo
enquanto te vigio à espera se abrandeces
surgem-me casas brancas
pilastras sucessivas
na funda quadratura de pátios sequestrados
mosaicos pontuando as salas de referências.
Nas báquicas volutas
as vides
policromam o chão de amores mais que suspeitos
engalanecem sobre os ângulos do repasto.
Enquanto recostado sopesas minha pele
e buscas na textura
o teu filão cativo
de forma terminante na rede alveolar,
como na mina o escravo avidamente passa
o dedo sobre o aurífero seio,
e firme o teu perfil moreno destacavas
no ocre da parede
sentindo o fresco chão inscrever-se na túnica,
eu te seguia o rasto
adivinhando na boca contraída
o rictus do desejo.
Gemias ao roçar-te a face contra os pés,
o estribo os magoou na última campanha
(a cativa mantém do saque
a cicatriz na nuca
e disfarça-a pousando por sobre o violeta
da zona contundida
o pente de coral que de manhã lhe deste)
A língua essa ficou-me oferta numa taça.
Numa noite de Maio
beberas talvez em demasia
de um torvo vinho acre
ao resguardo da brisa diluente
numa nave fenícia,
à volta celebravam com gritos a vitória,
apenas dois lugares no áspero parlamento,
lambia-te a barriga e comentava
o mundo circundante
um convidado atónito
soltou um vivo repto:
«Cave amantem».
Viraste a cabeça e vi por dentro a raiva
embravecer-te a boca.
Pediste na toalha a lâmina de prata.
No cabo cinzelado Artemísia sulcava
um mar de contusão.
Mandaste sossegar a trémula cabeça,
um golpe seccionou a língua virulenta.
Enquanto não estancou o sangue nessa noite
deitada no sombrio reduto das escravas
sentindo sobre o corte
pesar fresca mistura,
(uma velha tentara amordaçar a veia)
não pensava senão na próxima vingança.
Mas ao amanhecer
quiseste transportar-me
ao linho dos lençóis,
na cama desenhavam grinaldas tumulíneas
e a chama do azeite
enchia o ambiente.
Adormeci.
O teu olhar fitava dum Sileno
a face na parede
e uma mulher alada
dissecava à escuta
as fibras do mistério.
No tumulto de um sono
Em sobressalto
sentia a tua mão,
(o sangue junto às unhas grudou um lodo denso)
serena percorrer desimpedindo as vias,
projectos de cravar
entre os ossos do externo
adagas caldeadas em forjas escandecidas.
 
E enquanto assim medito
um pombo cinamomo
num nicho segredeia
dando à ninfa saprófita ali em vigilância
relatos em detalhe das ruas destruídas
notícia da chacina
que impende sobre os prédios
os contos do abate às roxas cercaduras
o saque reiterado nos frisos de uvas pretas
a desfolha das rosas
os caules de narcisos
a esmagada flor solta do azulejo
as novas da matança que grassa na cidade.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os alicerces
editorial presença
1983



02 março 2025

antónio ramos rosa / amamos num vislumbre

 
 
 
Amamos num vislumbre terra suspensa
chamamos limiar a esta chama
e uma ideia de fogo branco habita o pulso
um vaso negro irradia sobre o branco
 
Amamos o limiar o pólen dos mortos
na sombra desta palma deste odor de chama
chamamos alta a esta chama nua
E é uma mulher direita imóvel nua
 
Amamos esta terra esta sombra da mão
amamos esta escrita de água e dança obscura
caminhamos contra o hálito da noite
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




01 março 2025

paul strand / elegia pelo meu pai

 
 
2 -  RESPOSTAS
 
 
Porque viajaste?
Porque a casa estava fria.
Porque viajaste?
Porque é o que sempre fiz entre o crepúsculo e a aurora.
O que vestiste?
Vesti um fato azul, uma camisa branca, uma gravata amarela e
                                                                         meias amarelas.
O que vestiste?
Não me vesti. Um lenço de dor manteve-me quente.
Com quem dormiste?
Dormi com uma mulher diferente em cada noite.
Com quem dormiste?
Dormi sozinho. Dormi sempre sozinho.
Porque me mentes?
Sempre pensei que te dizia a verdade.
Porque me mentes?
Porque a verdade mente como nenhuma outra e eu amo a verdade.
Porque partes?
Porque nada significa já muito para mim.
Porque partes?
Não sei. Nunca soube.
Quanto tempo deverei esperar por ti?
Não esperes por mim. Estou cansado e quero descansar.
Estás cansado e queres descansar?
Sim, estou cansado e quero descansar.
 
 
 
paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução José luís peixoto
edições quasi
2002
 



28 fevereiro 2025

primo levi / aportar

 



 

 

Feliz o homem que chega a bom porto,
Que deixa atrás de si mares e tempestades,
Cujos sonhos estão mortos ou jamais nascidos;
E que se senta e bebe na taberna de Bremen,
Junto da lareira com uma paz serena.
Feliz o homem que é como uma chama extinta,
Feliz o homem que é como a areia do estuário,
que depôs o seu fardo e limpou a testa
e descansa no bordo do caminho.
Não teme, nem deseja, nem espera,
mas olha fixamente o sol que se põe.

 
                                        10 de Setembro, 1964
 
 
 
primo levi
a uma hora incerta
trad. rui miguel ribeiro
edições do saguão
2024
 

 



27 fevereiro 2025

zbigniew herbert / os peixes

 
 
 
Impossível imaginar o sono dos peixes. nem mesmo no canto mais escuro do lago, entre os juncos, o seu descanso é uma vigília: a mesma posição dura uma eternidade; é absolutamente impossível dizer deles: pousaram a cabeça.
 
De igual modo, as suas lágrimas são como um grito no vazio – incalculáveis.
 
Os peixes não são capazes de gesticular o seu desespero. Isso justifica a faca romba que salta pelo dorso arrancando lantejoulas de escamas.
 
 
 
zbigniew herbert 
poesia quase toda
tradução de teresa fernandes swiatkiewicz
cavalo de ferro
2024




 

26 fevereiro 2025

mar becker / caderno dos fins



 

 
outros amaram em mim a mulher
 
a ti peço para amar
a sombra
 
ama-me os fios de cabelo que caem
o farelo à ponta dos dedos
a poeira das unhas recém-lixadas
 
ama na minha boca a palavra que nunca é dita
 
ama os meus livros aquele que achei num sebo
e que decidi comprar só pela dedicatória
datada de junho de 1732
 
ver a caligrafia de um morto desejando boa leitura
a outro morto
duas mãos se encontrando assim, cobertas
de esquecimento e pó
 
 
 
mar becker
wladimir vaz (fotografia)
a mulher submersa
urutau
2021





 

25 fevereiro 2025

alejandra pizarnik / gestos para um objecto

 
 
               
Em tempo adormecido, um tempo como uma luva sobre um tambor.
 
Os três que em mim contendem ficámos no móvel ponto fixo e não somos nem um é nem um estou.
 
Antigamente os meus olhos procuraram refúgio nas coisas humilhadas, desamparadas, mas em amizade com os meus olhos eu vi, vi e não aprovei.
 
 
 
alejandra pizarnick
antologia poética
el infierno musical (1971)
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020


 

24 fevereiro 2025

amalia bautista / um tempo feliz

 


 
 
Era um tempo feliz. Naquele tempo
sustentavam-me as pernas o andaime
que sustentava e encerrava o mundo.
Não houve ninguém mais simples naquele tempo,
ninguém mais inocente do que eu mesma.
Não houve nenhum sinal que me falasse
da dor, da ansiedade e do desastre.
 
 
 
amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013




23 fevereiro 2025

eunice de souza / temporários

 
 
 
Casas temporárias para os vivos
Temporária a tenda para o casamento
Temporário o transporte
para a última viagem
Temporário o chão
que pisamos.
 
 
 
eunice de souza
coração de abacate
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2018





 

22 fevereiro 2025

antonia pozzi / reflexos

 
 
Palavras – vidros
que infielmente
reflectis o meu céu –
 
pensei em vós
ao anoitecer
numa rua sombria
quando sobre as pedras da calçada caiu uma vidraça
e durante muito tempo os estilhaços
espalharam luz pela terra –
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019