24 janeiro 2025

roland barthes / o corpo do outro



 

 
CORPO. Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado.
 
1.
O seu corpo estava dividido: de um lado, o próprio corpo – a pele, os olhos –, terno, caloroso, e, do outro, a voz, breve, moderada, sujeita a momentos de afastamento, uma voz que não oferecia o que o corpo oferecia. Ou então: de um lado, o seu corpo macio, morno, débil na sua justa medida, protector, fingindo-se acanhado, e, do outro, a voz – a voz, sempre a voz – sonora, bem definida, mundana, etc.
 
2.
Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses miúdos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo). essa operação processa-se de um modo frio e surpreso; estou calmo, atento, como se estivesse diante de um estranho insecto que subitamente deixo de recear. Certas partes do corpo são particularmente adequadas a esta observação: as pestanas, as unhas, a raiz dos cabelos, os objectos muito específicos. É evidente que estou então a fazer de um morto um fetiche. A prova está em que, se o corpo que examino sai da sua inércia, se põe a fazer qualquer coisa, o meu desejo se modifica; se, por exemplo, vejo o outro pensar, o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente.
 
(Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, o brilho dos olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado – não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento – por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.)
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017
 



 

23 janeiro 2025

sylvia plath / os anos

 
 
 
Entram como animais vindos
Do espaço de azevinho onde os espinhos
Não são os pensamentos que eu ateio, como um praticante
     de Ioga
Mas apenas, o verde, pura escuridão
Nela gelam e são.
 
Ó meu Deus, não sou como tu
Na tua vaga obscuridade,
As estrelas coladas por todo o lado, estúpidos confeitos brilhantes.
A eternidade aborrece-me,
Eu nunca a quis.
 
Do que eu gosto
É do pistão em movimento –
A minha alma morre só de o ver.
E os cascos dos cavalos,
Esse desapiedado ruído de cascos no chão.
 
E tu, Estase maior –
O que há de importante nisso?
Será um tigre este ano, este rugido ao pé da porta?
É o de um Christus,
O terrível.
 
Freio de Deus nele
Morto por voar e acabar assim?
As bagas do sangue são elas mesmas, estão muito quietas.
 
Os cascos não o vão ter,
Na distância do azul, os pistões assobiam.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




22 janeiro 2025

ron padgett / voz



 

 

Sempre me ri
quando dizem acerca de um jovem escritor
que «procura a sua voz». Eu interpretei
literalmente: teria ele perdido a voz?
Tê-la-ia projectado e ela
Não voltou? Ou talvez
se referissem ao jornal
The Village Voice? Ele está a tentar
encontrar a sua Voz.
                             O que não tem
graça é que tantos jovens escritores
tenham considerado esta ideia
credível: eles partem em busca
da sua voz, como se
fosse uma coisa independente, um tesouro
difícil de encontrar mas que merece
o esforço. Nunca pensei
que tal coisa existisse. Até
recentemente. Agora sei que existe.
Espero nunca encontrar a minha.
Espero continuar a ser uma fraude o resto da vida.
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018
 



 

21 janeiro 2025

pat boran / madressilva

 
 
 
 
                                                    para Ron Houchin
 
 
Meteu-se pelas estradas secundárias e conduziu durante horas
até o céu ser a poça de estrelas que ele perdera
na infância e da qual nunca se incomodara a sentir falta
até então, a noite dos seus cinquenta anos,
pais e vizinhos mortos havia muito, a velha casa
arrasada por um bulldozer, o lago
cheio e coberto com asfalto, um sinal de paragem
onde uma vez estivera posto um espantalho, a estrada
a desaparecer ao longe e apenas as estrelas
ainda familiares, ainda de confiança, e aquele perfume no escuro
a que ele chamava, então e ainda, madressilva.
 
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




20 janeiro 2025

rami saari / melhoras



 
Nos banhos públicos de Al-Shifah em Schem
massajou-me as costas o jovem Sahid,
e o seu peito alto ofegou de tal modo
que as comportas todas do céu se abriram:
os joelhos dobrados tremeram na pedra,
seu hálito fundiu-se com os vapores da sala.
Do seu ventre, alpendre cheio de trigo e palha,
escorreram chuvas tardias alagando o solo.
E depois, o sabão. E depois, a água.
E depois,, toalhas e chávenas fumegantes.
Com o passar do tempo as comportas do céu entraram
à socapa no espaço reduzido que há entre as palavras.
 
 
 
rami saari
tradução de joão paulo esteves da silva
nervo/23
colectivo de poesia
janeiro/abril 2025
 



 

19 janeiro 2025

paul celan / no vermelho tardio

 
 
 
No vermelho tardio dormem os nomes:
um
é despertado pela noite
e levado com bastões brancos
para a muralha sul do coração,
sob os pinheiros:
um, de origem humana,
vai até à cidade de barro
onde a chuva se acolhe amiga
de uma hora marítima.
 
No azul
pronuncia uma palavra-árvore promissora de sombra,
e o nome do teu amor
acrescenta-lhe as suas sílabas.
 
 
 
paul celan
sete rosas mais tarde
antologia poética
trad. João barrento e y. k. Centeno
relógio d´água
2023




18 janeiro 2025

tomas tranströmer / lisboa

 
 
 
No bairro de Alfama os carros eléctricos amarelos chiavam nas
     subidas.
Ali havia duas prisões. Uma era para ladrões
que acenavam através das grades.
Gritavam, queriam ser fotografados.
 
“Mas aqui”, disse o guarda-freio com um risinho de hesitação,
“aqui estão os políticos.” Olhei para a fachada, a fachada, a fachada,
e no último andar, a uma janela, vi um homem
comum binóculo a olhar para o mar.
 
Roupa que fora lavada secava pendurada ao sol. As pedras dos
     muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma senhora de Lisboa:
“Aquilo era mesmo verdade ou fui eu que sonhei?”
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012





17 janeiro 2025

raffaele carrieri / um só fruto

 
 
 
Com o vermelho dum só fruto
Poderia beber comer
E pintar uma bandeira.
Com os bagos duma romã
Poderia acender fogueiras
Na língua
Ou abrir uma ourivesaria.
Entro como um ladrão
Neste mundo
De esferas e anéis
E não sei sair.
 
 
raffaele carrieri
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992





 

16 janeiro 2025

maria sousa / o passado é cada instante

 



 
o  passado é cada instante
em que a casa te parece cheia
 
há uma porta que ninguém abre
uma máquina de inventar vozes
 
e tu vives na solidão até
as lágrimas te cortarem a voz
 
 
 
maria sousa
não abras a porta a estranhos
do lado esquerdo
2019




15 janeiro 2025

maria f. roldão / fragilidade

 
 
 
No cesto das conquistas
coloco ovos de luz e ébano.
As dores bem arrumadas ao centro
e à volta o cansaço, em calibre mais pequeno.
No cimo, ervas de respostas,
em jeito de resguardo,
evitando que o pulso dispare outra vez.
 
Disponho camadas de ócio:
ferro das manhãs quezilentas.
Um papel vegetal de prudência.
 
E na asa tantos destemperos
que a mão mal consegue unir-se,
tão febril e trémula. Cheia de pavor
d’estilhaçar a vida.
 
 
 
maria f. roldão
pequeno sangue
volta d´mar
2021
 




14 janeiro 2025

maria gabriela llansol / LV. eu sei

 
 
 
Um piano pode crescer como uma criança? Pode, nos nossos ou-
vidos formados, ser esse instrumento de sussurro, como dom
_______ também o urso se tornou minúsculo e o elefante se reduziu
à visão que eu tinha do marfim.        Se o desconhecido que havia de
entrar fosse órfão,
eu considerá-lo-ia mais livre do que só,
ou só era apenas a imagem do liberto.
 
 
 
maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silênco de 2004
assírio & alvim
2006




13 janeiro 2025

gastão cruz / de cada vez

  
 
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas vida
 
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
 
 
 
gastão cruz
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001




12 janeiro 2025

nina gorlanova / tercetos

 
 
 
As crianças não gastaram o seu dinheiro
Para os gelados
E deram-no ao pai para a cerveja.
 
A filha do meio
Desenvolveu o gosto pela leitura
Devido às minhas orações.
 
É só em sonhos que
Hoje em dia vejo
Pessoas que o conseguiram.
 
Tudo melhorou
Mesmo quando estávamos furiosos um com o outro
Nunca partimos um prato…
 
O meu filho mais novo
Lê como os Romanos antigos
Em voz alta e reclinado.
 
Ao ler a prosa de Brodsky
Descobri uma afinidade espiritual:
Uma intensa paixão pelo pó…
 
 
 
nina gorlanova
é por isso que a alegria é mais alta
poemas russos dos séculos vinte e vinte um
versões de luís filipe parrado
contracapa
2022